O prédio de lata estava desmoronando e eu
estava dentro dele, desmoronando também. Caía de bruços como um super-herói que
esqueceu como voar, com a cara virada para o chão, ou para o saguão do prédio,
que se aproximava rapidamente. Se eu me espatifasse no saguão, certamente
morreria, pois seria soterrado pela lataria em decomposição que acompanhava meu
voo. O fim do sonho seria o meu fim também. Mas a queda era interrompida, a
intervalos, como naquelas “lojas de departamento” em que o elevador parava, o ascensorista
abria a porta e anunciava: “Lingerie”, “adereços femininos” etc. Levei algum
tempo para me dar conta que aquelas paradas não eram só para interromper o
terror da queda. Eram oportunidades de fuga. O sonho me oferecia alternativas
para a morte, se eu fizesse a escolha certa. Ou então me dava um minuto para
pensar em todas as escolhas erradas que tinham me levado àquele momento e à
morte certa: os exageros, os caminhos não tomados e as bebidas tomadas, as
decisões equivocadas e as indecisões fatais, o excesso de açúcar e de sal, a
falta de juízo e de moderação. Não posso afirmar com certeza, mas acho que ouvi
o ascensorista fantasma dizer, em vez de “lingerie” e “adereços femininos”:
“Desce aqui e salva a tua alma” ou “Pense no que poderia ter sido, pense no que
poderia ter sido…” As paradas não eram para diminuir o terror, as paradas eram
parte do terror! Eu não tinha tempo nem para a fuga nem para a contrição. E o
saguão se aproximava. Decidi me resignar. É uma das maneiras que a morte nos
pega, pensei: pela resignação, pela desistência. Meu corpo não me pertencia
mais, era parte de uma representação da minha morte, o protagonista de um
sonho, absurdo como todos os sonhos. Talvez a morte fosse sempre precedida de
um sonho como aquele, uma súmula de entrega e renúncia à vida, mais ou menos
dramática conforme a personalidade do morto. Um sonho com anjos e nuvens rosas
ou um sonho de destruição, como eu merecia. Eu nunca saberia por que meu sonho
terminal fora aquele, eu desmoronando junto com um prédio de lata. Mas nossas
explicações morrem com a gente.
No fim do
sonho me espatifei no chão do saguão e esperei que o prédio caísse nas minha
costas. Em vez disso, ouvi a voz do dr. Alberto Augusto Rosa me perguntando se
eu sabia onde estava. “Hospital Moinhos de Vento”, arrisquei. Acertei. Lá
juntaram as minhas partes, me espanaram e me mandaram para casa. E eu não disse
para ninguém que deveria estar morto.
Luís
Fernando Veríssimo, in oglobo.globo.com, de 03/01/2013
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