Uma tarde, depois de um bom almoço,
estirado numa cadeira preguiçosa no terraço da sua casa na Côte
d’Azur, Picasso adormece e sonha que está no Museu do Prado, em
Madri, na frente do quadro As meninas, do Velázquez, e que ao
seu lado está alguém que a princípio ele não reconhece. Ele e o
outro são as únicas pessoas no grande salão do museu onde a
pintura de Velázquez é o único quadro. A pintura de Velázquez é
o único quadro no museu inteiro.
Picasso julga reconhecer o homem ao
seu lado, mas não tem certeza de que seja quem está pensando.
— De onde eu conheço o senhor?
— Talvez dos meus autorretratos...
— Francisco Goya!
— Em pessoa. Ou o que resta dela. E
o senhor é...
— Pablo Picasso.
— Foi o que eu desconfiei. Mas nos
seus autorretratos o senhor nem sempre é reconhecível...
— É que eu nunca aceitei que os
dois olhos não pudessem ser do mesmo lado do nariz.
— Mas eu deveria tê-lo reconhecido
pelas fotografias. O senhor é uma das pessoas mais fotografadas do
mundo. Eu o invejo.
— Por ser tão fotografado?
— Não. Por poder pintar os dois
olhos no mesmo lado do nariz. E a boca onde quiser. E os pés no
lugar das orelhas. Eu não tive essa liberdade. Fui um revolucionário
na minha arte, mas não o bastante. Éramos reféns da anatomia. O
senhor se libertou disso.
— Me diga, o que o senhor acha desta
ideia de esvaziar o Prado e deixar só As meninas, do
Velázquez, em exposição?
— Acho justo. É uma maneira de
dizer que, depois de Velázquez, toda a pintura é supérflua.
— Mas as suas pinturas negras também
foram banidas do museu, com todas as outras...
— Está certo. Eu não as pintei
para serem expostas. Foram pintadas nas paredes da minha casa, para
só serem vistas por mim. São expressões da minha misantropia, do
meu asco pela vida, da minha loucura final. Quem quer ver a sua
degradação exposta em público?
— Elas são as pinturas mais
poderosas e inquietantes jamais feitas. E olha que eu não sou de
elogiar a concorrência.
— O seu Guernica não fica
atrás...
— Obrigado, mas eu acho Guernica
uma ode à inutilidade da arte. Foi elogiado como um libelo contra a
estupidez humana, mas não impediu que outras “Guernicas”
acontecessem, e a estupidez humana prevalecesse. Guernica foi apenas
um aperitivo para Hiroshima.
— Somos supérfluos de várias
maneiras, além da que decretou o Prado. Todo artista é supérfluo.
— Menos o Velázquez.
— Menos o Velázquez.
— Sabe, senhor Goya, muita gente já
nos comparou e notou como nossas trajetórias são opostas. O senhor
começou como pintor da corte, retratando a vida alegre da
aristocracia na Madri dos Bourbons, e acabou doente, num exílio
amargo entre pinturas negras, sozinho e esquecido. Sua trajetória
foi da frivolidade para as trevas. Eu, ao contrário, fui ficando
cada vez mais mundano, cada vez mais frívolo. Comecei como um
artista de vanguarda incompreendido e acabei como uma celebridade
internacional, uma das pessoas mais fotografadas do mundo, fazendo
arte instantânea como criança. Apesar de velho, ainda tenho saúde
e tesão pela vida. Agora mesmo, acabo de comer um peixe maravilhoso
feito pela minha atual mulher... A sétima, se não perdi a conta.
— Por sinal, senhor Picasso,
obrigado por sonhar comigo na sua sesta. A única maneira que eu
tenho de voltar à vida, nem que seja só para rever As meninas,
é na imaginação dos outros. E, não sei se o senhor notou, no seu
sonho eu não sou surdo, como fui durante grande parte da minha vida.
Muito obrigado.
— Olhe, senhor Goya! Que estranha
luminosidade emana do quadro do Velázquez! O senhor não está
vendo?
— Não, eu...
— Parece o sol. É a luz de um sol!
Picasso acorda com o sol na sua cara.
Pensa em chamar a mulher para lhe trazer um chapéu, mas não se
lembra do seu nome.
Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis
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