terça-feira, 2 de agosto de 2016

Memórias inventadas - IV

https://neurosefreudiana.files.wordpress.com/2010/12/picasso.jpg 
Mulher chorando (1937), de Pablo Picasso 

Tentei montar com aquele meu amigo que tem um olhar
descomparado, uma Oficina de Desregular a Natureza.
Mas faltou dinheiro na hora para a gente alugar um
espaço. Ele propôs que montássemos por primeiro a
Oficina em alguma gruta. Por toda parte existia gruta,
ele disse. E por de logo achamos uma na beira da
estrada. Ponho por caso que até foi sorte nossa. Pois
que debaixo da gruta passava um rio. O que de melhor
houvesse para uma Oficina de Desregular Natureza!
Por de logo fizemos o primeiro trabalho. Era o
Besouro de olhar ajoelhado. Botaríamos esse Besouro
no canto mais nobre da gruta. Mas a gruta não tinha
canto mais nobre. Logo apareceu um lírio pensativo
de sol. De seguida o mesmo lírio pensativo de chão.
Pensamos que sendo o lírio um bem da natureza
prezado por Cristo resolvemos dar o nome ao trabalho
de Lírio pensativo de Deus. Ficou sendo. Logo fizemos
a Borboleta beata. E depois fizemos Uma ideia
de roupa rasgada de bunda. E A fivela de prender silêncios.
Depois elaboramos A canção para a lata defunta.
E ainda a seguir: O parafuso de veludo, O prego
que farfalha, O alicate cremoso. E por último aproveitamos
para imitar Picasso com A moça com o olho no centro
da testa. Picasso desregulava a natureza, tentamos
imitá-lo. Modéstia à parte.
Manoel de Barros

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