75.
Para sentir a delícia e o terror da
velocidade não preciso de automóveis velozes nem de comboios
expressos. Basta-me um carro elétrico e a espantosa faculdade de
abstração que tenho e cultivo.
Num carro elétrico em marcha eu sei,
por uma atitude constante e instantânea de análise, separar a ideia
de carro da ideia de velocidade, separá-las de todo, até serem
coisas-reais diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro
do carro mas dentro da Mera-Velocidade dele. E, cansado, se acaso
quero o delírio da velocidade enorme, posso transportar a ideia para
o Puro Imitar da Velocidade e ao meu bom prazer aumentá-la ou
diminuí-la, alargá-la para além de todas as velocidades possíveis
de veículos comboios.
Correr riscos reais, além de me
apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente —
perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me
incomoda e me despersonaliza.
Nunca vou para onde há risco. Tenho
medo a tédio dos perigos.
Um poente é um fenómeno intelectual.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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