sábado, 9 de março de 2013

As vinhas da ira - Excerto


Wilson voltou-se para Casy:
- A Sairy pede pro senhor ir ver ela.
- Pois não – disse o pregador. Foi até a pequena tenda cor de cinza que pertencia aos Wilson e entrou. Fazia calor ali dentro e a poeira redemoinhava no ar. O colchão estava estendido ao chão, e ao redor dele estavam espalhados os pertences do casal, em desordem. Sairy estava deitada no colchão, os olhos muito abertos e brilhantes. Ele parou ao pé do colchão e olhou-a, a cabeça curvada sobre o pescoço musculoso. E tirou o chapéu e ficou a segurá-lo na mão.
Ela disse:
- Meu marido já disse que a gente não podia continuar a viagem?
- já, sim, senhora.
A voz dela, baixinha e harmoniosa, tornou a soar:
- eu queria que ele pudesse ir também. Sabia que não iria viver o bastante para chegar até onde pretendíamos, mas queria que ao menos ele chegasse. Mas ele não quer. Ele não sabe; pensa que eu vou ficar boa. É que ele não sabe.
- ele disse que não quer ir.
- Sim, ele é teimoso. Pedi por senhor vir aqui pra rezar por mim.
- Mas eu não sou um pregador mais – disse ele em voz baixa. – Minhas rezas não adiantam.
Ela fez um muxoxo.
- Eu vi o senhor fazer uma prece, quando Avô morreu.
- Mas isso não era uma prece.
- Era sim. Eu ouvi.
- Eu já não era um pregador.
- Mas era uma bonita prece. Queria que o senhor dissesse uma assim por mim.
- Não sei o que dizer.
Ela cerrou os olhos por um instante e logo tornou a abri-los.
- Então diga para si mesmo. Não precisa dizer alto. Serve assim mesmo.
- Eu não tenho mais Deus – disse ele.
- Tem sim, eu sei que tem. Não importa o senhor saber ou não como ele se parece.
O pregador curvou a cabeça. Ela olhou-o com a preensão. E, quando ele tornou a erguer a cabeça, ela parecia aliviada.
- Isso foi bom – disse ela. – Era o que eu queria. Alguém perto de mim rezando.
Ele sacudiu a cabeça, como se quisesse despertar-se.
- Não compreendo... não entendo isto tudo – disse.
E ela replicou:
- Sim, o senhor sabe. Não é verdade?
- Eu sei, eu sei, mas não entendo – disse ele. – Eu... bem, daqui a alguns dias a senhora com certeza estará boa e poderá continuar a viagem.
Ela moveu a cabeça vagarosamente.
- Eu não passo de um montão de sofrimentos, coberto de pele. Sei o que é, mas não quero dizer a ele. Ele ia ficar muito triste. Não adiantava, mesmo, dizer. Que é que ele ia fazer? Talvez de noite, quando ele estiver dormindo... quando acordar e ver, talvez não seja tão ruim assim.
- A senhora quer que eu fique aqui com a senhora?
- Não – disse ela. – Não. Quando eu era criança, gostava muito de cantar. O povo dizia que eu cantava tão bem como Jenny Lind. E todo mundo vinha me ouvir cantar. E, quando eles me ouviam, ficavam bem junto de mim. E eu ficava muito satisfeita, muito grata. Não acontece muitas vezes muitas vezes a gente ser tão feliz, sentir os outros tão próximos à gente... como daquela vez que todos eles me cercavam. Pensava até em cantar um dia no palco, mas não foi possível. E agora sou feliz. Não tinha ninguém que eu pudesse sentir próximo a mim, agora, e por isso pedi para o senhor vir aqui e rezar por mim. Queria sentir mais uma vez que tinha alguém perto. Cantar ou rezar, é a mesma coisa. Só gostaria que o senhor pudesse me ouvir cantar.
Ele olhou-a bem nos olhos.
- Bom, até logo – disse.
Novamente, ela sacudiu com vagar a cabeça, apertando os lábios. E o pregador deixou a tenda obscura e viu-se sob a luz do dia que morria.
John Steinbeck, in As Vinhas da Ira

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