“É o
resultado de ter sido criado entre nós - disse Faunia. - É o resultado de
passar toda a vida com pessoas como nós. A mancha humana - acrescentou, mas sem
repulsa, desprezo ou condenação. Nem sequer com tristeza. As coisas são como
são - à sua maneira seca e concisa, era só isso que ela estava a dizer à
rapariga que dava de comer à serpente: nós deixamos uma mancha, deixamos um
rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro,
excremento, sêmen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com
desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em
todos. Sopro interior.
Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de
que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A
mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda
e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma
anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é
aterradora. É demencial. O que á ânsia de purificar senão impureza?
Tudo
quanto estava a dizer acerca da mancha era que ela é inelutável. Essa era,
naturalmente, a visão de Faunia a esse respeito: as criaturas inevitavelmente
manchadas que nós somos. Resignada com a horrível imperfeição elementar. Ela é
como os Gregos, como os Gregos de Coleman. Como os seus deuses. Eles são
mesquinhos. Brigam. Lutam. Odeiam. Assassinam. Fodem. Zeus não quer fazer outra
coisa senão foder - deusas, mortais, bezerras, ursas -, e não apenas na sua própria
forma, mas também, ainda mais excitantemente, assumindo a forma visível de
animal. Para montar colossalmente uma mulher como um touro. Para a penetrar
excentricamente como um cisne branco de asas agitadas. Nunca há carne
suficiente para o rei dos deuses, nem carne nem perversidade. Toda a loucura
que o desejo gera. A devassidão. A depravação. Os prazeres mais grosseiros. E a
fúria da esposa que tudo vê.
Não o
deus hebraico, infinitamente só, infinitamente obscuro, monomaniacamente o
único deus que existe, existiu e jamais existirá, sem nada melhor para fazer do
que preocupar-se com os judeus. Nem o perfeitamente dessexuado homem-deus
cristão, e a sua mãe imaculada, e toda a culpa e vergonha que uma
espiritualidade sublime inspira. Antes, o Zeus grego, enredado em aventuras,
vivamente expressivo, caprichoso, sensual, exuberantemente ligado à sua própria
existência opulenta, tudo menos só e tudo menos oculto. Antes a mancha divina.
Uma grande religião refletora da realidade para
Faunia Farley se, por intermédio de Coleman, ela tivesse aprendido alguma coisa
a esse respeito. Pelos padrões da fantasia hubrística, feita à imagem de Deus,
sem dúvida, mas não do nosso: do deles. Deus devasso. Deus corrupto. Um deus da
vida, se algum houve. Deus à imagem do homem.”
Philip
Roth, in A
Mancha Humana
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