Há um longo tempo — pelo menos seis
décadas —, as fotos têm deixado as marcas de como os conflitos
importantes são julgados e lembrados. O museu da memória ocidental
é, hoje, sobretudo visual. As fotos têm um poder insuperável para
determinar o que recordamos dos fatos, e agora parece provável que a
associação determinante das pessoas de todo o mundo com a guerra
podre que os Estados Unidos desencadearam de forma preventiva no
Iraque no ano passado serão as fotos da tortura dos prisioneiros
iraquianos praticada por americanos na mais infame de todas as
prisões de Saddam Hussein, Abu Ghraib.
O governo Bush e seus defensores
procuraram acima de tudo limitar um desastre de relações públicas
— a disseminação das fotos —, em vez de enfrentar os complexos
crimes de liderança e de estratégia revelados pelas fotos. Antes de
tudo, houve o deslocamento da realidade para as fotos em si. A reação
inicial do governo foi dizer que o presidente estava chocado e
indignado com as fotos — como se o erro ou o horror estivesse nas
imagens, não no que elas retratam. Evitou-se também a palavra
“tortura”. Os prisioneiros foram talvez objetos de “maus-tratos”,
ou até de “humilhação” — isso foi o máximo que se admitiu.
“Minha impressão é de que, até agora, se trata de uma acusação
de maus-tratos, o que creio ser tecnicamente diferente de tortura”,
disse o secretário de Defesa Donald Rumsfeld numa entrevista
coletiva. “E, portanto, não vou usar a palavra ‘tortura’.”
Palavras alteram, palavras
acrescentam, palavras subtraem. Foi a insistência em evitar a
palavra “genocídio”, enquanto cerca de 800 mil tútsis em Ruanda
estavam sendo massacrados, durante poucas semanas, pelos seus
vizinhos hútus, dez anos atrás, que indicou que o governo americano
não tinha a menor intenção de fazer nada. Recusar-se a chamar o
que ocorreu em Abu Ghraib — e aconteceu em outros locais do Iraque
e do Afeganistão, e na baía de Guantánamo — pelo seu nome
verdadeiro, tortura, é tão escandaloso quanto a recusa de chamar o
genocídio de Ruanda de genocídio. Aqui está uma das definições
de tortura contidas na convenção da qual os Estados Unidos são
signatários: “Qualquer ato mediante o qual uma dor ou um
sofrimento forte, físico ou mental, é causado intencionalmente a
uma pessoa, com propósitos como obter dela ou de uma terceira pessoa
alguma informação ou uma confissão”. (A definição provém da
Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, de 1984. Definições semelhantes existiram
durante algum tempo em leis consuetudinárias e em tratados, a
começar pelo Artigo 3 — comum às quatro Convenções de Genebra,
de 1949 — e muitas convenções de direitos humanos recentes.) A
convenção de 1984 declara: “Nenhuma circunstância excepcional,
qualquer que seja ela, mesmo um estado de guerra ou uma ameaça de
guerra, instabilidade política interna ou qualquer emergência
pública, pode ser invocada como justificativa da tortura”. E todos
os acordos sobre tortura fazem referência ao tratamento destinado a
humilhar a vítima, como deixar prisioneiros nus em celas e
corredores.
Qualquer que seja a ação que esse
governo implemente a fim de reduzir os prejuízos da ampla divulgação
da tortura de prisioneiros em Abu Ghraib e outros locais —
processos, cortes marciais, exoneração desonrosa, demissão de
autoridades militares em altos cargos e de funcionários do governo,
além de uma substancial compensação às vítimas —, é provável
que a palavra “tortura” continue banida. Reconhecer que
americanos torturam seus prisioneiros seria contradizer tudo o que
esse governo pediu que o público acreditasse a respeito da virtude
das intenções americanas e da universalidade dos valores
americanos, o que é a suprema e triunfalista justificativa do
direito americano a uma ação unilateral no mundo, em defesa de seus
interesses e segurança.
Mesmo quando o presidente foi por fim
coagido a usar a palavra “pesaroso”, em vista da ampliação e
exacerbação da má reputação dos Estados Unidos em todo o mundo,
o foco do pesar ainda parecia ser o estrago causado à pretensão
americana de uma superioridade moral, ao seu objetivo hegemônico de
levar “a liberdade e a democracia” ao ignorante Oriente Médio.
Sim, o senhor Bush disse em Washington no dia 6 de maio, ao lado do
rei Abdullah II, da Jordânia, que estava “pesaroso pela humilhação
padecida pelos prisioneiros iraquianos e por seus familiares”. Mas
prosseguiu e disse que estava “igualmente pesaroso porque as
pessoas que viram essas fotos não compreenderam a verdadeira
natureza e coração dos Estados Unidos”.
O fato de o esforço americano no
Iraque ter sido sintetizado por essas imagens deve parecer “injusto”
para aqueles que viam alguma justificativa numa guerra que de fato
derrubou um dos tiranos monstruosos dos tempos modernos. Uma guerra,
uma ocupação, é inevitavelmente uma imensa tapeçaria de ações.
O que torna algumas ações representativas e outras não? A questão
não é se a tortura foi praticada por indivíduos (ou seja, “não
por todo mundo”), mas se foi sistemática. Autorizada. Sancionada.
Todas as ações são praticadas por indivíduos. A questão não é
se a maioria ou a minoria dos americanos pratica tais atos, mas se a
natureza da política desenvolvida por esse governo e as hierarquias
aplicadas para implementá-la tornam tais atos prováveis.
Vistas sob essa luz, as fotos
somos nós. Ou seja, são representativas da corrupção
fundamental de qualquer ocupação estrangeira associada à política
distintiva do governo Bush. Os belgas no Congo, os franceses na
Argélia, praticaram tortura e humilhações sexuais em desprezados
nativos recalcitrantes. Acrescentemos a essa corrupção genérica o
desconcertante e quase total despreparo dos governantes americanos do
Iraque para lidar com as realidades complexas do país após a sua
“liberação” — ou seja, conquista. E acrescentemos a isso as
doutrinas abrangentes do governo Bush, em especial a doutrina de que
os Estados Unidos entraram numa guerra sem fim (contra um inimigo
polimorfo chamado “terrorismo”) e que as pessoas presas nessa
guerra são, se o presidente assim decidir, “combatentes ilegais”
— uma política formulada por Donald Rumsfeld já em janeiro de
2002 —, e assim, segundo Rumsfeld, “tecnicamente sem nenhum
direito à Convenção de Genebra”, e temos uma receita perfeita
para os crimes e as crueldades cometidas contra milhares de pessoas
encarceradas sem julgamento e sem acesso a advogados em prisões
dirigidas por americanos, criadas a partir dos ataques de 11 de
setembro de 2001.
Portanto, a questão real não são as
fotos em si, mas o que as fotos revelam que aconteceu com “suspeitos”
sob custódia de americanos? Não: o horror do que é mostrado nas
fotos não pode ser separado do horror do fato de as fotos terem sido
tiradas — com os perpetradores fazendo pose, caras de contentes,
sobre os seus cativos indefesos. Os soldados alemães na Segunda
Guerra Mundial tiraram fotos das atrocidades que estavam cometendo na
Polônia e na Rússia, mas instantâneos em que os carrascos se
colocavam entre as suas vítimas são extremamente raros, como se
pode ver em Fotografando o Holocausto, de Janina Struk. Se há
algo comparável ao que essas fotos mostram, talvez sejam as fotos de
vítimas negras de linchamento tiradas entre 1880 e 1930, que mostram
americanos sorrindo embaixo do corpo mutilado e queimado de um homem
ou de uma mulher negra, pendurado numa árvore às suas costas. As
fotos de linchamento eram suvenires de uma ação coletiva, cujos
participantes se sentiam perfeitamente justificados naquilo que
tinham feito. Assim são as fotos de Abu Ghraib.
Se existe uma diferença, é uma
diferença criada pela crescente ubiquidade de ações fotográficas.
As fotos de linchamento eram da natureza das fotos como troféus —
tiradas por um fotógrafo a fim de ser colecionadas, guardadas em
álbuns, mostradas. As tiradas por soldados americanos em Abu Ghraib,
porém, refletem uma mudança no uso feito de fotos — menos objetos
que se devem salvar do que mensagens que se devem disseminar,
difundir. Uma câmera digital é um bem comum entre soldados. Onde
antes a fotografia de guerra constituía um domínio de
repórteres-fotográficos, agora os próprios soldados são
fotógrafos completos — registram a sua guerra, a sua diversão, as
suas observações do que acham pitoresco, as suas atrocidades — e
trocam fotos entre si, enviam fotos por e-mail para o mundo inteiro.
Há cada vez mais registros daquilo
que as pessoas fazem, registros obtidos por elas mesmas. Pelo menos
ou especialmente nos Estados Unidos, o ideal de Andy Warhol de filmar
fatos reais em tempo real — a vida não é editada, por que seu
registro deveria ser? — tornou-se uma norma para incontáveis sites
da internet, nos quais as pessoas registram o seu dia, cada um no seu
reality show particular. Aqui estou eu — andando, bocejando,
me espreguiçando, escovando os dentes, tomando o café-da-manhã,
levando os filhos à escola. As pessoas registram todos os aspectos
da sua vida, guardam em arquivos de computador e despacham os
arquivos para toda parte. A vida familiar caminha junto com o
registro da vida familiar — mesmo, ou sobretudo, quando a família
se acha nos estertores de uma crise ou numa grande infelicidade. Sem
dúvida, a dedicada e incessante produção de vídeos domésticos em
que uns filmavam os outros, em conversas ou em monólogos, ao longo
de muitos anos, constituiu o material mais impressionante em
Capturing the Friedmans (2003), documentário de Andrew
Jarecki sobre uma família de Long Island envolvida em processos de
pedofilia.
Uma vida erótica é, para um número
cada vez maior de pessoas, aquilo que pode ser captado em fotos
digitais e em vídeo. E talvez a tortura seja mais atraente, como
algo para registrar, quando contém um componente sexual. À medida
que mais fotos de Abu Ghraib se oferecem ao público, revela-se com
certeza que as fotos de tortura aparecem intercaladas com imagens
pornográficas em que soldados americanos se mostram fazendo sexo
entre si. De fato, a maioria das fotos de tortura tem um tema sexual,
como na que mostra a coerção de prisioneiros a praticarem, ou
simularem, atos sexuais entre si. Uma exceção, já canônica, é a
foto de um homem obrigado a ficar de pé sobre uma caixa, de capuz e
envolto em fios elétricos, a quem informaram que seria eletrocutado
se caísse. Contudo, fotos de prisioneiros mantidos em posições
dolorosas, ou obrigados a ficar de pé com os braços abertos, são
raras. Não dá para contestar que sejam tortura. Basta olhar para o
terror no rosto da vítima. Mas a maioria das fotos parece parte de
uma confluência mais vasta de tortura e pornografia: uma jovem
conduzindo um homem nu por uma coleira é uma imagem clássica da
dominadora. E nos perguntamos em que medida as torturas sexuais
infligidas aos presos em Abu Ghraib se inspiraram no vasto repertório
de imagens pornográficas disponível na internet — imagens que
pessoas comuns tentaram emular, enviando elas mesmas os seus arquivos
de computador.
Viver é ser fotografado, ter um
registro da sua vida e, portanto, continuar a viver inconsciente, ou
fingindo não ter consciência, das atenções incessantes da câmera.
Mas viver é também posar. Agir é participar da comunidade de ações
registradas como imagens. A expressão de satisfação com os atos de
tortura infligidos a vítimas nuas, indefesas, amarradas é apenas
uma parte da história. Há a profunda satisfação de ser
fotografado, à qual hoje as pessoas estão mais inclinadas a reagir
não com um olhar duro e direto (como acontecia antigamente), mas com
alegria. Os fatos destinam-se, em parte, a ser fotografados. O
sorriso é um sorriso para a câmera. Ficaria faltando alguma coisa
se, depois de fazer uma pilha de homens nus, não se pudesse tirar
uma foto deles.
Ao olhar para essas fotos, nos
perguntamos: como alguém pode sorrir diante do sofrimento e da
humilhação de outro ser humano? Atiçar cães de guarda contra os
órgãos genitais e as pernas de prisioneiros nus agachados?
Prisioneiros encapuzados, algemados, obrigados a se masturbarem ou
simular sexo oral uns com os outros? E nos sentimos ingênuos ao
perguntar, pois a resposta é, obviamente, que as pessoas fazem isso
umas com as outras. Estupro e dor causada nos órgãos genitais estão
entre as formas de tortura mais comuns. Não só nos campos de
concentração nazistas e em Abu Ghraib, quando era dirigido por
Saddam Hussein. Americanos também agiram e agem assim quando recebem
ordens, ou quando são levados a sentir que as pessoas sobre as quais
têm um poder absoluto merecem ser humilhadas, atormentadas. Agem
assim quando são levados a crer que as pessoas que estão torturando
pertencem a uma raça ou religião inferior. Pois o sentido dessas
fotos não é só que tais atos foram praticados, mas que os seus
perpetradores parecem não ter a menor idéia de que haja algo errado
no que as fotos mostram.
E mais estarrecedor ainda, uma vez que
as fotos destinavam-se a ser difundidas e vistas por muita gente:
tudo era diversão. E essa ideia de diversão, infelizmente, cada vez
mais — ao contrário do que o sr. Bush anda dizendo para o mundo —,
faz parte da “verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”.
É difícil medir a crescente aceitação da brutalidade na vida
americana, mas sua evidência está em toda parte, a começar pelos
videogames de matança que são o principal entretenimento dos
meninos — não há de estar muito longe o lançamento do videogame
Interrogando os terroristas — e vai até a violência que se tornou
endêmica nos ritos grupais de jovens, com um ímpeto exuberante. O
crime violento está em baixa, contudo o prazer fácil derivado da
violência parece ter aumentado. Desde os tormentos dolorosos
infligidos a estudantes calouros em muitas faculdades americanas do
subúrbio — retratados no filme de Richard Linklater Tontos e
confusos (1993) —, até os rituais de trote de brutalidade
física e humilhação sexual em fraternidades das faculdades e em
equipes esportivas, os Estados Unidos tornaram-se um país em que as
fantasias e as práticas da violência são vistas como um bom
entretenimento, uma diversão.
O que antes era segregado como
pornografia, como o exercício de desejos sadomasoquistas radicais —
como no último e inassistível filme de Pier Paolo Pasolini, Salò
(1975), que retrata orgias de tortura no reduto fascista ao norte da
Itália no fim da era Mussolini —, agora está sendo normalizado
pelos apóstolos da nova, imperial, belicosa América, como
brincadeiras de júbilo ou descontração. “Empilhar homens nus”
é semelhante a uma brincadeira de fraternidade universitária, disse
por telefone um ouvinte no programa de Rush Limbaugh, e também os
muitos milhões de americanos que ouvem o seu programa de rádio.
Podemos nos perguntar: será que essa pessoa de fato viu as
fotografias? Não importa. O comentário — ou será uma fantasia? —
acertou em cheio. O que talvez ainda seja capaz de chocar alguns
americanos é a reação de Limbaugh: “Exatamente!”, exclamou
ele. “É exatamente isso o que penso. Não é nem um pouco
diferente do que acontece na recepção de calouros na sociedade
secreta de estudantes Crânio e Caveira, na Universidade de Yale, e
vamos arruinar a vida das pessoas por causa disso, e vamos criar
embaraços para o nosso esforço militar, e vamos então de fato
marretá-los porque eles estão se divertindo?” “Eles” são os
soldados americanos, os torturadores. E Limbaugh prossegue: “Sabe,
essas pessoas estão sob o fogo inimigo todos os dias. Eu estou
falando de pessoas que se divertem, é o caso delas. Já ouviram
falar em alívio emocional?”.
É provável que um número bem grande
de americanos prefira pensar que não há nenhum problema em torturar
e humilhar outros seres humanos — que, na condição de nossos
inimigos supostos ou suspeitos, perderam todos os seus direitos — a
reconhecer a loucura, a incompetência e o engodo da aventura
americana no Iraque. Quanto ao fato de a tortura e a humilhação
sexual serem vistas como diversão, parece haver pouca oposição a
essa tendência, enquanto os Estados Unidos continuam a tornar-se um
Estado militarizado, onde os patriotas se definem como aqueles que
têm um respeito incondicional pelo poder armado e pela necessidade
de máxima vigilância doméstica. E essas fotos que os americanos
distribuíram anunciam ao mundo choque e terrível estupefação: um
padrão de comportamento criminoso em franco desacato às convenções
humanitárias internacionais. Soldados agora posam, com o polegar
para cima, perante as atrocidades que cometem, e enviam as fotos para
seus companheiros. Deveríamos ficar totalmente surpresos? Em nossa
sociedade, na qual antigamente se fazia de tudo para esconder os
segredos da vida privada, agora as pessoas clamam para ser convidadas
a um programa de tevê a fim de justamente revelar tais segredos. O
que essas fotos ilustram é tanto a cultura da falta de vergonha como
a reinante admiração da brutalidade que não pede desculpas.
A ideia de que desculpas ou profissões
de “pesar” feitas pelo presidente e pela secretária de Defesa
são uma reação suficiente constitui um insulto ao nosso senso
histórico e moral. A tortura de prisioneiros não é uma aberração.
É uma conseqüência direta da doutrina “ou está conosco ou está
contra nós” de conflito mundial, com a qual o governo Bush
procurou mudar, e mudar radicalmente, a postura internacional dos
Estados Unidos e reformular muitas instituições e prerrogativas
domésticas. O governo Bush envolveu o país numa doutrina de guerra
pseudo-religiosa, de guerra interminável — pois a “guerra contra
o terror” nada mais é do que isso. O que aconteceu no novo império
carcerário internacional dirigido pelas Forças Armadas dos Estados
Unidos ultrapassa os famigerados procedimentos da Ilha do Diabo
francesa ou do sistema do Gulag da União Soviética, que no caso da
ilha penal francesa contavam, primeiro, com processos e sentenças
judiciais, e no caso do império prisional russo, com uma acusação
de algum tipo e uma sentença de um número específico de anos.
Trava-se uma guerra sem fim para justificar encarceramentos sem fim.
As pessoas presas no império penal extralegal americano são
“detidas”; “prisioneiras”, palavra que acaba de se tornar
obsoleta, poderia sugerir que elas têm os direitos conferidos pelas
leis internacionais e pelas leis de todos os países civilizados.
Essa interminável “guerra global contra o terrorismo” — na
qual tanto a bastante justificável invasão do Afeganistão e a
invencível insensatez do Iraque foram incluídas por um decreto do
Pentágono — leva inevitavelmente à demonização e à
desumanização de qualquer pessoa que o governo Bush declare ser um
possível terrorista: uma definição que não é objeto de debate e,
na verdade, é em geral feita em segredo.
Como não existem acusações contra a
maioria das pessoas detidas nas prisões no Iraque e no Afeganistão
— a Cruz Vermelha informa que entre 70% e 90% dos presos parecem
não ter cometido nenhum crime, exceto simplesmente estar no lugar
errado na hora errada, recolhidos em alguma leva de “suspeitos”
—, a principal justificativa para mantê-los presos é um
“interrogatório”. Interrogatório sobre o quê? Sobre qualquer
coisa. O que quer que o preso saiba. Se o interrogatório é o motivo
para deter prisioneiros por um tempo indefinido, então a coerção
física, a humilhação e a tortura tornam-se inevitáveis.
Lembremos: não estamos falando
daquele caso raríssimo, a situação “bomba-relógio”, que é às
vezes usada como caso-limite que justifica a tortura de presos que
possuem um conhecimento de um ataque iminente. Trata-se de uma coleta
de informações inespecífica ou genérica, sancionada pelas Forças
Armadas americanas e pelos governantes civis a fim de saber mais a
respeito de um nebuloso império de malfeitores, sobre os quais os
americanos não sabem quase nada, em países sobre os quais eles são
especialmente ignorantes: em princípio, toda e qualquer informação
pode ser útil. Um interrogatório que não produz nenhuma informação
(não importa em que consista essa informação) será considerado um
fracasso. Por isso é mais justificável ainda que se preparem os
prisioneiros para falar. Amolecer os prisioneiros, deixá-los
debilitados — são eufemismos para as práticas bestiais nas
prisões americanas onde suspeitos de terrorismo estão detidos.
Infelizmente, parece que são muitos aqueles que ficam debilitados
demais e morrem.
As fotos não vão desaparecer. Essa é
a natureza do mundo digital em que vivemos. De fato, parece que elas
eram necessárias para levar os nossos líderes a reconhecer que
tinham um problema nas mãos. Afinal, as conclusões dos relatórios
compilados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outros
relatos feitos por jornalistas e protestos apresentados por
organizações humanitárias sobre os castigos atrozes infligidos aos
“detidos” e “suspeitos de terrorismo” nas prisões dirigidas
pelas Forças Armadas americanas, primeiro no Afeganistão e depois
no Iraque, já circulavam havia mais de um ano. Parece duvidoso que
tais relatórios tenham sido lidos pelo sr. Bush, pelo sr. Cheney,
pela sra. Rice ou pelo sr. Rumsfeld. Ao que parece, foi preciso que
as fotos surgissem para que a atenção deles despertasse, quando
ficou claro que elas não poderiam ser apagadas; foram as fotos que
tornaram tudo isso “real” para o presidente e seus associados.
Até então, só havia palavras, que são mais fáceis de encobrir,
em nossa era de auto-reprodução e autodisseminação digitais
infinitas, e, portanto, muito mais fáceis de esquecer.
Assim, as fotos agora continuarão a
nos “agredir” — como muitos americanos são forçados a sentir.
Será que as pessoas irão se acostumar com elas? Alguns americanos
andam dizendo que já viram demais. Porém o resto do mundo pensa
diferente. Guerra interminável: fluxo de fotos interminável. Será
que os editores irão agora debater se devem mostrar mais fotos, ou
se mostrá-las sem cortes (o que, no caso de algumas das mais
conhecidas imagens, como a de um homem encapuzado sobre uma caixa,
forma uma imagem diferente e, em certos exemplos, mais aterradora)
seria “mau gosto” ou implicitamente político demais? Por
“político” entenda-se: “crítico” do projeto imperial do
governo Bush. Pois não pode haver nenhuma dúvida de que as fotos
prejudicam, como atestou o sr. Rumsfeld, “a reputação dos homens
e mulheres honrados das Forças Armadas que estão corajosamente e
com toda a responsabilidade e profissionalismo defendendo a nossa
liberdade em todo o mundo”. Esse prejuízo — à nossa reputação,
nossa imagem, nosso sucesso como única superpotência — é aquilo
que o governo Bush deplora acima de tudo. Como a proteção da “nossa
liberdade” — a liberdade de 5% da humanidade — chegou ao ponto
de exigir a presença de soldados americanos em todo o mundo é uma
questão nunca discutida pelos nossos governantes eleitos. Os Estados
Unidos vêem a si mesmos como uma vítima do terror futuro ou
potencial. Os Estados Unidos estão apenas se defendendo, contra
inimigos furtivos e implacáveis.
A reação violenta já começou. Os
americanos estão sendo advertidos por se entregarem a uma orgia de
autocondenação. A contínua publicação das fotos está sendo
vista por muitos americanos como uma sugestão de que não temos o
direito de nos defender: afinal, eles (os terroristas) começaram.
Eles — Osama bin Laden? Saddam Hussein? Qual a diferença? — nos
atacaram primeiro. James Inhofe, de Oklahoma, membro republicano do
Comitê do Serviço Militar do Senado, diante do qual o secretário
Rumsfeld prestou testemunho, confessou que tinha certeza de que ele
não era o único membro do comitê “mais ultrajado pelo ultraje”
das fotos do que pelo que as fotos mostravam. “Esses prisioneiros,
sabe”, explicou o senador Inhofe, “não estão lá por uma
violação das regras de trânsito. Se eles estão no bloco de celas
1-A ou 1-B, esses prisioneiros são assassinos, são terroristas, são
insurgentes. Muitos deles provavelmente têm sangue americano nas
mãos, e nós vamos ficar preocupados aqui com o tratamento recebido
por esses elementos?” É culpa da “mídia”, que está
provocando e vai continuar a provocar mais violência contra os
americanos em todo o mundo. Mais americanos vão morrer. Por causa
dessas fotos.
Seria um grande erro deixar que tais
revelações da autorização da tortura, autorização feita pelas
forças militares americanas e pelas autoridades civis americanas, na
“guerra global contra o terrorismo” se tornem uma questão de
guerra de — e contra — imagens. Os americanos estão morrendo não
por causa das fotos, mas por causa daquilo que as fotos mostram que
está acontecendo, acontecendo sob as ordens e com a cumplicidade de
uma cadeia de comando que chega aos níveis mais altos do governo
Bush. Mas a distinção entre foto e realidade — como entre
enquadrar o assunto de um ângulo favorável na imprensa e uma
estratégia política — pode evaporar-se facilmente. E é isso o
que o governo Bush quer que aconteça.
“Existem muito mais fotos e vídeos”,
admitiu o sr. Rumsfeld em seu depoimento. “Se forem liberadas para
o público, obviamente a situação irá piorar.” Piorar para o
governo e seus projetos, supostamente, não para aqueles que são as
efetivas — e potenciais — vítimas da tortura.
A mídia pode se autocensurar, mas
como reconhece o sr. Rumsfeld é difícil censurar os soldados que
estão em outros países, que não escrevem cartas para casa, como
antigamente, cartas que podem ser abertas por censores militares que
riscam os trechos inaceitáveis. Em vez disso, os soldados de hoje
agem como turistas, conforme disse o sr. Rumsfeld, “saem por aí
com câmeras digitais e tiram essas fotos inacreditáveis e depois as
enviam, contra a lei, para a mídia, para a nossa surpresa”. O
esforço do governo para reter as fotos se dá em diversas frentes ao
mesmo tempo. No momento, a discussão está assumindo uma feição
legalista: as fotos são agora classificadas como provas para futuros
processos criminais, cujo resultado pode ser prejudicado se elas
forem divulgadas. O presidente republicano do Comitê do Serviço
Militar do Senado, John Warner, da Virgínia, depois da apresentação
das fotos em slides, no dia 12 de maio, mostrando seguidas
imagens de humilhação e violência sexual contra prisioneiros
iraquianos, disse estar “firmemente convencido” de que as novas
fotos “não devem ser divulgadas. Creio que isso poderia pôr em
perigo os homens e as mulheres das Forças Armadas, pois estão em
atividade e sob grande risco”.
Mas a verdadeira iniciativa de limitar
o acesso às fotos virá do esforço contínuo de proteger o governo
e encobrir os nossos desmandos no Iraque — identificar o “ultraje”
das fotos com uma campanha para minar o poder militar americano e os
propósitos a que ele atualmente serve. Assim como muitos achavam que
as imagens de soldados americanos mortos durante a invasão e a
ocupação do Iraque que apareciam na televisão eram uma crítica
implícita da guerra, divulgar as novas fotos e macular mais ainda a
imagem dos Estados Unidos será entendido, de modo crescente, como
impatriótico.
Afinal, estamos em guerra. Guerra
interminável. E a guerra é um inferno maior do que as pessoas que
nos colocaram nessa guerra podre parecem ter planejado. Em nossa sala
de espelhos digital, as fotos não vão desaparecer. Sim, parece que
uma foto vale mil palavras. E mesmo que nossos líderes prefiram não
olhar para elas, haverá outros milhares de instantâneos e de
vídeos. Incontroláveis.
Susan Sontag, em Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos

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