terça-feira, 21 de junho de 2016

O cachimbo de Felizbento

Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira do encantamento a verdade se casa à estória. O que aqui vou relatar se passou em terra sossegada, dessa que recebe mais domingos que dias de semana.
Aquele chão ainda estava a começar, recém-recente. As sementes ali se davam bem, o verde se espraiando em sumarentas paisagens. A vida se atrelava no tempo, as árvores escalando alturas. Um dia, porém, ali desembarcou a guerra, capaz de todas as variedades da morte. Em diante, tudo mudou e a vida se tornou demasiado mortal.
Vieram da Nação apressados funcionários. Os delegados da capital sempre cumprem pressas quando estão longe de sua origem. E avisaram que os viventes tinham que sair, convertidos de habitantes em deslocados. Motivos da segurança. Chamaram um por um, em ordem analfabética. Chegou-se a vez de Felizbento. O velho escutou, incrédulo como o sapo que comeu a cobra. Sua única substância foi um suspiro. Ficou como estava, enrolando a alma. Os outros se resumiram, embrulho e vulto, nas traseiras dos camiões. Mas Felizbento se deixou imóvel. O funcionário chefiou a situação, ordenando que se depressasse. Que fosse, igual aos outros.
Não ouviu a ordem? Agora, implementa.
Felizbento deu uma segunda demão no silêncio, esfregou um pé no outro. Puxava lustro em pé descalço? Ou apontava o chão, lugar único de sua existência? Sempre calara suas dores, mais fornecido de paciência do que de idade. Finalmente, apontou a vaga mata e falou:
Se vou sair daqui tenho que levar todas essas árvores.
O nacional funcionário economizou paciência e lhe disse que, mais semana, eles voltariam para o carregarem, nem que fosse à bruta força. E foram.
No dia sequente, o homem pôs-se a desenterrar as árvores, escavando pelas raízes. Começou pela árvore sagrada do seu quintal. Trabalhou fundo: lá onde ia covando já se desabria um escuro total. Para dar seguimentos na fundura passou a levar um petromax, desses que trouxera do Johnne. E tempo após tempo, se demorou nesse serviço.
Sua esposa lhe apontava, desapontada, a incondizência de seus atos. Nem valia a pena perguntar nada a Felizbento. Roupa de morto já não se amarrota. Teima de velho não se desfigura. A senhora ficava à janela como um relógio parado. No escuro da noite, a velha só via a locomoção do petromax, parecia nenhuma mão lhe segurava.
Aflita a mulher desenhou o plano. Ela se ofereceria, imitando os tempos em que seus corpos desacreditavam ter limite. Foi ao fundo dos armários, onde nem as baratas ousam. Tirou a saia de flores, os sapatos de bico e ponta. E lhe fez noturna espera, roupa e cheiros a apetecerem. Lembrava as antigas palavras de Felizbento, nesses outroras:
Se é para namorar o melhor é a noite.
Os que já namoraram diverso e variado sabem o quentinho do escuro, leito do leito. De noite, os seres mudam seu valor. O dia mostra os defeitos do mundo: rugas, poeiras, vincos, tudo na luz se vê. À noite se olha mais, se vê menos. Cada ser se revela apenas pela luz que dele emana. E ela, nessa noite, produzia suave clareza que nem lua.
Felizbento chegou de sua labuta, olhou a mulher num raspão. Ficou como que encalhado, perdida a água de sua viagem. A mulher se aproximou, tocando em seus braços. Se apresentava dona de si mesma: essa era sua irrecusável beleza.
Esta noite fique comigo. Deixe as árvores, Felizbento.
O velho ainda hesitou uma tontura. A mulher nele se envolveu, em dedilhar de trepadeira. Felizbento se sentia como água dentro do peixe. Que seria aquilo? Alma deste mundo? Foi quando ela, sem querer, pisou com seu sapato de ponta o pé descalço do marido. Foi como pico em balão. O camponês recuou, resolvido. Machado de volta à mão ele reentrou no escuro.
Certo dia, Felizbento veio à superfície e pediu à mulher que lhe desmalasse o fato, preparasse a devida roupa, engomasse os terilenes. Há mais de trinta anos que aquela roupa não cumpria cerimônia. Os sapatos já nem lhe cabiam. Os pés tinham tomado a disforme forma da descalcidão. Não havia, aliás, sapatos que lhe coubessem.
Levou os antigos sapatos assim mesmo, meio enfiados, calcando os calcanhares. Arrastava-os pelo chão, não fossem separar-se os pés dos passos. E lá foi, dobrado como caniço, nessa infância que só na velhice se encontra. Foi entrando na terra e só uma vez se virou. Não para as despedidas mas para remexer nos bolsos um esquecimento. O cachimbo! Remexeu os interiores da roupa. Tirou o velho cachimbo e revirou-o sob a luz trêmula do candeeiro. Depois, com gesto desanimado, atirou-o fora. Era como se atirasse toda a sua vida.
O cachimbo lá ficou, remoto e esquecido, meio enterrado na areia. Parecia a terra aspirava nele, fumando o inutensílio. Felizbento ingressou no buraco, desaparecendo.
Ainda hoje a mulher se debruça na cova e chama por ele. Mas sem gritar. Doce como se chamasse uma pessoa adormecida. Ainda ela usa o vestido das flores, sapatos de ponta e o cheiro com que, em desesperança, ainda tentou a tentação de Felizbento. Depois ela se recolhe, apagada. Só os olhos, em redonda insistência, semelham coruja com insónia. Que sonhos convidam aquela mulher a existir?
Os que voltaram ao lugar dizem que, sob a árvore sagrada, cresce agora uma planta fervorosa de verde, trepando em invisível suporte. E asseguram que tal arvorezinha pegou de estaca, brotando de um qualquer cachimbo remoto e esquecido. E, na hora dos poentes, quando as sombras já não se esforçam, a pequena árvore esfumaça, igual uma chaminé. Para a esposa, não existe dúvida: em baixo de Moçambique, Felizbento vai fumando em paz o seu velho cachimbo. Enquanto espera a maiúscula e definitiva Paz.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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