domingo, 14 de agosto de 2016

Os maiorais do município

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Os maiorais do município, governo e oposição, vinham de um grupo de famílias mais ou menos entrelaçadas, poderosas no Nordeste: Cavalcantis, Albuquerques, Siqueiras, Tenórios, Aquinos. Padre João Inácio era Albuquerque. O Comendador Badega, parente de todos os graúdos, autor de vários filhos naturais, esfarinhado em César Cantu, vestia cassineta esfiapada e ruça, usava chapéu de abas roídas e botas pretas com remendos amarelos.
Assim, de rebenque e esporas, entrou uma noite no paço municipal com um lote de caboclas novas e, ao som da harmônica, dançou valsas e quadrilhas até o nascer do sol. Apesar da comenda, os roceiros davam-lhe o título de capitão. De ordinário a gente da rua, excetuados os três meses de safra, descansava seis dias na semana. Em negócios raros buscava-se lucro exorbitante.
Pelos agudos frios da serra, andavam figuras solitárias, de mãos atrás das costas, em capotes escuros, como urubus arrepiados na garoa.
E findo o inverno, indivíduos loquazes reuniam-se em torno dos balcões, discutiam política, tesouravam o próximo. À tarde estabeleciam-se nas calçadas, à sombra. Os dados chocalhavam, as pedras estalavam nos tabuleiros de gamão.
E as discussões não tinham fim. Comentava-se a coragem do advogado Bento Américo, um que chegou a professor de direito e conseguiu fama por trajar mal e escrever sem verbos. Num discurso no júri, Bento Américo arremedara o Coronel Antônio de Aquino, chefe político: acendera um cigarro barato e pusera o pé em cima de uma cadeira. Esse discurso provocava admiração desmedida.
Fatos antigos se renovavam, confundiam-se com outros recentes, e as notícias dos jornais determinavam perturbações nos espíritos. Debatiam-se Canudos, a Revolta da Armada, a Abolição e a Guerra do Paraguai como acontecimentos simultâneos. A república, no fim do segundo quadriênio, ainda não parecia definitivamente proclamada. Realmente não houvera mudança na vila. Os mesmos jogos de gamão e solo transmitiam-se de geração a geração; as mesmas pilhérias provocavam as mesmas risadas. Certas frases decoravam-se, achavam meio de arranjar-se com outras de sentido contrário — e essas incompatibilidades firmavam-se nas mentes como artigos de fé.
Sem dúvida Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca eram grandes, tão grandes que, deixando a política, recebiam consagração popular e entravam nas emboladas:

Pedro Paulino, Leodoro, Loriano.
Foi a lei republicana
Que inventou guarda local.

Os frequentadores das calçadas conheciam dos generais famosos alguma coisa mais que os nomes truncados. Não percebiam neles virtudes públicas (isto ninguém estava em condições de notar), mas descobriam qualidades preciosas a um sertanejo: vigor e dissimulação. Aquela resposta de Floriano aos estrangeiros causava entusiasmo. Bichão, sim senhor: prendia deportava, não receava caretas.
Deodoro é que havia procedido mal. No começo da vida era um pobrezinho, e D. Pedro o recolhera, educara, dera-lhe posição e dragonas. Em paga de lautos favores, uma rasteira no protetor bambo. Ingrato. Devia ter esperado que o velhinho desse o couro às varas.
Meu pai, negociante, concordava com todos. Tinha às vezes, porém, idéias próprias, que não chocavam as outras. No 15 de Novembro enxergava um herói, o Barão de Ladário, desconhecido antes da revolta, nascido para resistir à prisão, receber tiros, não permitir que se derrubasse a monarquia suavemente.
Esse pouco sangue bastava. E meu pai, livre de leituras, livre de sentimentos belicosos, viu no ministro uma glória incomparável. Esqueceu-o depois completamente, deixou de aludir a qualquer espécie de bravura. Tinha imaginação fraca e era bastante incrédulo. Aborrecia os ateus, mas só acreditava no contas-correntes e nas faturas. Desconfiava dos livros, que papel agüenta muita lorota, e negou obstinadamente os aeroplanos. Em 1934 considerava-os duvidosos. Talvez até admitisse o Barão de Ladário como personagem de ficção.
Graciliano Ramos, in Infância

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