“Eu sou apenas o pai do Chico” —
dizia Sérgio Buarque de Holanda quando alguém pretendia
entrevistá-lo. Modéstia do orador e ao mesmo tempo orgulho
(justíssimo) de pai. Esse homem que morreu há dois anos ocupava um
lugar todo especial em nossa cultura pela penetração e equilíbrio
de seus ensaios de História e Psicologia Social. Mostrou-se grande
logo em seu primeiro livro, Raízes do Brasil, tão famoso que
faz esquecer os outros. Afonso Arinos protestava outro dia contra o
relativo esquecimento em que caiu o livro Do Império à República;
eu por mim tive um grande prazer há pouco tempo em ler Caminhos e
Fronteiras, que fui encontrar, com uma dedicatória carinhosa, mas
todo fechado ainda, no caos de minha estante.
Um livro de grande erudito, mas livro
saboroso em que aprendemos muita coisa séria através de
trivialidades antigas — o monjolo, a rede, a tanajura, a canoa, o
moquém, a cutia, o mel de pau...
Mas para nós, de Cachoeiro de
Itapemirim, Sérgio Buarque de Holanda era também o Dr. Progresso.
Foi o caso que, em 1925, o jornalista
e caricaturista Vieira da Cunha fundou em Cachoeiro um jornal diário
chamado Progresso. Vejo, em uma publicação antiga, o clichê
muito reduzido da primeira página do número 11, de 1? de maio de
1925. Aí um correspondente do Rio manda opiniões de vários
escritores sobre o jornal. São elogios de Graça Aranha, Prudente de
Moraes Neto, Américo Facó, José Geraldo Vieira, Elói Pontes,
Olegário Mariano e, entre outros, Sérgio Buarque de Holanda. Pouco
depois, Vieira da Cunha convenceu Sérgio a ir para Cachoeiro dirigir
o jornal. Ele partiu. Manuel Bandeira saudou essa “aventura”
dizendo que ele era o Coronel Fawcet de Cachoeiro de Itapemirim,
lembrando um explorador inglês que se perdeu na Amazônia...
Não sei quanto tempo Sérgio ficou lá
em Cachoeiro. Lembro-me que logo pegou o apelido de Dr. Progresso, e
que usava óculos. Pouco antes, segundo atestam Afonso Arinos e
Manuel Bandeira, ele usava monóculo. Escreve Bandeira em uma crônica
recolhida no livro Flauta de Papel: Nunca me esqueci de sua
figura certo dia em pleno Largo da Carioca, com um livro debaixo do
braço e no olho direito o monóculo que o obrigava a um ar de
seriedade. Naquele tempo não fazia senão ler. Estava sempre com o
nariz metido num livro ou numa revista — nos bondes, nos cafés,
nas livrarias. Tanta eterna leitura me fazia recear que Sérgio
soçobrasse num cerebralismo...
E mais adiante:
Lia todas as novidades da literatura
francesa, inglesa, alemã, italiana e espanhola. Sérgio não
soçobrou: curou-se do cerebralismo caindo na farra. Dispersou a
biblioteca, como seja a trouxesse de cor (e trazia mesmo, que memória
a dele!) e acabou emigrando para Cachoeiro de Itapemirim.
Escreve, a seguir, Bandeira, que quem
poderia contar as andanças de Sérgio em Cachoeiro era... o Rubem
Braga, que naquele tempo era ainda menino, e suspeito que fez parte
das badernas que acompanhavam de assuada os passos mal seguros do Dr.
Progresso.
Por um triz que Sérgio se perde, e
foi quando pretendeu ser professor no ginásio de Vitória. O Estado
do Espírito Santo até hoje não sabe a oportunidade que botou fora
quando o seu governador de então voltou atrás do ato que nomeava
professor de História Universal e História do Brasil o futuro autor
de Raízes do Brasil. Benditos porres de Cachoeiro de
Itapemirim! Eles nos valeram a devolução, em perfeito estado, de
Sérgio, enfim descerebralizado, pronto para a aventura na Alemanha,
de volta da qual já era a figura sem par a que me referi no começo
destas linhas. Sérgio já não lia mais nos cafés,
desinteressara-se bastante da poesia e da ficção, apaixonara-se
pelos estudos de História e Sociologia, escrevia Raízes do
Brasil e Monções — escreveu Bandeira.
Sim, eu me lembro do Dr. Progresso;
seus porres afinal não eram tão grandes, e ele nunca ofendia
ninguém. Costumava tomar umas e outras com o saudoso Cel. Ricardo
Gonçalves e outros bons homens da terra, que formavam o Clube do
Alcatrão, assim chamado porque um deles era o representante local do
Conhaque de Alcatrão de São João da Barra, que todos bebiam de
brincadeira. Sérgio foi promotor adjunto. Logo que saiu de Cachoeiro
ele embarcou para a Alemanha, de onde mandava artigos e reportagens
para O Jornal. O pessoal de Cachoeiro via aquele nome no
jornal: será o Dr. Progresso? Que o quê!, dizia alguém. Então o
Chateaubriand ia mandar um bêbado daquele para a Europa? Mas o
Motinha do nosso Correio do Sul dizia que sim; ficassem
sabendo que Sérgio era um homem muito culto, muito preparado, tanto
assim que trocava língua com os alemães da fábrica de cimento.
“Vocês acham que ele não vale nada é porque ele não ia mostrar
o que sabia, a verdade é esta, não tinha com quem conversar, nós
aqui somos todos umas bestas!”, argumentava o bom Motinha.
Lembro-me sobretudo de uma noite de
verão de lua cheia, na saída de um baile — não em Cachoeiro, mas
na Vila de Itapemirim. Ele dizia que ia acender o cigarro na Lua. E
partiu, cambaleando entre as palmeiras. Vai ver que acendeu.
Rubem Braga, em Recado de primavera
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