Embora O Capital seja
geralmente classificado como obra de economia, Karl Marx devotou-se
ao estudo da economia política apenas depois de vários anos de
pesquisa aos campos da filosofia e da literatura, que formam a base
intelectual do projeto. Sua experiência pessoal de alienação é
que confere tamanha intensidade à análise de um sistema econômico
que afasta as pessoas umas das outras e do mundo que habitam – uma
sociedade em que os seres humanos são escravizados pelo monstruoso
poder do capital e das mercadorias inanimadas.
Desde o momento em que nasceu, em 5 de
maio de 1818, Marx viveu à margem – um garoto judeu em uma cidade
predominantemente católica, Trier, dentro do Estado prussiano, cuja
religião oficial era o protestantismo. Embora a Renânia tenha sido
anexada à França durante as guerras napoleônicas, três anos antes
de Marx nascer ela fora reincorporada à Prússia imperial, e os
judeus de Trier tornaram-se então vítimas de um édito que os bania
do exercício de suas profissões: o pai de Marx, Heinrich Marx,
viu-se obrigado a converter-se ao luteranismo para trabalhar como
advogado. Portanto, não surpreende que, ainda jovem, Karl Marx tenha
iniciado sua reflexão sobre o fenômeno da alienação. “Nem
sempre podemos alcançar a posição à qual acreditamos estar
destinados”, escreveu aos 17 anos em uma dissertação escolar. “De
certo modo, nossas relações na sociedade começaram a ser
estabelecidas antes mesmo de termos condição de determiná-las.”
Seu pai encorajava-o a ler com
voracidade. Os anos da anexação deram a Heinrich uma simpatia pelos
gostos franceses em política, religião, vida e arte: um de seus
netos descreveu-o como “um verdadeiro ‘francês’ do século
XVIII, que conhecia Voltaire e Rousseau de cor”. O outro mentor
intelectual do jovem Marx foi o barão Ludwig von Westphalen, amigo
de Heinrich e funcionário do governo, culto e liberal, que o
apresentou à poesia e à música (e à sua filha Jenny von
Westphalen, que depois viria a se tornar a sra. Karl Marx). Em longas
caminhadas, o barão recitava passagens de Homero e Shakespeare a seu
jovem acompanhante, que as memorizava – e mais tarde as empregaria
como principal tempero de seus próprios escritos. Já adulto, Marx
reencenaria os passeios com Von Westphalen, declamando passagens de
Shakespeare, Dante e Goethe quando levava sua própria família ao
alto do Hampstead Heath para piqueniques dominicais. Como escreveu
S.S. Prawer, no lar de Karl Marx todos eram obrigados a viver “em
uma perpétua tormenta de alusões à literatura inglesa”. Havia
uma citação própria para cada ocasião: debilitar um desafeto
político, dar vida a um texto árido, salientar um gracejo,
autenticar uma emoção – ou insuflar vida em uma abstração
inanimada, como fez com a personificação do capital, que fala pela
voz de Shylock (no primeiro tomo do Capital) para justificar a
exploração do trabalho infantil nas fábricas.
Trabalhadores e inspetores da
fábrica protestaram por motivos higiênicos e morais. O capital,
porém, respondeu:
— Que meus atos recaiam sobre
minha cabeça!
Meu direito exijo eu! A multa e o
penhor do meu título!
Para provar que o dinheiro é um
nivelador radical, Marx citava uma fala de Timão de Atenas,
de Shakespeare, que se refere ao dinheiro como “a prostituta comum
da humanidade”, seguida de outra, da Antígona, de Sófocles
(“Nada suscitou nos homens tanta ignomínia / Como o ouro. É capaz
de arruinar cidades, / De expulsar os homens de seus lares; / Seduz e
deturpa o espírito nobre / Dos justos, levando-os a ações
abomináveis; / Ensina aos mortais os caminhos da astúcia e da
perfídia, / E os induz a cada obra amaldiçoada pelos deuses”).
Economistas com categorias e modelos anacrônicos são comparados a
Dom Quixote, que “pagou pelo erro de presumir que a cavalaria
andante seria compatível a todas as formas econômicas de
sociedade”.
As primeiras ambições de Marx foram
literárias. Ainda estudante de direito na Universidade de Berlim,
escreveu um livro de poemas, um drama em versos e até um romance,
Escorpião e Félix, redigido às carreiras enquanto estava
sob o encantamento da leitura de Tristram Shandy, de Laurence
Sterne. Depois dessas experiências, sentiu-se desanimado:
Subitamente, como num toque de
mágica – ó, o toque foi em princípio um golpe perturbador –,
vislumbrei o reino longínquo da verdadeira poesia como um palácio
distante e encantado, e todas as minhas criações reduziram-se a
nada…. Uma cortina se abriu, meu santuário se despedaçou, e novos
deuses precisaram ser empossados.
Acometido por uma espécie de colapso,
foi aconselhado por seu médico a se refugiar no campo para um longo
descanso – no qual finalmente se rendeu à sedutora voz de G.W.F.
Hegel, o então recém-falecido professor de filosofia de Berlim cujo
legado era alvo de intensa disputa entre discípulos e
conferencistas. Na juventude, Hegel apoiou com entusiasmo a Revolução
Francesa e seus ideais; na meia-idade, porém, tornou-se acomodado e
complacente, acreditando que um homem maduro de fato deveria
reconhecer “a necessidade objetiva e a racionalidade do mundo que o
defronta”. Segundo o filósofo alemão, “tudo que é real é
racional”, e, visto que o Estado prussiano era sem dúvida real, no
sentido de que existia, os discípulos mais conservadores de Hegel
argumentavam que o Estado era, por consequência, racional e
irrepreensível. Aqueles que professavam a obra mais subversiva dos
primeiros anos – os Jovens Hegelianos – preferiam citar a segunda
metade da máxima: “tudo que é racional é real”. Uma monarquia
absoluta, apoiada por censores e pela polícia secreta, era
evidentemente irracional e, portanto, irreal, uma miragem que
desapareceria tão logo alguém ousasse tocá-la.
Na universidade, Marx adotou o hábito
de anotar excertos de todos os livros que lia – costume que jamais
abandonaria. Uma lista das leituras desse período revela a
precocidade de suas investigações intelectuais. Enquanto escrevia
um ensaio sobre a filosofia do direito, realizou um estudo detalhado
da História da arte, de Johann Joachim Winckelmann; aprendeu
sozinho inglês e italiano; traduziu a Germânia, de Tácito,
e a Retórica, de Aristóteles. No mesmo período também leu
Francis Bacon e, segundo confessou ao pai, “gastei um bom tempo com
Hermann Samuel Reimarus, sobre cujo livro a respeito dos instintos
artísticos dos animais me debrucei com prazer.”
É esse o mesmo estilo de pesquisa
eclético, onívoro e não raro paralelo que deu ao Capital sua
extraordinária amplitude de referências. A descrição que Marx faz
de Demócrito em sua tese de doutorado, Diferença entre as
filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, se assemelha
admiravelmente a um autorretrato: “Cícero chamava-o um vir
eruditus. É versado em física, ética, matemática, nas
disciplinas enciclopédicas, em todas as artes.”
Durante algum tempo, Marx parecia
inseguro sobre como utilizar tamanha erudição. Após a conclusão
do doutorado, considerou a possibilidade de ensinar filosofia, mas
logo decidiu que a proximidade diária dos professores seria
intolerável. “Quem desejaria para si a eterna obrigação de
conversar com detestáveis intelectuais, indivíduos que estudam com
o único propósito de encontrar novos ‘becos sem saída’ em cada
recanto do mundo?” Além disso, desde que deixara a universidade,
Marx voltara seus pensamentos do idealismo para o materialismo, do
abstrato para o concreto. “Visto que cada verdadeira filosofia é a
quintessência intelectual de sua época”, escreveu em 1842,
“chegará a hora em que a filosofia, não apenas internamente, por
causa de seu conteúdo, mas também externamente, por meio de sua
forma, estabelecerá contato e interação com o mundo real de seu
tempo.” Na primavera do mesmo ano, começou a escrever para um
jornal liberal de Colônia, a Gazeta Renana, cuja direção
assumiria seis meses depois.
O jornalismo de Marx caracterizava-se
por uma estouvada beligerância que explica por que passou grande
parte da vida adulta no exílio e no isolamento político. O primeiro
artigo dele para a Gazeta Renana foi um ataque à intolerância
do absolutismo prussiano e à mente estreita de seus oponentes
liberais. Não satisfeito em fazer, a um só tempo, inimigos no
governo e na oposição, também se voltou contra os próprios
companheiros e denunciou os Jovens Hegelianos por “brutalidade e
vilania”. Apenas dois meses após Marx assumir a responsabilidade
editorial, o governador da província pediu aos censores em Berlim
que o processassem por “crítica impudente e desrespeitosa”.
Pouco depois, ninguém menos que o czar Nicolau, ao sentir-se
ofendido com uma diatribe anti-russa, solicitou ao rei da Prússia a
extinção da Gazeta Renana. O jornal foi fechado em março de
1843: aos 24 anos, Marx já brandia uma pena capaz de amedrontar e
enfurecer as maiores coroas da Europa. Ao perceber que não teria
futuro na Prússia, aceitou um convite para ir a Paris como co-editor
de uma nova revista produzida por exilados alemães, os Anais
Franco-Alemães. Havia apenas um inconveniente: “Estou noivo;
não devo, não posso e não irei abandonar a Alemanha sem minha
noiva.”
Karl Marx casou-se com Jenny von
Westphalen em junho de 1843. Durante aquele verão, enquanto
aguardava um chamado de Paris, o jovem casal aproveitou uma
prolongada lua-de-mel no elegante balneário de Kreuznach. Quando não
caminhava com a esposa às margens do rio, Marx se recolhia a uma
sala de trabalho, lia e escrevia com furiosa intensidade. Sempre
gostou de elaborar suas ideias no papel, e uma página remanescente
dos cadernos de Kreuznach revela tal processo em pleno andamento:
Nota.
Sob Luís XVIII, a Constituição por graça do rei (carta outorgada
pelo rei); sob Luís Felipe, o rei por graça da Constituição
(reinado outorgado). Em geral podemos observar que a conversão do
sujeito em predicado e do predicado em sujeito, a troca daquilo que
determina pelo que é determinado, é sempre a mais imediata
revolução…. O rei faz a lei (antiga monarquia), a lei faz o rei
(nova monarquia).
A simples inversão sintática revela
o equívoco da filosofia alemã. Hegel pressupunha que “a Idéia do
Estado” era o sujeito, que tinha a sociedade como objeto, enquanto
a história demonstrava o oposto. Vire o pensamento de Hegel de
cabeça para baixo, e o problema se resolve: a religião não faz o
homem, o homem faz a religião; a Constituição não cria o povo, o
povo cria a Constituição. Embora tenha tomado a ideia de Ludwig
Feuerbach – que havia escrito que “o pensamento origina-se do
ser, não o ser do pensamento” –, Marx ampliou essa lógica,
transpondo-a da filosofia abstrata para o mundo material.
Como escreveu nas Teses sobre
Feuerbach, publicadas em 1845: “Até agora os filósofos apenas
têm interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão,
porém, é transformá-lo.” Aqui, ainda embrionária, está
a ideia básica do Capital. Por mais gloriosos que pareçam os
triunfos econômicos, o capitalismo permanece um desastre, uma vez
que transforma as pessoas em mercadorias intercambiáveis por outras
mercadorias. Até que os homens possam se afirmar como sujeitos da
história, e não como objetos, não há modo de escapar a essa
tirania.
O triunvirato dos Anais
Franco-Alemães – Karl Marx, o jornalista Arnold Ruge e o poeta
Georg Herwegh – desembarcou em Paris no outono de 1843 e deu início
a um “falanstério”, ou comuna, na rue Vanneau, inspirado pelas
ideias utópicas do socialista francês Charles Fourier. A vivência
em comunidade foi uma experiência tão breve quanto a própria
revista: apenas um único número apareceu antes da dispersão dos
editores. Marx aceitou então uma oferta para escrever no Vorwärts,
um quinzenário comunista publicado por expatriados alemães no qual
delineou pela primeira vez sua convicção de que a consciência de
classe era um catalisador da revolução. “O proletariado alemão é
o teórico do proletariado europeu, assim como o proletariado inglês
é o economista, e o proletariado francês, o político”, escreveu
ele, antecipando uma avaliação de Engels, que qualificaria o
marxismo como um híbrido dessas três linhagens.
Naquele momento Marx já era bem
versado em filosofia alemã e política francesa; iniciava-se nos
estudos de economia inglesa, percorria, à sua maneira, as obras de
Adam Smith, David Ricardo e James Mill, e, à medida que avançava,
rabiscava incessantemente suas anotações. Essas notas, de hábito
conhecidas como “manuscritos de Paris”, são uma espécie de
rascunho inicial do que viria a ser O Capital.
O primeiro manuscrito começa com uma
assertiva direta: “Os salários são determinados pela luta aberta
entre o capitalista e o trabalhador. O capitalista inevitavelmente
vence. Ele pode viver mais sem o trabalhador que o trabalhador sem
ele.” Se o capital nada mais é que o fruto acumulado da labuta do
trabalhador, então o capital da nação cresce somente quando
… se privam os trabalhadores de
uma parcela cada vez maior de sua produção, quando de modo
crescente seu próprio trabalho os defronta como a propriedade
alheia, e os meios de subsistência e ação se concentram de modo
progressivo nas mãos do capitalista.
Até nas mais favoráveis condições
econômicas o destino do trabalhador é, inevitavelmente, “o
excesso de trabalho e a morte precoce, a redução a uma máquina, a
submissão ao capital”. Seu trabalho se torna um ser exterior, que
“existe fora dele, independentemente, alienado dele, e começa a
confrontá-lo como um poder autônomo; a vida que ele havia conferido
a um objeto o enfrenta como algo hostil e dele alienado”.
Essa imagem tem origem em um dos
livros favoritos de Marx, Frankenstein, a história de um
monstro que se volta contra seu próprio criador. Embora alguns
especialistas defendam que há uma “ruptura radical” entre o
pensamento do jovem Marx e o do Marx maduro, as expressões
inquietantes dos dois períodos são uma clara produção do mesmo
homem que argumentou no Capital, mais de 20 anos depois, que
os meios pelos quais o capitalismo aumenta sua produtividade
… mutilam o trabalhador e o
transformam num ser parcial, degradam-no e o tornam um apêndice da
máquina; aniquilam, com o tormento do trabalho, seu conteúdo,
alienam-lhe as potências espirituais do processo de trabalho, …
transformam seu tempo de vida em tempo de trabalho, jogam sua mulher
e seu filho sob a roda de Juggernaut do capital.
Em agosto de 1844, enquanto Jenny Marx
visitava a mãe em Trier, Friedrich Engels, então um jovem de 23
anos, apareceu no apartamento em que Karl Marx vivia em Paris. Os
dois já haviam se encontrado anteriormente, de passagem, na redação
da Gazeta Renana, e algum tempo depois Marx ficara bastante
impressionado com a “Crítica da economia política”, que Engels
submetera aos Anais Franco-Alemães. Pode-se entender por quê:
embora acreditasse que as forças sociais e econômicas fossem o
motor da história, Marx não tinha qualquer conhecimento prático ou
direto do capitalismo.
Engels estava em boa posição para
esclarecê-lo, sendo filho e herdeiro de um fabricante alemão de
algodão que possuía tecelagens em Manchester, coração da
Revolução Industrial e berço da Liga Anti-Lei do Trigo, uma cidade
apinhada de cartistas, owenistas e agitadores socialistas de todo
tipo. Engels se mudara para Lancashire no outono de 1842, a princípio
para inteirar-se dos negócios da família, mas com a verdadeira
intenção de observar as consequências humanas do capitalismo
vitoriano. De dia, era um jovem e diligente administrador do comércio
de algodão; depois do expediente, porém, mudava de lado, explorava
as ruas e os cortiços proletários da cidade a fim de recolher
material para sua precoce obra-prima, A situação da classe
operária na Inglaterra, de 1845.
Embora Marx e Engels tenham passado
dez dias juntos em Paris, o único registro a respeito desse período
épico se encontra em uma sentença solitária escrita por Engels
mais de 40 anos depois: “Quando visitei Marx em Paris no verão de
1844, nossa total concordância em todos os campos teóricos
tornou-se evidente, e nosso trabalho conjunto data daquele tempo.”
Eles se complementaram com perfeição, Marx com sua riqueza de
conhecimento, Engels com seu conhecimento da riqueza. Marx escrevia
devagar e dolorosamente, com incontáveis rasuras e emendas, enquanto
os manuscritos de Engels eram limpos e elegantes. Marx viveu no caos
e na penúria ao longo de quase toda a vida; Engels, embora
trabalhasse em tempo integral, mantinha uma formidável produção de
livros, cartas e artigos jornalísticos – e ainda encontrava tempo
para apreciar os prazeres da vida da alta burguesia, com cavalos nos
estábulos e muito vinho na adega.
Mesmo assim, apesar de suas aparentes
vantagens, Engels soube desde o princípio que jamais teria o papel
hegemônico na parceria. Aceitou, portanto, sem reclamação ou
ciúme, que seu dever era dar o apoio intelectual e financeiro que
tornaria possível a obra de Marx. “Simplesmente não compreendo”,
escreveu ele, “como alguém pode invejar o gênio; é algo tão
especial que nós, que não o temos, sabemos desde o início ser
inacessível; mas para invejar algo assim é preciso ser
tremendamente tacanho.”
Eles não guardavam segredos um para o
outro e tampouco tinham tabus: a correspondência entre os dois é
uma pungente combinação de história e fofoca, economia secreta e
piadas juvenis. Engels servia também como uma espécie de mãe
substituta para Marx – arranjava-lhe trocados para as despesas do
dia-a-dia, inquietava-se com sua saúde e continuamente o advertia
para que não negligenciasse os estudos. Em uma carta de outubro de
1844, a mais antiga de que se tem notícia entre os dois, já
incitava Marx a compilar sem demora suas anotações políticas e
econômicas em um livro: “Assegure-se de que o material que reuniu
seja em breve apresentado ao mundo. É um momento de agitação, Deus
bem o sabe!” Três meses depois sua impaciência aumentara:
Procure terminar o livro de
economia política mesmo que haja nele muita coisa que não o
satisfaça, não importa; as mentes encontram-se amadurecidas e
devemos malhar o ferro ainda quente…. Por isso, tente finalizá-lo
antes de abril, faça como eu, imponha-se uma data na qual
definitivamente o terá encerrado, e tenha certeza de que será
publicado sem demora.
Vã esperança: mais de duas décadas
se passariam antes que o primeiro volume do Capital finalmente
fosse entregue às prensas.
Nesse aspecto, entretanto, o próprio
Engels não estava completamente isento de culpa. Pouco depois do
encontro com Marx em Paris, propôs-lhe a colaboração em um pequeno
panfleto – no máximo 40 páginas – que criticasse os mais
irascíveis Jovens Hegelianos. Tendo terminado a parte que lhe cabia
– 20 páginas – em poucos dias, Engels não ficaria “nem um
pouco surpreso” ao descobrir, vários meses depois, que o panfleto
acumulava então 300 páginas. Marx era o tipo de escritor que não
conseguia resistir à distração, preferia a imediata gratificação
de panfletos e artigos à faina muda e inglória exigida por sua
magnum opus, então provisoriamente intitulada Crítica de
economia e política. Apesar de ter prometido entregar o
manuscrito do livro ao editor alemão Karl Leske no final do verão
de 1845, Marx o deixou de lado depois de escrever apenas o sumário,
dando-lhe a seguinte explicação:
Parece-me muito importante preceder
meu desenvolvimento positivo com uma obra polêmica contra a
filosofia alemã e o socialismo alemão até o presente. Isso é
necessário a fim de preparar o público para o ponto de vista
adotado em minha economia, que é diametralmente oposto à erudição
alemã de ontem e hoje…. Se for preciso, posso apresentar inúmeras
cartas que recebi da Alemanha e da França como prova de que esse
trabalho é aguardado pelo público com grande ansiedade.
Desculpa pouco plausível, uma vez que
o livro em questão, A ideologia alemã, não encontraria
editor até 1932. “Abandonamos, de muito bom grado, o manuscrito à
crítica roedora dos camundongos, visto que nosso objetivo principal
foi alcançado: esclarecer nossas próprias ideias”, escreveu Marx.
No entanto, ele ainda se sentia
incapaz de dedicar atenção total à sua obra econômica, ou
relutava em fazer isso. Haveria muitas outras interrupções
polêmicas ao longo dos anos seguintes: Miséria da filosofia,
uma invectiva de 100 páginas contra Pierre-Joseph Proudhon; Os
grandes homens do exílio, uma sátira loquaz sobre os “idiotas
mais notáveis” e os “velhacos democráticos” da diáspora
socialista; A secreta história diplomática do século XVIII,
peça de oratória anti-russa; A vida de Lorde Palmerston, em
que procurava provar que o ministro do Exterior era um agente secreto
do czar russo; e Herr Vogt, um agressivo ataque ao professor
de ciência natural da Universidade de Berna que atraíra a fúria de
Marx ao chamá-lo de charlatão e parasita. “Olho por olho,
represálias fazem o mundo girar”, murmurava Marx alegremente
consigo mesmo, enquanto perdia boa parte do ano na batalha com Vogt.
Contínuas preocupações domésticas
obstruíram ainda mais o andamento do livro. Em janeiro de 1845, o
enviado prussiano em Paris protestou junto ao rei Luís Felipe contra
um artigo do Vorwärts no qual Marx ridicularizava o rei
Frederico Guilherme IV. O ministro do Interior francês prontamente
fechou a revista e ordenou que o autor fosse expulso da França. O
único rei na Europa continental disposto a acolhê-lo era Leopoldo
I, da Bélgica, e apenas depois de receber por escrito de Marx a
promessa de que não publicaria “qualquer obra sobre política
contemporânea”.
Por acreditar que isso não o
impediria de participar da política, Marx intimou Engels a
encontrá-lo em Bruxelas, onde fundariam um Comitê de
Correspondência Comunista com o intuito de manter “um contínuo
intercâmbio de cartas” com grupos socialistas da Europa Ocidental.
Em 1847, o comitê tinha se convertido em uma ramificação da
recém-formada Liga Comunista de Londres, que convocou Marx para
produzir uma declaração de princípios. Marx produziu então o
Manifesto do Partido Comunista, provavelmente o panfleto mais
lido e influente da história.
Quando escreveu o Manifesto,
nas primeiras semanas de 1848, Marx acreditava que o capitalismo
burguês já havia cumprido suas obrigações e em breve seria
soterrado por suas próprias contradições. Ao agrupar em tecelagens
e fábricas os trabalhadores até então isolados, a indústria
moderna criara as verdadeiras condições para que o proletariado
constituísse uma força irresistível. “O que a burguesia produz
são, sobretudo, seus próprios coveiros.” Entretanto, por
acreditar que entoava uma oração fúnebre, Marx se permitia ser
generoso diante da prostração do adversário. Um crítico descreveu
o manifesto como “uma celebração lírica das conquistas da
burguesia”, e os primeiros leitores frequentemente se espantavam
com o louvor que dedicava ao inimigo:
Historicamente, a burguesia
desempenhou um papel revolucionário. Onde quer que tenha assumido o
poder, pôs fim a todas as relações feudais, patriarcais e
idílicas. Destruiu impiedosamente os vários laços feudais que
ligavam os homens a seus “superiores naturais”, deixando como
única forma de relação entre os homens o laço do frio interesse,
o insensível “pagamento à vista”. Afogou os êxtases sagrados
do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco e do sentimentalismo
pequeno-burguês nas gélidas águas do cálculo egoísta. Fez da
dignidade pessoal um simples valor de troca…. A burguesia não pode
existir sem revolucionar de modo permanente os meios de produção e,
por conseguinte, as relações de produção – e, com elas, todas
as relações sociais.
Com maior grandeza e complexidade,
Marx retomaria esses temas no Capital. Por ora, contudo, não havia
tempo para elaborações. Tanto a frase de abertura do Manifesto
(“Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”) quanto
sua igualmente famosa conclusão (“Que tremam as classes dominantes
diante da revolução comunista … PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO,
UNI-VOS!”) confirmam que, não obstante sua incomparável
inteligência, essa era uma peça de propaganda escrita às pressas,
no momento em que a insurreição parecia iminente.
[…]
Francis Wheen em, O Capital de Marx – Uma Biografia

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