quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Penélope

Naquela rua morava um casal de velhos. A mulher esperava o marido na varanda, tricoteando em sua cadeira de balanço. Quando ele chegava ao portão, ela estava de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessava o pequeno jardim e, no limiar da porta, antes de entrar, beijava-a de olhos fechados. Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela porta aberta da cozinha, os vizinhos podiam ver que o marido enxugava a louça para a amiga. Aos sábados, saíam a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usava um vestido branco fora de moda; ele, ainda de preto. Um mistério a sua vida; sabia-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudaram-se para Curitiba.
Só os dois, sem cachorro, gato, passarinho. Por vezes, na ausência do marido, ela trazia ossos para os cães vagabundos que cheiravam o portão. Se engordava uma galinha, logo se enternecia, incapaz de matá-la. O homem desmanchou o galinheiro e, no lugar, plantou cacto feroz. Arrancou a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa se atrevia a dar seu resto de amor.
A não ser no sábado, não saíam de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acharam a seus pés uma carta.
Ninguém lhes escrevia, nenhum parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propôs queimá-lo, já tinham sofrido demais. Ele respondeu que pessoa alguma lhes podia fazer mal.
Não queimou a carta, não a abriu, esquecida na mesa. Sentaram-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixava a cabeça, mordia uma agulha, com a outra contava os pontos e, olhar perdido, recontava a linha. O homem com o jornal dobrado no joelho lia duas vezes cada frase. O cachimbo apagou, não o acendeu, ouvindo o seco bater das agulhas.
Abriu enfim a carta. Duas palavras: “Corno manso”, em letras recortadas de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estendeu o papel à mulher que, depois de ler, o olhou. Nenhum falou. Ela se pôs de pé, a carta na ponta dos dedos.
Que vai fazer?
Queimar.
Ele acudiu que não. Enfiou o bilhete no envelope, guardou no bolso. Ergueu a toalhinha caída no chão e prosseguiu a leitura do jornal.
A mulher recolheu na cestinha o fio e as agulhas.
Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as casas.
O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esqueceu o papel no bolso, outra semana passou. No sábado, antes de abrir a porta, sabia que a carta estava à espera. A mulher pisou-a, fingindo que não via. Ele a apanhou e meteu no bolso.
Ombros curvados sobre o trabalho, contando a mesma linha, ela perguntou:
Não vai ler?
Por cima do jornal admirava a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, eram azuis como no primeiro dia.
Já sei o que diz.
Por que não queima?
Era um jogo e exibiu a carta: nenhum endereço. Abriu-a, duas palavras, letras recortadas. Soprou o envelope, sacudiu-o sobre o tapete, mais nada. Colecionou-a com a outra e, ao dobrar o jornal, notou que a amiga desmanchava um ponto errado na toalhinha, Acordou no meio da noite, saltou da cama, foi olhar à janela. Afastou a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.
Sábado seguinte, durante o passeio, pensou se apenas ele recebia a carta. Podia ser engano, não tinha direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Empurrou a porta, lá estava: azul. No bolso com as outras, abriu o jornal. Voltando as folhas, surpreendia o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recordou a legenda de Penélope, que desfazia de noite, à luz do archote, as linhas acabadas durante o dia e assim ganhava tempo de seus pretendentes, à espera do marido. Calou-se no meio da história: ao marido ausente enganara Penélope? Para quem a mortalha que trançava? Continuou a estalar suas agulhas após o regresso de Ulisses?
No banheiro fechou a porta, rompeu o envelope. Duas palavras... Imaginara um plano: guardou a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendurou o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixava a garrafa de leite na porta, ele foi-se deitar. Pela manhã examinou o envelope: parecia intacto, ao mesmo lugar. Esquadrinhou-o em busca do cabelo branco — não o achou.
Desde a rua vigiava os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontrá-lo no portão — nos olhos o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tinha sinais de dente... Na ausência dela, abria o guarda-roupa, enterrava a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espionava os homens que cruzavam a calçada. Conhecia o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.
Reconstituía os gestos da amiga: pó nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca... Marcava o tempo pela toalhinha. Sabia quantas linhas a mulher tricoteava e quando, errando o ponto, devia desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.
Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lia, observava o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreitava à janela: a cortina amarrotada pela mão raivosa.
Afinal comprou uma arma. “Para que o revólver?” — espantou-se a companheira. Ele referiu o número de ladrões na cidade. Exigia conta de antigos presentes. Não faria toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigiava a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela errava o ponto, tinha de desmanchar a linha.
Aguardava-o na varanda. Como se não a conhecesse, passava diante da casa. Na volta, sentia os cheiros no ar, corria o dedo sobre os móveis, apalpava! a terra das violetas — sabia onde a mulher estava.
De madrugada acordou e viu o travesseiro vazio, ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Fazia seu tricô, sempre a toalhinha. Era Penélope desfazendo na noite o trabalho de mais um dia?
Erguendo os olhos, a mulher deu com o revólver. As agulhas batiam, sem qualquer fio.
Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitaram, ele caiu em sono profundo.
Havia um primo no passado. Em vão a dona jurava: o primo aos doze anos morto de tifo. No serão ele retirou as cartas do bolso — eram muitas, uma de cada sábado — e leu, entre dentes, uma por uma.
Não aceitou permanecer em casa no sábado, para identificar o autor. Sentia falta daquele bilhete. Á. correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim seria vencedor. Um dia o outro revelaria tudo, forçoso não interrompê-la.
No portão dava o braço à companheira, não se falavam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanhava o envelope e, antes de abri-lo, andava com ele pela casa. Em seguida escondia um cabelo na dobra, deixava-o na mesa.
Sempre achou o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se lembrava, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?
Uma tarde abriu a porta e aspirou o ar. Deslizou os dedos sobre os móveis: pó. Tateou a terra dos vasos: seca. Direito ao quarto de janelas fechadas e acendeu a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido branco ensanguentado. Deixou-a de olhos abertos.
Não sentiu piedade, havia sido justo. A polícia o mandou em paz, não estava em casa à hora em que a mulher se suicidara. Quando o enterro saiu, os vizinhos comentaram a sua dor profunda, não chorava. Segurando uma alça do caixão, ajudou a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, foi-se embora.
Entrou na sala, viu a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.
Acendeu o abajur de seda verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha.
Sábado, recordou-se. Pessoa alguma tinha poder de fazer-lhe mal. A mulher pagara pelo crime.
Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua.
Um meio de saber, podia envelhecer tranquilo. Destinadas a ele, não viriam, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado, ninguém sabe, o enterro.
Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — um pouco de água na cova.
Saiu de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorriu com desdém da sua vaidade, ainda morta...
Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repetia, “fui justo” —, com mão firme girou a chave. Abriu a porta, pisou na carta e, sentando-se na poltrona, lia o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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