-"Quero ser como a flor que morre antes de velhecer”.
Assim dizia Modari, a gorda indiana. Não morreu, não envelheceu. Simplesmente, engordou ainda mais. Finda a adolescência, ela se tinha imensado, planetária. Atirada a um leito, tonelável, imobilizada, enchendo de mofo o fofo estofo. De tanto viver em sombra ela chegava de criar musgos nas entrecarnes.
A
vida dela se distraía. Lhe ligavam a televisão e faziam desnovelar
novelas. Modari chorava, pasmava e ria com sua voz aguçada, de
afinar passarinho. Nos botões do controlo remoto ela se apoderava do
mundo, tudo tão fácil, bastava um toque para mudar de sonho.
Rebobinar a vida, meter o tempo em pausa. Afinal, o destino está ao
alcance de um dedo. Moda ri, de dia, noturna. De noite, diurna. No
ecrã luminoso a moça descascava o tempo.
Tanta
substância, porém, lhe desabonava a força. A gorda não se
sustinha de tanto sustento. Não tinha levante nem assento.
Desempregada estava sua carne, flácido o corpo em imitação de
melancia recheada. Uma simples ideia lhe fazia descair a cabeça. Já
a família sabia: se era ideia bondosa descaía para o lado esquerdo.
Ideia má lhe pesava no ombro direito.
Em
abono da estória se diga: ela se sujava ali mesmo, em plenas carnes.
À hora certa, um empregado lhe vinha lavar. Despia a moça e lhe
pedia licenças para passar toalhas perfumadas pelas concavidades,
folhos e pregas. Lhe pegava, virava e desfraldava com o esforço do
pescador de baleia. Depois, lhe deixava assim, nua, como uma montanha
capturando frescos. Por fim, lhe ajudava a vestir uma combinação
leve, transparente. O empregado nem era delicado. Mas ela se amolecia
com o roçar das mãos dele. E adormecia, controlo remoto na mão.
Para
não definhar, longe das vividas vistas, lhe abriram uma janela no
quarto. Partiram a parede, levantaram tempestades de poeira.
Impossível de ser deslocada, cobriram a gorda com um plástico.
Modari espirrava em soprano, mais aflita com o aparelho televisivo
que com seus pulmões.
Certo
um dia ali chegou um viajeiro. O migrante lhe trouxe panos, cores e
perfumes da Índia. Era um homem sóbrio, sozinhoso. Ele a olhou e,
de pronto, se apaixonou de tanto volume.
– “Você
tem tanta mulher dentro de si que eu, para ser polígamo, nem
precisava de mais nenhuma outra”.
O
homem amava Modari mas tinha dificuldade em chegar a vias do facto.
Com paixão ele suspirava: “se um dia eu conseguir praticar-me com
você!…”. Mas ele devia atravessar mais carne que magaíça
mineirando nas profundezas.
– “De
hoje em diante não quero nenhum empregado mexendo em você”.
Ele
mesmo passou a lavá-la. Modari se tornou muito lavadiça e o homem
lhe enxugava, aplicava pós medicinais, esfregava com loções. Foi
num desses lavamentos que o acto se consumou. O visitante lhe
empurrou as pernas como se destroncasse imbondeiros. Fizeram amor,
nem se sabe como ele conseguiu descer tão fundo nas grutas polposas
dela. Modari, a seguir, se sentiu leve. Controlo remoto na mão, ela
então tomou consciência que, em nenhum momento do namoro, havia
largado a caixinha de comando da televisão. Assim como estava,
besuntada de transpiros, fez graça:
– “Meu
amor, você prefere quê: entalado ou enlatado?”
Mia
Couto,
in Contos
do nascer da Terra
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