segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Sobre a tortura dos outros




Há um longo tempo — pelo menos seis décadas —, as fotos têm deixado as marcas de como os conflitos importantes são julgados e lembrados. O museu da memória ocidental é, hoje, sobretudo visual. As fotos têm um poder insuperável para determinar o que recordamos dos fatos, e agora parece provável que a associação determinante das pessoas de todo o mundo com a guerra podre que os Estados Unidos desencadearam de forma preventiva no Iraque no ano passado serão as fotos da tortura dos prisioneiros iraquianos praticada por americanos na mais infame de todas as prisões de Saddam Hussein, Abu Ghraib.
O governo Bush e seus defensores procuraram acima de tudo limitar um desastre de relações públicas — a disseminação das fotos —, em vez de enfrentar os complexos crimes de liderança e de estratégia revelados pelas fotos. Antes de tudo, houve o deslocamento da realidade para as fotos em si. A reação inicial do governo foi dizer que o presidente estava chocado e indignado com as fotos — como se o erro ou o horror estivesse nas imagens, não no que elas retratam. Evitou-se também a palavra “tortura”. Os prisioneiros foram talvez objetos de “maus-tratos”, ou até de “humilhação” — isso foi o máximo que se admitiu. “Minha impressão é de que, até agora, se trata de uma acusação de maus-tratos, o que creio ser tecnicamente diferente de tortura”, disse o secretário de Defesa Donald Rumsfeld numa entrevista coletiva. “E, portanto, não vou usar a palavra ‘tortura’.”
Palavras alteram, palavras acrescentam, palavras subtraem. Foi a insistência em evitar a palavra “genocídio”, enquanto cerca de 800 mil tútsis em Ruanda estavam sendo massacrados, durante poucas semanas, pelos seus vizinhos hútus, dez anos atrás, que indicou que o governo americano não tinha a menor intenção de fazer nada. Recusar-se a chamar o que ocorreu em Abu Ghraib — e aconteceu em outros locais do Iraque e do Afeganistão, e na baía de Guantánamo — pelo seu nome verdadeiro, tortura, é tão escandaloso quanto a recusa de chamar o genocídio de Ruanda de genocídio. Aqui está uma das definições de tortura contidas na convenção da qual os Estados Unidos são signatários: “Qualquer ato mediante o qual uma dor ou um sofrimento forte, físico ou mental, é causado intencionalmente a uma pessoa, com propósitos como obter dela ou de uma terceira pessoa alguma informação ou uma confissão”. (A definição provém da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984. Definições semelhantes existiram durante algum tempo em leis consuetudinárias e em tratados, a começar pelo Artigo 3 — comum às quatro Convenções de Genebra, de 1949 — e muitas convenções de direitos humanos recentes.) A convenção de 1984 declara: “Nenhuma circunstância excepcional, qualquer que seja ela, mesmo um estado de guerra ou uma ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer emergência pública, pode ser invocada como justificativa da tortura”. E todos os acordos sobre tortura fazem referência ao tratamento destinado a humilhar a vítima, como deixar prisioneiros nus em celas e corredores.
Qualquer que seja a ação que esse governo implemente a fim de reduzir os prejuízos da ampla divulgação da tortura de prisioneiros em Abu Ghraib e outros locais — processos, cortes marciais, exoneração desonrosa, demissão de autoridades militares em altos cargos e de funcionários do governo, além de uma substancial compensação às vítimas —, é provável que a palavra “tortura” continue banida. Reconhecer que americanos torturam seus prisioneiros seria contradizer tudo o que esse governo pediu que o público acreditasse a respeito da virtude das intenções americanas e da universalidade dos valores americanos, o que é a suprema e triunfalista justificativa do direito americano a uma ação unilateral no mundo, em defesa de seus interesses e segurança.
Mesmo quando o presidente foi por fim coagido a usar a palavra “pesaroso”, em vista da ampliação e exacerbação da má reputação dos Estados Unidos em todo o mundo, o foco do pesar ainda parecia ser o estrago causado à pretensão americana de uma superioridade moral, ao seu objetivo hegemônico de levar “a liberdade e a democracia” ao ignorante Oriente Médio. Sim, o senhor Bush disse em Washington no dia 6 de maio, ao lado do rei Abdullah II, da Jordânia, que estava “pesaroso pela humilhação padecida pelos prisioneiros iraquianos e por seus familiares”. Mas prosseguiu e disse que estava “igualmente pesaroso porque as pessoas que viram essas fotos não compreenderam a verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”.
O fato de o esforço americano no Iraque ter sido sintetizado por essas imagens deve parecer “injusto” para aqueles que viam alguma justificativa numa guerra que de fato derrubou um dos tiranos monstruosos dos tempos modernos. Uma guerra, uma ocupação, é inevitavelmente uma imensa tapeçaria de ações. O que torna algumas ações representativas e outras não? A questão não é se a tortura foi praticada por indivíduos (ou seja, “não por todo mundo”), mas se foi sistemática. Autorizada. Sancionada. Todas as ações são praticadas por indivíduos. A questão não é se a maioria ou a minoria dos americanos pratica tais atos, mas se a natureza da política desenvolvida por esse governo e as hierarquias aplicadas para implementá-la tornam tais atos prováveis.
 
 Vistas sob essa luz, as fotos somos nós. Ou seja, são representativas da corrupção fundamental de qualquer ocupação estrangeira associada à política distintiva do governo Bush. Os belgas no Congo, os franceses na Argélia, praticaram tortura e humilhações sexuais em desprezados nativos recalcitrantes. Acrescentemos a essa corrupção genérica o desconcertante e quase total despreparo dos governantes americanos do Iraque para lidar com as realidades complexas do país após a sua “liberação” — ou seja, conquista. E acrescentemos a isso as doutrinas abrangentes do governo Bush, em especial a doutrina de que os Estados Unidos entraram numa guerra sem fim (contra um inimigo polimorfo chamado “terrorismo”) e que as pessoas presas nessa guerra são, se o presidente assim decidir, “combatentes ilegais” — uma política formulada por Donald Rumsfeld já em janeiro de 2002 —, e assim, segundo Rumsfeld, “tecnicamente sem nenhum direito à Convenção de Genebra”, e temos uma receita perfeita para os crimes e as crueldades cometidas contra milhares de pessoas encarceradas sem julgamento e sem acesso a advogados em prisões dirigidas por americanos, criadas a partir dos ataques de 11 de setembro de 2001.
Portanto, a questão real não são as fotos em si, mas o que as fotos revelam que aconteceu com “suspeitos” sob custódia de americanos? Não: o horror do que é mostrado nas fotos não pode ser separado do horror do fato de as fotos terem sido tiradas — com os perpetradores fazendo pose, caras de contentes, sobre os seus cativos indefesos. Os soldados alemães na Segunda Guerra Mundial tiraram fotos das atrocidades que estavam cometendo na Polônia e na Rússia, mas instantâneos em que os carrascos se colocavam entre as suas vítimas são extremamente raros, como se pode ver em Fotografando o Holocausto, de Janina Struk. Se há algo comparável ao que essas fotos mostram, talvez sejam as fotos de vítimas negras de linchamento tiradas entre 1880 e 1930, que mostram americanos sorrindo embaixo do corpo mutilado e queimado de um homem ou de uma mulher negra, pendurado numa árvore às suas costas. As fotos de linchamento eram suvenires de uma ação coletiva, cujos participantes se sentiam perfeitamente justificados naquilo que tinham feito. Assim são as fotos de Abu Ghraib.
Se existe uma diferença, é uma diferença criada pela crescente ubiquidade de ações fotográficas. As fotos de linchamento eram da natureza das fotos como troféus — tiradas por um fotógrafo a fim de ser colecionadas, guardadas em álbuns, mostradas. As tiradas por soldados americanos em Abu Ghraib, porém, refletem uma mudança no uso feito de fotos — menos objetos que se devem salvar do que mensagens que se devem disseminar, difundir. Uma câmera digital é um bem comum entre soldados. Onde antes a fotografia de guerra constituía um domínio de repórteres-fotográficos, agora os próprios soldados são fotógrafos completos — registram a sua guerra, a sua diversão, as suas observações do que acham pitoresco, as suas atrocidades — e trocam fotos entre si, enviam fotos por e-mail para o mundo inteiro.
Há cada vez mais registros daquilo que as pessoas fazem, registros obtidos por elas mesmas. Pelo menos ou especialmente nos Estados Unidos, o ideal de Andy Warhol de filmar fatos reais em tempo real — a vida não é editada, por que seu registro deveria ser? — tornou-se uma norma para incontáveis sites da internet, nos quais as pessoas registram o seu dia, cada um no seu reality show particular. Aqui estou eu — andando, bocejando, me espreguiçando, escovando os dentes, tomando o café-da-manhã, levando os filhos à escola. As pessoas registram todos os aspectos da sua vida, guardam em arquivos de computador e despacham os arquivos para toda parte. A vida familiar caminha junto com o registro da vida familiar — mesmo, ou sobretudo, quando a família se acha nos estertores de uma crise ou numa grande infelicidade. Sem dúvida, a dedicada e incessante produção de vídeos domésticos em que uns filmavam os outros, em conversas ou em monólogos, ao longo de muitos anos, constituiu o material mais impressionante em Capturing the Friedmans (2003), documentário de Andrew Jarecki sobre uma família de Long Island envolvida em processos de pedofilia.
Uma vida erótica é, para um número cada vez maior de pessoas, aquilo que pode ser captado em fotos digitais e em vídeo. E talvez a tortura seja mais atraente, como algo para registrar, quando contém um componente sexual. À medida que mais fotos de Abu Ghraib se oferecem ao público, revela-se com certeza que as fotos de tortura aparecem intercaladas com imagens pornográficas em que soldados americanos se mostram fazendo sexo entre si. De fato, a maioria das fotos de tortura tem um tema sexual, como na que mostra a coerção de prisioneiros a praticarem, ou simularem, atos sexuais entre si. Uma exceção, já canônica, é a foto de um homem obrigado a ficar de pé sobre uma caixa, de capuz e envolto em fios elétricos, a quem informaram que seria eletrocutado se caísse. Contudo, fotos de prisioneiros mantidos em posições dolorosas, ou obrigados a ficar de pé com os braços abertos, são raras. Não dá para contestar que sejam tortura. Basta olhar para o terror no rosto da vítima. Mas a maioria das fotos parece parte de uma confluência mais vasta de tortura e pornografia: uma jovem conduzindo um homem nu por uma coleira é uma imagem clássica da dominadora. E nos perguntamos em que medida as torturas sexuais infligidas aos presos em Abu Ghraib se inspiraram no vasto repertório de imagens pornográficas disponível na internet — imagens que pessoas comuns tentaram emular, enviando elas mesmas os seus arquivos de computador.
 
 Viver é ser fotografado, ter um registro da sua vida e, portanto, continuar a viver inconsciente, ou fingindo não ter consciência, das atenções incessantes da câmera. Mas viver é também posar. Agir é participar da comunidade de ações registradas como imagens. A expressão de satisfação com os atos de tortura infligidos a vítimas nuas, indefesas, amarradas é apenas uma parte da história. Há a profunda satisfação de ser fotografado, à qual hoje as pessoas estão mais inclinadas a reagir não com um olhar duro e direto (como acontecia antigamente), mas com alegria. Os fatos destinam-se, em parte, a ser fotografados. O sorriso é um sorriso para a câmera. Ficaria faltando alguma coisa se, depois de fazer uma pilha de homens nus, não se pudesse tirar uma foto deles.
Ao olhar para essas fotos, nos perguntamos: como alguém pode sorrir diante do sofrimento e da humilhação de outro ser humano? Atiçar cães de guarda contra os órgãos genitais e as pernas de prisioneiros nus agachados? Prisioneiros encapuzados, algemados, obrigados a se masturbarem ou simular sexo oral uns com os outros? E nos sentimos ingênuos ao perguntar, pois a resposta é, obviamente, que as pessoas fazem isso umas com as outras. Estupro e dor causada nos órgãos genitais estão entre as formas de tortura mais comuns. Não só nos campos de concentração nazistas e em Abu Ghraib, quando era dirigido por Saddam Hussein. Americanos também agiram e agem assim quando recebem ordens, ou quando são levados a sentir que as pessoas sobre as quais têm um poder absoluto merecem ser humilhadas, atormentadas. Agem assim quando são levados a crer que as pessoas que estão torturando pertencem a uma raça ou religião inferior. Pois o sentido dessas fotos não é só que tais atos foram praticados, mas que os seus perpetradores parecem não ter a menor idéia de que haja algo errado no que as fotos mostram.
E mais estarrecedor ainda, uma vez que as fotos destinavam-se a ser difundidas e vistas por muita gente: tudo era diversão. E essa ideia de diversão, infelizmente, cada vez mais — ao contrário do que o sr. Bush anda dizendo para o mundo —, faz parte da “verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”. É difícil medir a crescente aceitação da brutalidade na vida americana, mas sua evidência está em toda parte, a começar pelos videogames de matança que são o principal entretenimento dos meninos — não há de estar muito longe o lançamento do videogame Interrogando os terroristas — e vai até a violência que se tornou endêmica nos ritos grupais de jovens, com um ímpeto exuberante. O crime violento está em baixa, contudo o prazer fácil derivado da violência parece ter aumentado. Desde os tormentos dolorosos infligidos a estudantes calouros em muitas faculdades americanas do subúrbio — retratados no filme de Richard Linklater Tontos e confusos (1993) —, até os rituais de trote de brutalidade física e humilhação sexual em fraternidades das faculdades e em equipes esportivas, os Estados Unidos tornaram-se um país em que as fantasias e as práticas da violência são vistas como um bom entretenimento, uma diversão.
O que antes era segregado como pornografia, como o exercício de desejos sadomasoquistas radicais — como no último e inassistível filme de Pier Paolo Pasolini, Salò (1975), que retrata orgias de tortura no reduto fascista ao norte da Itália no fim da era Mussolini —, agora está sendo normalizado pelos apóstolos da nova, imperial, belicosa América, como brincadeiras de júbilo ou descontração. “Empilhar homens nus” é semelhante a uma brincadeira de fraternidade universitária, disse por telefone um ouvinte no programa de Rush Limbaugh, e também os muitos milhões de americanos que ouvem o seu programa de rádio. Podemos nos perguntar: será que essa pessoa de fato viu as fotografias? Não importa. O comentário — ou será uma fantasia? — acertou em cheio. O que talvez ainda seja capaz de chocar alguns americanos é a reação de Limbaugh: “Exatamente!”, exclamou ele. “É exatamente isso o que penso. Não é nem um pouco diferente do que acontece na recepção de calouros na sociedade secreta de estudantes Crânio e Caveira, na Universidade de Yale, e vamos arruinar a vida das pessoas por causa disso, e vamos criar embaraços para o nosso esforço militar, e vamos então de fato marretá-los porque eles estão se divertindo?” “Eles” são os soldados americanos, os torturadores. E Limbaugh prossegue: “Sabe, essas pessoas estão sob o fogo inimigo todos os dias. Eu estou falando de pessoas que se divertem, é o caso delas. Já ouviram falar em alívio emocional?”.
É provável que um número bem grande de americanos prefira pensar que não há nenhum problema em torturar e humilhar outros seres humanos — que, na condição de nossos inimigos supostos ou suspeitos, perderam todos os seus direitos — a reconhecer a loucura, a incompetência e o engodo da aventura americana no Iraque. Quanto ao fato de a tortura e a humilhação sexual serem vistas como diversão, parece haver pouca oposição a essa tendência, enquanto os Estados Unidos continuam a tornar-se um Estado militarizado, onde os patriotas se definem como aqueles que têm um respeito incondicional pelo poder armado e pela necessidade de máxima vigilância doméstica. E essas fotos que os americanos distribuíram anunciam ao mundo choque e terrível estupefação: um padrão de comportamento criminoso em franco desacato às convenções humanitárias internacionais. Soldados agora posam, com o polegar para cima, perante as atrocidades que cometem, e enviam as fotos para seus companheiros. Deveríamos ficar totalmente surpresos? Em nossa sociedade, na qual antigamente se fazia de tudo para esconder os segredos da vida privada, agora as pessoas clamam para ser convidadas a um programa de tevê a fim de justamente revelar tais segredos. O que essas fotos ilustram é tanto a cultura da falta de vergonha como a reinante admiração da brutalidade que não pede desculpas.

A ideia de que desculpas ou profissões de “pesar” feitas pelo presidente e pela secretária de Defesa são uma reação suficiente constitui um insulto ao nosso senso histórico e moral. A tortura de prisioneiros não é uma aberração. É uma conseqüência direta da doutrina “ou está conosco ou está contra nós” de conflito mundial, com a qual o governo Bush procurou mudar, e mudar radicalmente, a postura internacional dos Estados Unidos e reformular muitas instituições e prerrogativas domésticas. O governo Bush envolveu o país numa doutrina de guerra pseudo-religiosa, de guerra interminável — pois a “guerra contra o terror” nada mais é do que isso. O que aconteceu no novo império carcerário internacional dirigido pelas Forças Armadas dos Estados Unidos ultrapassa os famigerados procedimentos da Ilha do Diabo francesa ou do sistema do Gulag da União Soviética, que no caso da ilha penal francesa contavam, primeiro, com processos e sentenças judiciais, e no caso do império prisional russo, com uma acusação de algum tipo e uma sentença de um número específico de anos. Trava-se uma guerra sem fim para justificar encarceramentos sem fim. As pessoas presas no império penal extralegal americano são “detidas”; “prisioneiras”, palavra que acaba de se tornar obsoleta, poderia sugerir que elas têm os direitos conferidos pelas leis internacionais e pelas leis de todos os países civilizados. Essa interminável “guerra global contra o terrorismo” — na qual tanto a bastante justificável invasão do Afeganistão e a invencível insensatez do Iraque foram incluídas por um decreto do Pentágono — leva inevitavelmente à demonização e à desumanização de qualquer pessoa que o governo Bush declare ser um possível terrorista: uma definição que não é objeto de debate e, na verdade, é em geral feita em segredo.
Como não existem acusações contra a maioria das pessoas detidas nas prisões no Iraque e no Afeganistão — a Cruz Vermelha informa que entre 70% e 90% dos presos parecem não ter cometido nenhum crime, exceto simplesmente estar no lugar errado na hora errada, recolhidos em alguma leva de “suspeitos” —, a principal justificativa para mantê-los presos é um “interrogatório”. Interrogatório sobre o quê? Sobre qualquer coisa. O que quer que o preso saiba. Se o interrogatório é o motivo para deter prisioneiros por um tempo indefinido, então a coerção física, a humilhação e a tortura tornam-se inevitáveis.
Lembremos: não estamos falando daquele caso raríssimo, a situação “bomba-relógio”, que é às vezes usada como caso-limite que justifica a tortura de presos que possuem um conhecimento de um ataque iminente. Trata-se de uma coleta de informações inespecífica ou genérica, sancionada pelas Forças Armadas americanas e pelos governantes civis a fim de saber mais a respeito de um nebuloso império de malfeitores, sobre os quais os americanos não sabem quase nada, em países sobre os quais eles são especialmente ignorantes: em princípio, toda e qualquer informação pode ser útil. Um interrogatório que não produz nenhuma informação (não importa em que consista essa informação) será considerado um fracasso. Por isso é mais justificável ainda que se preparem os prisioneiros para falar. Amolecer os prisioneiros, deixá-los debilitados — são eufemismos para as práticas bestiais nas prisões americanas onde suspeitos de terrorismo estão detidos. Infelizmente, parece que são muitos aqueles que ficam debilitados demais e morrem.
As fotos não vão desaparecer. Essa é a natureza do mundo digital em que vivemos. De fato, parece que elas eram necessárias para levar os nossos líderes a reconhecer que tinham um problema nas mãos. Afinal, as conclusões dos relatórios compilados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outros relatos feitos por jornalistas e protestos apresentados por organizações humanitárias sobre os castigos atrozes infligidos aos “detidos” e “suspeitos de terrorismo” nas prisões dirigidas pelas Forças Armadas americanas, primeiro no Afeganistão e depois no Iraque, já circulavam havia mais de um ano. Parece duvidoso que tais relatórios tenham sido lidos pelo sr. Bush, pelo sr. Cheney, pela sra. Rice ou pelo sr. Rumsfeld. Ao que parece, foi preciso que as fotos surgissem para que a atenção deles despertasse, quando ficou claro que elas não poderiam ser apagadas; foram as fotos que tornaram tudo isso “real” para o presidente e seus associados. Até então, só havia palavras, que são mais fáceis de encobrir, em nossa era de auto-reprodução e autodisseminação digitais infinitas, e, portanto, muito mais fáceis de esquecer.
Assim, as fotos agora continuarão a nos “agredir” — como muitos americanos são forçados a sentir. Será que as pessoas irão se acostumar com elas? Alguns americanos andam dizendo que já viram demais. Porém o resto do mundo pensa diferente. Guerra interminável: fluxo de fotos interminável. Será que os editores irão agora debater se devem mostrar mais fotos, ou se mostrá-las sem cortes (o que, no caso de algumas das mais conhecidas imagens, como a de um homem encapuzado sobre uma caixa, forma uma imagem diferente e, em certos exemplos, mais aterradora) seria “mau gosto” ou implicitamente político demais? Por “político” entenda-se: “crítico” do projeto imperial do governo Bush. Pois não pode haver nenhuma dúvida de que as fotos prejudicam, como atestou o sr. Rumsfeld, “a reputação dos homens e mulheres honrados das Forças Armadas que estão corajosamente e com toda a responsabilidade e profissionalismo defendendo a nossa liberdade em todo o mundo”. Esse prejuízo — à nossa reputação, nossa imagem, nosso sucesso como única superpotência — é aquilo que o governo Bush deplora acima de tudo. Como a proteção da “nossa liberdade” — a liberdade de 5% da humanidade — chegou ao ponto de exigir a presença de soldados americanos em todo o mundo é uma questão nunca discutida pelos nossos governantes eleitos. Os Estados Unidos vêem a si mesmos como uma vítima do terror futuro ou potencial. Os Estados Unidos estão apenas se defendendo, contra inimigos furtivos e implacáveis.
A reação violenta já começou. Os americanos estão sendo advertidos por se entregarem a uma orgia de autocondenação. A contínua publicação das fotos está sendo vista por muitos americanos como uma sugestão de que não temos o direito de nos defender: afinal, eles (os terroristas) começaram. Eles — Osama bin Laden? Saddam Hussein? Qual a diferença? — nos atacaram primeiro. James Inhofe, de Oklahoma, membro republicano do Comitê do Serviço Militar do Senado, diante do qual o secretário Rumsfeld prestou testemunho, confessou que tinha certeza de que ele não era o único membro do comitê “mais ultrajado pelo ultraje” das fotos do que pelo que as fotos mostravam. “Esses prisioneiros, sabe”, explicou o senador Inhofe, “não estão lá por uma violação das regras de trânsito. Se eles estão no bloco de celas 1-A ou 1-B, esses prisioneiros são assassinos, são terroristas, são insurgentes. Muitos deles provavelmente têm sangue americano nas mãos, e nós vamos ficar preocupados aqui com o tratamento recebido por esses elementos?” É culpa da “mídia”, que está provocando e vai continuar a provocar mais violência contra os americanos em todo o mundo. Mais americanos vão morrer. Por causa dessas fotos.
Seria um grande erro deixar que tais revelações da autorização da tortura, autorização feita pelas forças militares americanas e pelas autoridades civis americanas, na “guerra global contra o terrorismo” se tornem uma questão de guerra de — e contra — imagens. Os americanos estão morrendo não por causa das fotos, mas por causa daquilo que as fotos mostram que está acontecendo, acontecendo sob as ordens e com a cumplicidade de uma cadeia de comando que chega aos níveis mais altos do governo Bush. Mas a distinção entre foto e realidade — como entre enquadrar o assunto de um ângulo favorável na imprensa e uma estratégia política — pode evaporar-se facilmente. E é isso o que o governo Bush quer que aconteça.
Existem muito mais fotos e vídeos”, admitiu o sr. Rumsfeld em seu depoimento. “Se forem liberadas para o público, obviamente a situação irá piorar.” Piorar para o governo e seus projetos, supostamente, não para aqueles que são as efetivas — e potenciais — vítimas da tortura.
A mídia pode se autocensurar, mas como reconhece o sr. Rumsfeld é difícil censurar os soldados que estão em outros países, que não escrevem cartas para casa, como antigamente, cartas que podem ser abertas por censores militares que riscam os trechos inaceitáveis. Em vez disso, os soldados de hoje agem como turistas, conforme disse o sr. Rumsfeld, “saem por aí com câmeras digitais e tiram essas fotos inacreditáveis e depois as enviam, contra a lei, para a mídia, para a nossa surpresa”. O esforço do governo para reter as fotos se dá em diversas frentes ao mesmo tempo. No momento, a discussão está assumindo uma feição legalista: as fotos são agora classificadas como provas para futuros processos criminais, cujo resultado pode ser prejudicado se elas forem divulgadas. O presidente republicano do Comitê do Serviço Militar do Senado, John Warner, da Virgínia, depois da apresentação das fotos em slides, no dia 12 de maio, mostrando seguidas imagens de humilhação e violência sexual contra prisioneiros iraquianos, disse estar “firmemente convencido” de que as novas fotos “não devem ser divulgadas. Creio que isso poderia pôr em perigo os homens e as mulheres das Forças Armadas, pois estão em atividade e sob grande risco”.
Mas a verdadeira iniciativa de limitar o acesso às fotos virá do esforço contínuo de proteger o governo e encobrir os nossos desmandos no Iraque — identificar o “ultraje” das fotos com uma campanha para minar o poder militar americano e os propósitos a que ele atualmente serve. Assim como muitos achavam que as imagens de soldados americanos mortos durante a invasão e a ocupação do Iraque que apareciam na televisão eram uma crítica implícita da guerra, divulgar as novas fotos e macular mais ainda a imagem dos Estados Unidos será entendido, de modo crescente, como impatriótico.
Afinal, estamos em guerra. Guerra interminável. E a guerra é um inferno maior do que as pessoas que nos colocaram nessa guerra podre parecem ter planejado. Em nossa sala de espelhos digital, as fotos não vão desaparecer. Sim, parece que uma foto vale mil palavras. E mesmo que nossos líderes prefiram não olhar para elas, haverá outros milhares de instantâneos e de vídeos. Incontroláveis.

Susan Sontag, em Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos

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