Creio que todas as palavras que vamos
pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente
esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem
ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não
intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria
menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida
passada à escrita e ao papel. Esta convicção de que tudo quanto
dizemos e fazemos ao longo do tempo, mesmo parecendo desprovido de
significado e importância, é, e não pode impedir-se de o ser,
expressão biográfica, levou-me a sugerir um dia, com mais seriedade
do que à primeira vista possa parecer, que todos os seres humanos
deveriam deixar relatadas por escrito as suas vidas, e que esses
milhares de milhões de volumes, quando começassem a não caber na
Terra, seriam levados para a Lua. Isto significaria que a grande, a
enorme, a gigantesca, a desmesurada, a imensa biblioteca do existir
humano teria de ser dividida, primeiro, em duas partes, e logo, com o
decorrer do tempo, em três, em quatro, ou mesmo em nove, na
suposição de que nos oito restantes planetas do sistema solar
houvesse condições de ambiente tão benévolas que respeitassem a
fragilidade do papel. Imagino que os relatos daquelas muitas vidas
que, por serem simples e modestas, coubessem em apenas meia dúzia de
folhas, ou ainda menos, seriam despachados para Plutão, o mais
distante dos filhos do Sol, aonde de certeza raramente quereriam
viajar os investigadores.
Decerto se levantariam problemas e
dúvidas na hora de estabelecer e definir os critérios de composição
das ditas “biobliotecas”. Seria indiscutível, por exemplo, que
obras como os diários de Amiel, de Kafka ou de Virginia Woolf, a
biografia de Samuel Johnson, a autobiografia de Cellini, as memórias
de Casanova ou as confissões de Rousseau, a par de tantas outras de
importância humana e literária semelhante, deveriam permanecer no
planeta onde haviam sido escritas para que fossem testemunho da
passagem por este mundo de homens e mulheres que, pelas boas ou más
razões do que tinham vivido, deixaram um sinal, uma presença, uma
influência que, tendo perdurado até hoje, continuarão a deixar
marcadas as gerações vindouras. Os problemas surgiriam quando sobre
a escolha do que deveria ficar ou enviar ao espaço exterior
começassem a reflectir-se as inevitáveis valorações subjectivas,
os preconceitos, os medos, os rancores antigos ou recentes, os
perdões impossíveis, as justificações tardias, tudo o que na vida
é assombração, desespero e agonia, enfim, a natureza humana. Creio
que, afinal, o melhor será deixar as coisas como estão. Como a
maior parte das melhores ideias, também esta minha é impraticável.
Paciência.
José Saramago, em O caderno
Nenhum comentário:
Postar um comentário