quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Dersu Uzala: O pequeno homem das montanhas


O explorador, cartógrafo e escritor Vladimir Arseniev percorreu a taiga da região siberiana do Uçuri ao longo de mais de vinte anos de expedições. Numa delas, em 1902, conheceu o caçador nômade Dersu Uzala. Nasceu entre os dois uma profunda amizade, que o escritor reconstruiu no livro Dersu Uzala, publicado em 1923, em que se baseia o filme homônimo que Akira Kurosawa dirigiu em 1975.
Fascinado por Dersu desde o começo, o Capitão, como o gold costumava chamá-lo, estreitou em pouco tempo um profundo vínculo afetivo com aquele pequeno homem da floresta. Nasceu entre os dois uma relação de intensa amizade, de mútuo respeito e de recíproca admiração. Durante as três expedições em que Arseniev ficou ao lado de Dersu – além da de 1902 em que se conheceram, estiveram juntos em mais duas de, respectivamente, 1906 e 1907 – o caçador lhe salvou a vida em várias ocasiões graças à sua atenção sempre desperta e aguçada, à sua sensibilidade sensorial extremamente afinada, à sua generosidade e o seu desprendimento. Da mesma forma, Arseniev contribuiu em algumas ocasiões a tirar o amigo de perigos, o ajudou na caça, serviu-lhe de prótese visual quando seus olhos começaram a falhar-lhe.
À medida que ia conhecendo melhor o gold, Arseniev o admirava e apreciava mais e sua relação simbiótica com a taiga, seus sentidos sempre vígeis e alertas, sua audição, seu olfato e sua sensibilidade tátil extremamente sutis, sua incrível capacidade de perceber os mínimos movimentos, as mais leves variações do ambiente ao seu redor, de prever mudanças climáticas, perigos ou circunstâncias favoráveis, de interpretar os sinais do vivo e do não vivo, sua formidável intuição fizeram com que o Capitão se sentisse confiante quando estava do lado dele.
Arseniev e Dersu tinham distintas estratégias de interação com o ambiente: o caçador gold praticava uma atenção plena para as mais diversas manifestações da natureza, enquanto a atenção do escritor estava direcionada para elementos previamente concebidos como significativos dentro de suas grades conceituais. Tinham diferentes percepções da taiga e de si mesmos com relação a ela: Dersu a via como uma teia complexa de inter-retroações da qual se sentia apenas mais um fio; Arseniev a experienciava como um imponente cenário, um imenso palco no qual encenava o drama épico de suas expedições. Suas representações dos fenômenos do domínio do vivo e do não vivo e seus sistemas de significações eram muito distantes. Mesmo assim, Arseniev e Dersu respeitavam e admiravam reciprocamente suas distintas maneiras de ser e estar no mundo, faziam-nas dialogar, reconheciam seu valor e sua pertinência, amiúde sua convivência fazia-as se compenetrarem, se contaminarem, se hibridarem.
As estratégias de interação com o ambiente de Dersu em diversas ocasiões “contaminam” Arseniev, despertando-lhe uma atenção mais sutil para as mais diversas manifestações e movimentos do ambiente ao seu redor. Além da pertinência – estabelecida por Arseniev pela “comprovação” das afirmações do amigo através da experiência – das inferências realizadas pelo gold a partir de indícios sensoriais percebidos no ambiente, o que mais “deslumbrava” o explorador era a atitude cognitiva a partir da qual Dersu as construía. Elementos para os quais não atentava devido à insignificância deles para o seu sistema de organização da experiência forjado em ambientes urbanos e científico-acadêmicos como, por exemplo, as configurações dos troncos de determinadas árvores e o que estava no chão debaixo delas, passaram a entrar em seu campo de percepção sensorial, sua atenção começou a direcionar-se para aspectos do vivo e do não vivo que antes não considerava relevantes e, consequentemente, passavam-lhe despercebidos. A incrível – pelo menos para ele, nascido na cidade – afinação sensorial de Dersu instilava-lhe uma extrema confiança no amigo e estimulava-o a adotar pelo menos em parte estratégias de interação com os ecossistemas da taiga semelhantes às do caçador. Esta relação lhe propiciou muitos novos aprendizados. A convivência com Dersu também instigou Arseniev, o tempo todo, a redefinir representações que tinha construído sobre o mundo a partir de sua experiência urbana e dos sistemas de significados, de pré-conceitos dos quais tinha se impregnado em ambientes científico-acadêmicos, como a suposta dicotomia entre homem “primitivo” e homem“civilizado”.
Mas troca de estratégias de interação com o ambiente e de saberes entre o escritor e o caçador não afetou apenas Arseniev: Dersu também saiu enriquecido desta convivência, na qual aprendeu a observar a realidade de formas diferentes das que estava acostumado, como a associação entre seu aparelho perceptivo a algumas próteses tecnocientíficas (bússola, binóculo), e incorporou novos conhecimentos que lhes resultaram pertinentes para o contexto do qual sentia-se parte. Tudo isso mostra, a meu ver, quão rica foi a convivência de Arseniev com Dersu e como ela foi capaz de originar novos conhecimentos e novas formas híbridas de interagir e imputar sentido ao mundo.
Um recurso narrativo do filme de Akira Kurosawa expressa a intensidade da relação que se construiu entre os dois amigos. Uma sequência de fotografias em preto e branco que imortalizam fragmentos do cotidiano na taiga de Arseniev, Dersu e os demais homens da expedição, com um fundo musical alegre e descontraído, pára de repente quando chega a uma em que os dois, sentados juntos aos cossacos, entrecruzam sorrindo seus olhares. A câmera realiza então um zoom que foca, em primeiro plano, este olhar entre o explorador e o caçador, um olhar que transmite à flor da pele os seus sentimentos de cumplicidade, de afeto, de respeito, de confiança e de admiração mútua.
Mas Kurosawa, a meu ver, vai além da reconstrução da amizade entre o explorador e o caçador: talvez intuindo essa recíproca codefinição de Dersu e da taiga, transforma esta última em mais um ator da história narrada, evitando a tentação de reduzi-la a um simples “cenário”. No filme os primeiros planos de figuras humanas são raríssimos: quase toda a ação desenvolve-se em planos de conjunto, em que humanos e não humanos parecem ter a mesma importância dramática e há, além do mais, belíssimas e longas sequências em que a taiga é a única protagonista.
Texto completo aqui.

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