Fazia um dia lindo. O ar ao longo da praia era desses de
lavar a alma. O meu fusca deslizava dócil e macio no asfalto, eu ia para a
cidade feliz da vida. Tomara o meu banho, fizera a barba e, metido além do mais
num terno novo, saíra para enfrentar com otimismo a única perspectiva sombria
naquela manhã de cristal: a da hora marcada no dentista.
Mais eis que o sinal se fecha na Avenida Princesa Isabel e um
rapazinho humilde se aproxima de meu carro, pedindo com voz tímida:
– Moço, o senhor podia me dar uma carona até a cidade?
O que mais me impressionou foi a espontaneidade com que
respondi tranquilamente:
– Eu não vou até a cidade, meu filho.
Havia no meu tom algo de paternal e compassivo, mas que
suficiência na minha voz! Que segurança no meu destino! Mal tive tempo de olhar
o rapazinho e o sinal se abria, o carro arrancava em meio aos outros, a caminho
da cidade.
Logo uma voz que não era a minha saltou dentro de mim:
– Por que você mentiu?
Tentei vagamente justificar-me, alegando ser imprudente,
tantos casos de assalto…
– Assalto? A esta hora? Neste lugar? Com aquele jeito
humilde? Ora, não seja ridículo.
Protestei contra a voz, mandando que se calasse: eu não
admitia impertinência. E nem bem entrara no túnel, já concluía que fizera muito
bem, por que diabo ele não podia tomar um ônibus? Que fosse pedir a outro,
certamente seria atendido. Mas a voz insistia: eu bem vira pelo espelho
retrovisor que alguém mais, atrás de mim, também se recusara, despachando-o com
um gesto de enfado. Nem ao menos tinha dado uma desculpa qualquer como eu
fizera. Não contaria com ninguém, o pobre diabo. Como os mais afortunados podem
ser assim insensíveis! Era óbvio que ele não dispunha de dinheiro para o ônibus
e ficaria ali o dia todo.
E eu no meu carro, de corpo e alma lavada todo catita no meu
terninho novo. Comecei a aborrecer o terno novo, já me parecia mesmo
ligeiramente apertado. Dentro do túnel a voz agora ganhava o eco da própria voz
de Deus!
- Não custava nada levá-lo.
Não, Deus não podia ser tão chato: que importância tinha
conceder ou negar uma simples carona? Pois então eu ficasse sabendo que aquele
simplesmente era o teste, o Grande Teste da minha existência de homem. Se eu
pensava que Deus fosse me esperar numa esquina da vida para me oferecer
solenemente numa bandeja a minha oportunidade de Salvação, eu estava muitíssimo
enganado: ali é que Ele decidia o meu destino. Pusera aquele sujeitinho no meu
caminho para submeter-me à prova definitiva. Era um enviado Seu, e a humildade
do pedido fora apenas para disfarçar – Deus é muito disfarçado. Agora o terno
novo me apertava, a gravata me estrangulava, e eu seguia diretamente para as
profundezas do inferno, deixando lá atrás o último Mensageiro, como um anjo
abandonado. Ao meu lado, no carro, só havia lugar para o demônio.
– Não tem dúvida: aquele cara me estragou o dia – resmunguei,
aborrecido, acelerando mais o carro a caminho da cidade.
Quando dei por mim, já no Botafogo, entrava no primeiro
retorno à esquerda, sem saber por que, de volta em direção ao túnel.
Imediatamente me revoltei contra aquela tolice, que apenas me faria perder o
dentista – o que, aliás, não seria mau. Mas era tarde, e o fluxo do tráfego
agora me obrigaria a refazer todo o percurso.
Como explicar-lhe, além do mais, sem perda de dignidade, que
havia mentido e voltara para buscá-lo? Certamente ele nem estaria mais lá.
Estava. Foi só fazer a volta na praia, e pude vê-lo no mesmo
lugar, ainda postulando condução. Detive o carro a seu lado. Gaguejei uma
desculpa qualquer, justificando meu regresso, que ele mal escutou. Aceitou logo
a carona que eu lhe oferecia, sentou-se a meu lado como se fosse a coisa mais
natural do mundo eu ter voltado para buscá-lo.
Era mesmo um rapazinho que
pedia condução porque não tinha dinheiro para o ônibus. Desempregado, ia para a
cidade por não saber mais para onde ir – o que já é outra história. Só não me
pareceu que fosse um enviado de Deus: não perdi o dentista e, ainda por cima,
Deus houve por bem distinguir-me com um nervo exposto.
Fernando Sabino, in Manchete