Átila Iório (Fabiano) no filme Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos
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Eco! ecô!
Baleia
voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As crianças
divertiram-se, animaram-se, e o espírito de Fabiano se destoldou.
Aquilo é que estava certo. Baleia não podia achar a novilha num
banco de macambira, mas era conveniente que os meninos se
acostumassem ao exercício fácil - bater palmas, expandir-se em
gritaria, seguindo os movimentos do animal. A cachorra tornou a
voltar, a língua pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do
grupo, satisfeito com a lição, pensando na égua que ia montar, uma
égua que não fora ferrada nem levara sela. Haveria na catinga um
barulho medonho.
Agora
queria entender-se com Sinha Vitória a respeito da educação dos
pequenos. Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da
casa, regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao
bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os
filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam
perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância.
Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.
-
Está aí.
Se
aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca
ficaria satisfeito.
Lembrou-se
de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado
era seu Tomás da bolandeira. Porquê? Só se era porque lia demais.
Ele,
Fabiano, muitas vezes dissera: - “seu Tomás, vossemecê não
regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás
se estrepa, igualzinho aos outros.” Pois viera a seca, o pobre do
velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole.
Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não
podia aguentar verão puxado.
Certamente
aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomás da bolandeira
passava, amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, pé
aqui, pé acolá, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se. E seu
Tomás respondia tocando na beira do chapéu de palha, virava-se para
um lado e para outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas
pretas com remendos vermelhos.
Em
horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras
difíceis, truncando tudo, o convencia-se de que melhorava. Tolice.
Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para
falar certo.
Seu
Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de
jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem
remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas
todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?
Os
outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por exemplo, berrava
sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela
para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o
proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque
podia descompor, o Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de
couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se.
Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e
o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha
dúvida?
Fabiano,
uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos
esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo de fábrica,
perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro cru, mas ao sair
largaria tudo ao vaqueiro que o substituísse.
Sinha
Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da
bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas
sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de
passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o
mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de
trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau.
Olhou
a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não
ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre
tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender,
antes de nascer, sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos
ruins. A desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia
a pena trabalhar.
Ele
marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as
alpercatas - ela se avizinhando a galope, com vontade de matá-lo.
Virou
o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeu- se. Não queria
morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente
importante como seu Tomás da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas
Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se com força para brigar com
ela e vencê-la. Não queria morrer. Estava escondido no mato como
tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a
cabeça levantada, seria homem.
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Um homem, Fabiano.
Graciliano
Ramos, in Vidas secas
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