domingo, 30 de agosto de 2015

A gorda indiana

-"Quero ser como a flor que morre antes de velhecer”.
Assim dizia Modari, a gorda indiana. Não morreu, não envelheceu. Simplesmente, engordou ainda mais. Finda a adolescência, ela se tinha imensado, planetária. Atirada a um leito, tonelável, imobilizada, enchendo de mofo o fofo estofo. De tanto viver em sombra ela chegava de criar musgos nas entrecarnes.
A vida dela se distraía. Lhe ligavam a televisão e faziam desnovelar novelas. Modari chorava, pasmava e ria com sua voz aguçada, de afinar passarinho. Nos botões do controlo remoto ela se apoderava do mundo, tudo tão fácil, bastava um toque para mudar de sonho. Rebobinar a vida, meter o tempo em pausa. Afinal, o destino está ao alcance de um dedo. Moda ri, de dia, noturna. De noite, diurna. No ecrã luminoso a moça descascava o tempo.
Tanta substância, porém, lhe desabonava a força. A gorda não se sustinha de tanto sustento. Não tinha levante nem assento. Desempregada estava sua carne, flácido o corpo em imitação de melancia recheada. Uma simples ideia lhe fazia descair a cabeça. Já a família sabia: se era ideia bondosa descaía para o lado esquerdo. Ideia má lhe pesava no ombro direito.
Em abono da estória se diga: ela se sujava ali mesmo, em plenas carnes. À hora certa, um empregado lhe vinha lavar. Despia a moça e lhe pedia licenças para passar toalhas perfumadas pelas concavidades, folhos e pregas. Lhe pegava, virava e desfraldava com o esforço do pescador de baleia. Depois, lhe deixava assim, nua, como uma montanha capturando frescos. Por fim, lhe ajudava a vestir uma combinação leve, transparente. O empregado nem era delicado. Mas ela se amolecia com o roçar das mãos dele. E adormecia, controlo remoto na mão.
Para não definhar, longe das vividas vistas, lhe abriram uma janela no quarto. Partiram a parede, levantaram tempestades de poeira. Impossível de ser deslocada, cobriram a gorda com um plástico. Modari espirrava em soprano, mais aflita com o aparelho televisivo que com seus pulmões.
Certo um dia ali chegou um viajeiro. O migrante lhe trouxe panos, cores e perfumes da Índia. Era um homem sóbrio, sozinhoso. Ele a olhou e, de pronto, se apaixonou de tanto volume.
– “Você tem tanta mulher dentro de si que eu, para ser polígamo, nem precisava de mais nenhuma outra”.
O homem amava Modari mas tinha dificuldade em chegar a vias do facto. Com paixão ele suspirava: “se um dia eu conseguir praticar-me com você!…”. Mas ele devia atravessar mais carne que magaíça mineirando nas profundezas.
– “De hoje em diante não quero nenhum empregado mexendo em você”.
Ele mesmo passou a lavá-la. Modari se tornou muito lavadiça e o homem lhe enxugava, aplicava pós medicinais, esfregava com loções. Foi num desses lavamentos que o acto se consumou. O visitante lhe empurrou as pernas como se destroncasse imbondeiros. Fizeram amor, nem se sabe como ele conseguiu descer tão fundo nas grutas polposas dela. Modari, a seguir, se sentiu leve. Controlo remoto na mão, ela então tomou consciência que, em nenhum momento do namoro, havia largado a caixinha de comando da televisão. Assim como estava, besuntada de transpiros, fez graça:
– “Meu amor, você prefere quê: entalado ou enlatado?”
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra

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