A pobre mãe deu Betinho àquele homem: agradasse ao tio
Galileu, com os dias contados, podia ser o herdeiro.
Depois de partir lenha, puxar água do poço, limpar o poleiro
do papagaio, o menino enxugava a louça para a cozinheira. Toda noite, Betinho
subia a escada, para levar o urinol e tomar a bênção ao tio Galileu. Batia na
porta: Entre, meu filho, O rapaz beijava a mão — branca, mole e úmida
mãe-d’água. No domingo recebia a menor moeda, que o padrinho catava entre os
nós do lenço xadrez.
Tio Galileu raramente saía e, ao tirar o paletó, exibia duas
rodelas de suor na camisa. Arrastava o pé, bufando, sempre a mão no peito.
Afagava o papagaio, que sacudia o pescoço e eriçava a penugem: Piolhinho... piolhinho... Subindo a escada, dedos
crispados no corrimão, isolava-se no quarto. O assobio através da porta:
alegria de contar o dinheiro?
Fechava a porta e conduzia a chave. Diante dele era feita a
limpeza, pelo rapaz ou pela negra, nunca por Mercedes. Sentado na cama, coçando
eterno pozinho na perna, vigiava. E não assobiava com alguém no quarto.
Instalado na cama que, essa, ele mesmo arrumava, sem permitir que virassem o
colchão de palha.
Mercedes fazia compras, perfumada e de sombrinha azul. O
homem discutia com ela, que o arruinava, por sua culpa sofria de angina.
Domingo, a negra de folga, Betinho preparava o café para
Mercedes. Abria a porta, esperava acomodar-se à penumbra do quarto e, ao pousar
a bandeja, sentia entre os lençóis a fragrância de maçã madura guardada na
gaveta.
Uma noite Mercedes surgiu no quarto de Betinho. Já deitado,
luz apagada. Sentou-se ao pé da cama, casara com tio Galileu por ser velho, a
anunciar que morria de uma hora para outra. Mentira, para iludir a pessoa e
servir-se dela. Não sofria do coração, nem sabia o que era coração, a esconder
mais dinheiro entre a palha. Ao crepitar o colchão lá no quarto o avarento
remexia no tesouro.
Um bruto, que a esquecia, dormindo em quarto separado, com
medo fosse roubá-lo. Ó diabo, ela o xingou, pesteado como o papagaio louco, que
a bicara ali no dedinho. O rapaz inclinou-se para beijar a unha de sangue.
Mercedes ergueu-se e jurou que, se o monstro morresse, daria a Betinho o que
lhe pedisse.
O rapaz não pôde dormir. Meia hora depois, saltou a janela.
Agarrou no poleiro o papagaio, cabeça escondida na asa — os piolhos corriam
pelo bico de ponta quebrada. Torceu o pescoço do bicho e o enterrou no quintal.
Dia seguinte o homem buscou a papagaio, a assobiar debaixo de
cada árvore. Betinho sugeriu que a ave fugira. Foi colocar o vaso sob a cama e,
ao tomar a bênção ao padrinho, o piolho correu de sua mão para a do velho — um
dos piolhos vermelhos da peste.
Mercedes voltou ao seu quarto. Reclinada na cadeira, amarrava
e desamarrava o cinto. Noite quente, queixou-se do calor, abriu o quimono:
inteirinha nua.
— Vá — disse a mulher. — Vá, meu bem. Primeiro o papagaio.
Agora o velho.
Betinho ficou de pé. Tremia tanto, ela o amparou até a porta:
— Vá, meu amor. A vez do velho.
Hora de pedir a bênção. Betinho subiu a escada. Aos passos no
corredor o avarento, entre a bulha do colchão, perguntava quem era. Aquela
noite nada falou. Betinho abriu a porta, avançou lentamente a cabeça. Tio
Galileu deitara-se vestido, o saquinho de fumo espalhado no colete de veludo. O
último cigarro, sem poder enrolar a palha com os dedos imóveis... Olho
arregalado, a boca negra não abençoou Betinho. Fazia-se de morto, nunca mais fingiria.
Tio Galileu não gritou. Nem mesmo fechou o olho, mais fácil
que o papagaio. Betinho afogou debaixo do travesseiro a boca arreganhada.
Os pés descalços de Mercedes desciam a escada. Ele ergueu o
colchão, rasgou o pano, revolveu a palha: nada. Deteve-se à escuta: os passos
perdidos da mulher. Avisá-la que o velho os enganara.
Era tarde, abria a janela aos gritos:
— Ladrão. Assassino!
Socorro...
Dalton Trevisan, in Novelas nada
exemplares
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