Imagem: Google
Não foi tanto o roubo da
torre Eiffel que me criou dificuldades, mas sim colocá-la de volta antes que
alguém notasse. Devo afirmar, sem falsa modéstia, que o plano foi muito bem
arquitetado. Vocês podem imaginar o que me custou — uma frota de caminhões enormes
para carregar a torre até um daqueles campos planos e desertos que se vêem a
caminho de Chantilly. Lá a torre podia facilmente ser colocada na horizontal.
Durante a viagem, em uma manhã nevoenta de outono, havia bem pouco tráfego, e o
pouco que havia era insignificante. Ninguém que tentou ultrapassar meus 102
caminhões de seis rodas notou que eles eram unidos entre si pela torre, como as
contas de um colar: Os carros particulares chegavam a fazer menção de
ultrapassar, mas quando os motoristas dos Fiat e Renault viam aquela fila de
caminhões à frente, desistiam e conformavam-se em seguir a procissão. Por outro
lado, os carros que vinham em sentido contrário tinham a estrada toda para
eles: meus caminhões transformaram o trajeto Chantilly—Paris em uma longa
estrada de mão única. Os carros passavam a toda velocidade e nem tinham tempo
de notar que a torre estava apoiada sobre cada caminhão da corrente, como numa
espécie de berço de centenas de metros de comprimento.
Tenho muito carinho pela
torre, e fiquei feliz em vê-la, depois de tantos anos de guerra, cerração,
chuva e radar, em repouso. No primeiro dia da mudança caminhei ao seu redor, de
vez em quando tocando um dos suportes: o quarto andar parecia um pouco
desconfortável no pedaço que passava por cima de um afluente manso e lamacento
do Sena, então coloquei-o mais à vontade. Depois voltei para sua sede original
— ainda temia que alguém notasse. Os grandes blocos de concreto estavam lá, sem
nada em cima. Lembravam tanto túmulos, que alguém já havia deixado um maço de
flores para os heróis da Resistência. Um táxi parou trazendo os últimos
turistas da estação antes de, como andorinhas, rumarem para oeste com a chegada
do inverno. O homem estava com uma garota e cambaleava um pouco ao caminhar.
Curvou-se para ver as flores e ao endireitar-se ficou vermelho nas bochechas
lisas e empoadas.
— É um memorial — disse.
— Comment? —
perguntou o motorista de táxi.
A garota acrescentou:
— Chester, você disse
que poderíamos almoçar aqui.
— Não estou vendo torre
nenhuma — disse o homem.
— Comment?
— Veja bem — tentou
explicar, gesticulando para dar maior ênfase —, você nos trouxe para o lugar
errado. Fez um esforço. — Ici n 'est pas la Tour Eiffel.
— Oui.
Ici.
— Non.
Pas du tout. Ici il n 'est pas possible de manger.
O motorista saltou do
carro e olhou ao seu redor. Fiquei um pouco nervoso, com medo de que desse pela
falta da torre, mas ele voltou para dentro do carro e virou-se para mim
dizendo, melancólico:
— Vivem mudando o nome
das ruas.
Falei com ele em tom
confidencial.
— Eles só querem
almoçar. Leve-os ao Tour d'Argent. — Partiram satisfeitos e o perigo passou.
Obviamente havia sempre
o risco de que os funcionários chamassem a atenção do público, mas eu havia
pensado nisso. Eles recebiam semanalmente e quem seria bobo de admitir que seu
local de trabalho desapareceu antes de esperar a semana terminar e ver se o
dinheiro entrou normalmente? Os cafés das redondezas tornaram-se o grande
ancoradouro dos funcionários da torre, mas todos evitavam sentar na mesma mesa
de seus colegas de trabalho para não dar margem a conversas constrangedoras.
Identifiquei um boné de uniforme por bistrô em uma área de uma milha quadrada:
cada homem passava as horas de seu expediente sentado tranquilamente a uma mesa
de bar, tomando uma cerveja ou um pastis dependendo
do salário, levantando pontualmente para bater o ponto da saída. Não me pareceu
que estivessem perplexos com o desaparecimento da torre. Era algo que podia ser
convenientemente esquecido, como o imposto de renda. Melhor não pensar a
respeito: se pensassem, alguém poderia esperar que tomassem uma providência.
Os turistas, obviamente,
representavam o perigo maior. Aviões noturnos alegaram nevoeiro baixo, e o
Ministério do Ar solicitou o "comentário" do Ministério das Relações
Exteriores sobre várias reclamações de interferências no radar — um novo
dispositivo russo na guerra fria. Mas logo espalhou-se a notícia, entre guias e
motoristas de táxi, de que quando um turista pedisse para ver a torre Eiffel a
melhor coisa a fazer era simplesmente levá-lo ao Tour d' Argent. A gerência do
lugar não decepcionava, e a vista, nesses dias de outono, também era ótima, de
modo que os turistas assinavam o livro de clientes a tanto por cabeça. Eu
costumava ir para lá ouvi-los.
— Eu imaginava que era mais,
como dizer... metálica — disse um deles. — Achei que dava para ver através
dela.
— Expliquei-lhe que isso
se aplicava perfeitamente ao estabelecimento em que se encontrava.
Férias nunca duram para
sempre, e uma manhã, enquanto rodeava a torre aplicando um pouco de cuspe e
polidor aos suportes, concluí que ela precisava voltar a funcionar antes que os
empregados sentissem falta de seu salário. Só me restava esperar que, algum
dia, ela encontrasse outra pessoa que, como eu, lhe desse a chance de passar uma
temporada no campo. Garanto que não há risco nenhum. Ninguém em Paris admitiria
que a ausência da torre passou despercebida por cinco dias — assim como um
homem apaixonado não admitiria não ter notado a falta da amante.
Mesmo assim devolver a
torre não foi fácil, tendo sido obrigado a lançar mão de alguns truques a fim
de desviar a atenção das pessoas. Para facilitar, encomendei a um conhecido,
que fazia figurinos teatrais, alguns uniformes da polícia, das Gardes Mobiles,
das Gardes Républicaines e da Académie Française. Planejei uma reunião de
poujadistes, uma rebelião de argelinos e um discurso pela morte de um crítico
de teatro obscuro, que um amigo meu fez "disfarçado" de Ministro da
Educação. Digo disfarçado, mas na verdade não havia a menor necessidade de
mudar de nome, nem de cara, visto que ninguém lembrava quem ocupava essa pasta
no gabinete deMonsieur Mollet.
Os turistas tiveram a
última palavra e, curiosamente, enquanto admirava minha amada torre, que
parecia dar piruetas na névoa da manhã, de volta a seu lugar, vi o mesmo
americano chegando de táxi com a mesma garota. Ele olhou rapidamente ao seu
redor e disse:
— Aqui não é a torre
Eiffel.
— Comment?
— Ah, Chester — disse a
garota —, onde é que nos trouxeram desta vez? Eles nunca acertam. Eu estou
morrendo de fome, Chester. Estou sonhando com aquele Sole
Délice que
comemos.
Eu disse para o
motorista:
—
É o Tour d'Argent que eles querem — observei-os partir. A coroa para os heróis
da Resistência havia murchado, mas eu peguei uma flor seca e desbotada, coloque
lapela e acenei para a torre. Não ousei ficar mais tempo Poderia ficar tentado
a roubá-la de novo.
Graham Greene
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