(…) Também a porta da casa estava meio aberta. Uma
rajada de chuva açoitou meu rosto e entrei.
Dentro haviam tirado as lajotas e pisei num capim
desgrenhado. Um cheiro doce e nauseabundo penetrava na casa. À esquerda ou à
direita, não sei muito bem, tropecei numa rampa de pedra. Subi apressadamente.
Quase sem refletir, fiz girar a chave da luz.
A sala de jantar e a biblioteca de minhas
lembranças eram agora, derrubada a parede divisória, num único grande cômodo
desguarnecido, com um ou outro móvel. Não tentarei descrevê-las, porque não
estou seguro de tê-las visto, apesar de impiedosa luz branca. Vou me explicar.
Para ver uma coisa, é preciso compreendê-la. A poltrona pressupõem o corpo
humano, suas articulações e partes; as tesouras, o ato de cortar. Que dizer de
uma lâmpada ou veículo? O selvagem não pode perceber Bíblia do missionário; o
passageiro não vê o mesmo cordame que os homens de bordo. Se víssemos realmente
o universo, talvez o entendêssemos.
Nenhuma das
formas insensatas que aquela noite me deparou correspondia à figura humana ou a
algum uso concebível. Senti repulsa e terror. Num dos cantos descobri uma
escada vertical, que dava para outro andar. Entre os largos lanços de ferro,
que não passariam de dez, havia vãos irregulares. Aquelas escada, que postulava
mãos e pés, era compreensível e de algum modo de aliviou. Apaguei a luz e aguardei
algum tempo no escuro. Não ouvi o menor som, mas a presença das coisas
incompreensíveis perturbava-me. Afinal me decidi.
Jorge Luís Borges, in O livro de areia
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