quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Homem: uma estipulação efêmera e burguesa

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O que se compreende comumente pela palavra “homem” é sempre uma estipulação efêmera e burguesa. Certos impulsos mais crus estão afastados e proibidos nessa convenção; um grau de consciência e de cultura humana são reclamados à besta; uma pequena parcela de espírito não é somente permitida, como também encorajada. O homem desta convenção, como todos os outros ideais burgueses, é uma conciliação, um intento tímido, de ingênua astúcia com o intuito de enganar tanto a perversa mãe Natureza primitiva quanto o incômodo primitivo pai Espírito de suas enérgicas exigências e para viver na zona temperada entre eles. É por isso que a média das pessoas permite e tolera aquilo que denomina “personalidade”, mas ao mesmo tempo entrega a personalidade àquele Moloch chamado “Estado” e intriga continuamente um com o outro. Assim o burguês queima hoje por herege e enforca por criminoso aquele ao qual amanhã levantará estátuas. Que o “homem” não é alguma coisa já criada, mas apenas uma exigência do espírito, uma possibilidade longínqua, tão desejada quanto temida, e que o caminho a que isto conduz só vai sendo percorrido em pequenos impulsos e debaixo de terríveis tormentos e sonhos, precisamente por aquelas raras individualidades, para as quais hoje se prepara o patíbulo e amanhã o monumento — é uma suspeita que vive também no Lobo da Estepe. Porém, o que ele para si designa como “homem”, em contraposição ao seu “lobo”, não é, em grande parte, senão aquele homem medíocre do convencionalismo burguês. O caminho para o verdadeiro homem, o caminho para os imortais, Harry adivinha-o perfeitamente e percorre-o também aqui e ali com timidez, muito lentamente, pagando este avanço com graves tormentos e com seu doloroso isolamento. Mas, proporcionar-se, aspirar àquela suprema exigência, àquela encarnação pura e buscada pelo espírito, andar o único caminho estreito para a imortalidade, isto receia-o no mais profundo de sua alma. Tem perfeita consciência de que isto conduz a tormentos ainda maiores, à proscrição, à renúncia de tudo, talvez ao cadafalso; e, apesar de saber que no fim deste caminho a imortalidade sorri sedutora, não está disposto a padecer todos estes sofrimentos, a morrer todas estas mortes. Tendo ainda mais consciência do fim da encarnação do que os burgueses, fecha, todavia, os olhos e faz por ignorar que o apego desesperado ao próprio eu, a desesperada ânsia de viver, são o caminho mais seguro para a morte eterna, ao passo que o saber morrer, rasgar o véu do mistério. ir procurando eternamente mutações em si mesmo, conduz à imortalidade. Quando adora os seus favoritos entre os imortais, Mozart, por exemplo, nunca o faz, afinal, senão com olhos de burguês, e pretende explicar doutamente a perfeição de Mozart apenas pelos seus altos dotes de músico, e não pela grandeza de sua abnegação, paciência no sofrimento e independência perante os ideais da burguesia, pela sua resignação naquele extremo isolamento, semelhante ao do horto de Getsêmani, que em torno do que sofre e está em vias de reencarnação rarifica toda a atmosfera burguesa até convertê-la em gelado éter cósmico. Mas, enfim, o nosso Lobo da Estepe descobriu dentro de si ao menos a duplicidade fáustica; conseguiu determinar que à unidade de seu corpo corresponde uma unidade espiritual, mas que, no melhor dos casos, apenas se encontra em caminho, com uma larga peregrinação à frente, para o ideal dessa harmonia. Desejaria vencer dentro de si o lobo e viver inteiramente como homem, ou então, renunciar ao homem e viver ao menos como lobo uma vida uniforme, sem desvios. Provavelmente nunca observou com atenção um lobo autêntico; então veria, talvez, que nem mesmo os animais possuem a unidade da alma, que também neles, atrás da bela e austera forma do corpo, vive uma multiplicidade de desejos e de estados; que também o lobo tem abismos no seu interior e também sofre. Não! Com a volta à Natureza o homem vai sempre por um falso caminho, cheio de sofrimentos e sem esperanças. Harry não pode tornar a converter-se inteiramente em lobo, e se tal acontecesse veria que nem mesmo o lobo é simples e originário, mas alguma coisa já muito complexa.
Hermann Hesse, in O lobo da Estepe

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