terça-feira, 22 de setembro de 2015

Pensar

O Pensador Rodin
O Pensador, de Rodin

Quando eu era menino, na escola as professoras me ensinaram que o Brasil estava destinado a um futuro grandioso porque as suas terras estavam cheias de riquezas: ferro, ouro, diamantes, florestas e coisas semelhantes. Ensinaram errado. O que me disseram equivale a predizer que um homem será um grande pintor por ser dono de uma loja de tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as ideias que moram na cabeça do pintor. São as ideias dançantes na cabeça que fazem as tintas dançar sobre a tela.
Por isso, sendo um país tão rico, somos um povo tão pobre, somos pobres em ideias. Não sabemos pensar. Nisto nos parecemos com os dinossauros, que tinham excesso de massa muscular e cérebros de galinha. Hoje nas relações de troca entre os países, o bem mais caro, o bem mais cuidadosamente guardado, o bem que não se vende, são as ideias. É com as ideias que o mundo é feito. Prova disso são os tigres asiáticos, Japão, Coreia, Formosa, que pobres de recursos naturais, se enriqueceram por ter se especializado na arte de pensar.
Minha filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?”. Disse-me que esta era uma pergunta que o professor de filosofia havia imposto à classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro, por ter ido diretamente à questão essencial. Segundo, por ter tido a sabedoria de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque se tivesse dado a resposta, teria com ela cortado as asas do pensamento. O pensamento é como a águia que só alça voo nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal para o pensamento que o ensino das respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.
E, no entanto, não podemos viver sem respostas. As asas, para o impulso inicial do voo, dependem dos pés apoiados na terra firme. Os pássaros, antes de saber voar, aprendem a se apoiar sobre os seus pés. Também as crianças, antes de aprender a voar têm de aprender a caminhar sobre a terra firme.
Terra firme: as milhares de perguntas para as quais as gerações passadas já descobriram as respostas. O primeiro momento da educação é a transmissão desse saber. Nas palavras de Roland Barthes: “Há um momento em que se ensina o que se sabe…” E o curioso é que este aprendizado é justamente para nos poupar da necessidade de pensar.
As gerações mais velhas ensinam às mais novas as receitas que funcionam. Sei amarrar os meus sapatos, automaticamente, sei dar o nó na minha gravata automaticamente: as mãos fazem o trabalho com destreza enquanto as ideias andam por outros lugares. Aquilo que um dia eu não sabia me foi ensinado; eu aprendi com o corpo e esqueci com a cabeça. E a condição para que as minhas mãos saibam bem é que a cabeça não pense sobre o que elas estão fazendo. Um pianista que, na hora da execução, pensa sobre os caminhos que seus dedos deverão seguir, tropeçará fatalmente. Há a história de uma centopeia que andava feliz pelo jardim, quando foi interpelada por um grilo: “Dona centopeia, sempre tive a curiosidade sobre uma coisa: quando a senhora anda, qual, dentre as suas cem pernas, é aquela que a senhora movimenta primeiro?”. “Curioso”, ela respondeu. “Sempre andei, mas nunca me propus esta questão. Da próxima vez, prestarei atenção”. Termina a história dizendo que a centopeia nunca mais voltou a andar.
Todo mundo fala, e fala bem. Ninguém sabe como a linguagem foi ensinada e nem como ela foi aprendida. A despeito disso, o ensino foi tão eficiente que não preciso pensar em falar. Ao falar, não sei se estou usando um substantivo, um verbo ou um adjetivo, e nem me lembro das regras da gramática. Quem, para falar, tem que se lembrar dessas coisas, não sabe falar. Há um nível de aprendizado em que o pensamento é um estorvo. Só se sabe bem com o corpo aquilo que a cabeça esqueceu. E assim escrevemos, lemos, andamos de bicicleta, nadamos, pregamos prego, guiamos carros: sem saber com a cabeça, porque o corpo sabe melhor. É um conhecimento que se tornou parte inconsciente de mim mesmo. E isso me poupa do trabalho de pensar o já sabido. Ensinar, aqui, é inconscientizar.
O sabido é o não pensado, que fica guardado, pronto para ser usado como receita, na memória deste computador que se chama cérebro. Basta apertar a tecla adequada para que a receita apareça no vídeo da consciência. Aperto a tecla moqueca. A receita aparecerá no meu vídeo cerebral: panela de barro, azeite, peixe, tomate, cebola, coentro, cheiro-verde, urucum, sal, pimenta, seguidos de uma série de instruções sobre o que fazer.
Não é coisa que eu tenha inventado. Me foi ensinado. Não precisei pensar. Gostei. Foi para a memória. Esta é a regra fundamental desse computador que vive no corpo humano: só vai para a memória aquilo que é objeto do desejo. A tarefa primordial do professor: seduzir o aluno para que ele deseje e, desejando, aprenda.
E o saber fica memorizado de cor – etimologicamente, no coração -, à espera de que o teclado desejo de novo o chame de seu lugar de esquecimento.
Memória: um saber que o passado sedimentou. Indispensável para se repetir as receitas que os mortos nos legaram. E elas são boas. Tão boas que nos fazem esquecer que é preciso voar. Permitem que andemos pelas trilhas batidas. Mas nada têm a dizer sobre os mares desconhecidos. Muitas pessoas, de tanto repetir as receitas, metamorfosearam-se de águias em tartarugas. E não são poucas as tartarugas que possuem diplomas universitários. Aqui se encontra o perigo das escolas: de tanto ensinar o que o passado legou – e ensinou bem – fazem os alunos se esquecer de que o seu destino não é passado cristalizado em saber, mas um futuro que se abre como vazio, um não-saber que somente pode ser explorado com as asas do pensamento. Compreende-se então, que Barthes tenha dito que, seguindo-se ao tempo em que se ensina o que se sabe, deve chegar o tempo em que se ensina o que não se sabe.
Rubem Alves

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