— Olha aí, os primeiros morangos!
Bonita cor, bonita palavra, mas em junho? Em julho é que eles deviam
aparecer oficialmente, anda tudo mudado, enfim desta vez mudou para
melhor, não houve adiamento para outubro ou novembro por motivos de
ordem técnica, esses motivos que a gente não fica sabendo quais
sejam, mas os morangos nunca mais foram colhidos diretamente no
bosque, ou, se você prefere, na campina verdejante, por dedos jovens
que logo os levavam à boca, a propósito: seus lábios eram assim
tão vermelhos, ou você os pintava com morango espremido? Hoje eles
(os morangos, claro que não me refiro aos lábios) vêm em cestinhas
de taquara ou de lâminas finas de madeira, dizem até que já brotam
assim da rama acondicionados em cestinhas maiores ou menores,
conforme a intenção do vendedor e as posses do consumidor, são
apartamentos de morango, né? uns maiores, outros menores, como
acontece com a gente, ai morangos! O ácido sabor cortado pela branca
moleza do creme Chantilly, e essa agora, quando que morango
brasileiro de hábitos silvestres podia imaginar que seria misturado
a essa francesice, edulcorado a sucre vanillé e todas as milongolias
conotativas que o nome desperta: forêt, chateau, porcelaine,
dentelles… deixa pra lá, no fundo ele gosta, é a sofisticação
invadindo a natureza, morango de inverno virou primo-rico de morango
de todo o ano, sente-se e prove a sobremesa, deixe um pouco de creme,
um pouquinho só, nevar a quase imperceptível penugem do seu buço,
criança gosta de se lambuzar e de ver os outros lambuzados, faz de
conta que você, assim de botas e de short, caminhou para trás no
tempo, aliás, pouco, não estamos no Nino’s, que importância tem
isso? O morango maior, esse aí, tenha paciência, vou furtá-lo de
sua taça, ele me pertence de direito imemorial, não, não vamos
dividi-lo, que negócio é esse? Sou capaz de brigar por causa de um
supermorango, você ainda não me conhece bem, deixe eu ser glutão,
egoísta e bárbaro, mas se você faz mesmo questão de um sacrifício
de minha parte, e tendo em vista as altas razões que movem o coração
dos dominadores, bem, eu, el-rei, vos envio muito saudar e deposito
pessoalmente em sua boca o maior dos morangos do meu reino, ainda
ontem ele estava exposto na vitrine de uma casa de frutas da rua da
Carioca, foi fotografado e televisionado, creio até que foi
entrevistado mas falou monossílabos, não é de muito falar, morango
vale por si, independente de suas ideias, uns o acharam cafona, mania
dessa gente chamar de cafona tudo que foge à bitola estreita, repare
que apesar de toda essa onda ele é dos mais discretos e honrados
entre os morangos da presente safra, da qual não se pode ainda
afirmar que seja esplendorosa ou medíocre, repare ainda que nem é
propriamente um morango gigante, cabe fácil na colher, o que há é
que ele me pareceu destinado a mim por um signo invisível gravado em
sua epiderme rubra, quem sabe o que os morangos levam de código, há
frutas sem mensagem, vazias, podiam não existir que ninguém lhes
sentiria a falta, mas o morango tem uma personalidade! Talvez eu
exagere, não é tanto assim, mas há momentos na vida do homem em
que é imperativo conferir propriedades novas às coisas,
propriedades que podem suplantar as que lhes são imanentes, se eu
não tiver o poder de exaltar ao máximo os morangos, que me resta de
positivo entre estes muros e circunstâncias, me diga por favor, ah,
prefere não falar, eu sei, prefere degustar um a um a porção de
morangos que o garçom lhe adjudicou, por sinal que ele botou mais na
sua taça do que na minha, eu faria o mesmo, gentileza não é
privilégio de garçons, gentileza maior eu faria na mata municipal,
não a mata virgem de jaguar e suçuarana, mas num matinho particular
onde, caminhando juntos, topássemos com um silencioso pé de amora,
prefiro dizer framboesa, e só uma framboesa estaria madura, para
você eu a destinara desde que nasci, estava ali me, nos esperando,
mágica, mística, morada como em espanhol se fala, e eu a colheria e
ela se abriria, em concha, e dentro dela estaria ofertada a você a
razão primeira das coisas, o inefável sentido das coisas diversas,
pode levar, isto é seu, o mundo lhe pertence a partir deste momento…
viu o que se pode tirar da notícia de morangos em junho, viu?
Carlos Drummond de Andrade, em De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
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