O Pensador, de Rodin
Quando
eu era menino, na escola as professoras me ensinaram que o Brasil
estava destinado a um futuro grandioso porque as suas terras estavam
cheias de riquezas: ferro, ouro, diamantes, florestas e coisas
semelhantes. Ensinaram errado. O que me disseram equivale a predizer
que um homem será um grande pintor por ser dono de uma loja de
tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as ideias que
moram na cabeça do pintor. São as ideias dançantes na cabeça que
fazem as tintas dançar sobre a tela.
Por
isso, sendo um país tão rico, somos um povo tão pobre, somos
pobres em ideias. Não sabemos pensar. Nisto nos parecemos com os
dinossauros, que tinham excesso de massa muscular e cérebros de
galinha. Hoje nas relações de troca entre os países, o bem mais
caro, o bem mais cuidadosamente guardado, o bem que não se vende,
são as ideias. É com as ideias que o mundo é feito. Prova disso
são os tigres asiáticos, Japão, Coreia, Formosa, que pobres de
recursos naturais, se enriqueceram por ter se especializado na arte
de pensar.
Minha
filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?”. Disse-me que esta
era uma pergunta que o professor de filosofia havia imposto à
classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro, por ter ido
diretamente à questão essencial. Segundo, por ter tido a sabedoria
de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque se tivesse dado a
resposta, teria com ela cortado as asas do pensamento. O pensamento é
como a águia que só alça voo nos espaços vazios do desconhecido.
Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal
para o pensamento que o ensino das respostas certas. Para isso
existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar
as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme.
Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.
E,
no entanto, não podemos viver sem respostas. As asas, para o impulso
inicial do voo, dependem dos pés apoiados na terra firme. Os
pássaros, antes de saber voar, aprendem a se apoiar sobre os seus
pés. Também as crianças, antes de aprender a voar têm de aprender
a caminhar sobre a terra firme.
Terra
firme: as milhares de perguntas para as quais as gerações passadas
já descobriram as respostas. O primeiro momento da educação é a
transmissão desse saber. Nas palavras de Roland Barthes: “Há um
momento em que se ensina o que se sabe…” E o curioso é que este
aprendizado é justamente para nos poupar da necessidade de pensar.
As
gerações mais velhas ensinam às mais novas as receitas que
funcionam. Sei amarrar os meus sapatos, automaticamente, sei dar o nó
na minha gravata automaticamente: as mãos fazem o trabalho com
destreza enquanto as ideias andam por outros lugares. Aquilo que um
dia eu não sabia me foi ensinado; eu aprendi com o corpo e esqueci
com a cabeça. E a condição para que as minhas mãos saibam bem é
que a cabeça não pense sobre o que elas estão fazendo. Um pianista
que, na hora da execução, pensa sobre os caminhos que seus dedos
deverão seguir, tropeçará fatalmente. Há a história de uma
centopeia que andava feliz pelo jardim, quando foi interpelada por um
grilo: “Dona centopeia, sempre tive a curiosidade sobre uma coisa:
quando a senhora anda, qual, dentre as suas cem pernas, é aquela que
a senhora movimenta primeiro?”. “Curioso”, ela respondeu.
“Sempre andei, mas nunca me propus esta questão. Da próxima vez,
prestarei atenção”. Termina a história dizendo que a centopeia
nunca mais voltou a andar.
Todo
mundo fala, e fala bem. Ninguém sabe como a linguagem foi ensinada e
nem como ela foi aprendida. A despeito disso, o ensino foi tão
eficiente que não preciso pensar em falar. Ao falar, não sei se
estou usando um substantivo, um verbo ou um adjetivo, e nem me lembro
das regras da gramática. Quem, para falar, tem que se lembrar dessas
coisas, não sabe falar. Há um nível de aprendizado em que o
pensamento é um estorvo. Só se sabe bem com o corpo aquilo que a
cabeça esqueceu. E assim escrevemos, lemos, andamos de bicicleta,
nadamos, pregamos prego, guiamos carros: sem saber com a cabeça,
porque o corpo sabe melhor. É um conhecimento que se tornou parte
inconsciente de mim mesmo. E isso me poupa do trabalho de pensar o já
sabido. Ensinar, aqui, é inconscientizar.
O
sabido é o não pensado, que fica guardado, pronto para ser usado
como receita, na memória deste computador que se chama cérebro.
Basta apertar a tecla adequada para que a receita apareça no vídeo
da consciência. Aperto a tecla moqueca. A receita aparecerá no meu
vídeo cerebral: panela de barro, azeite, peixe, tomate, cebola,
coentro, cheiro-verde, urucum, sal, pimenta, seguidos de uma série
de instruções sobre o que fazer.
Não
é coisa que eu tenha inventado. Me foi ensinado. Não precisei
pensar. Gostei. Foi para a memória. Esta é a regra fundamental
desse computador que vive no corpo humano: só vai para a memória
aquilo que é objeto do desejo. A tarefa primordial do professor:
seduzir o aluno para que ele deseje e, desejando, aprenda.
E
o saber fica memorizado de cor – etimologicamente, no coração -,
à espera de que o teclado desejo de novo o chame de seu lugar de
esquecimento.
Memória:
um saber que o passado sedimentou. Indispensável para se repetir as
receitas que os mortos nos legaram. E elas são boas. Tão boas que
nos fazem esquecer que é preciso voar. Permitem que andemos pelas
trilhas batidas. Mas nada têm a dizer sobre os mares desconhecidos.
Muitas pessoas, de tanto repetir as receitas, metamorfosearam-se de
águias em tartarugas. E não são poucas as tartarugas que possuem
diplomas universitários. Aqui se encontra o perigo das escolas: de
tanto ensinar o que o passado legou – e ensinou bem – fazem os
alunos se esquecer de que o seu destino não é passado cristalizado
em saber, mas um futuro que se abre como vazio, um não-saber que
somente pode ser explorado com as asas do pensamento. Compreende-se
então, que Barthes tenha dito que, seguindo-se ao tempo em que se
ensina o que se sabe, deve chegar o tempo em que se ensina o que não
se sabe.
Rubem
Alves
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