domingo, 21 de dezembro de 2025

| 1 | Gestação



Embora O Capital seja geralmente classificado como obra de economia, Karl Marx devotou-se ao estudo da economia política apenas depois de vários anos de pesquisa aos campos da filosofia e da literatura, que formam a base intelectual do projeto. Sua experiência pessoal de alienação é que confere tamanha intensidade à análise de um sistema econômico que afasta as pessoas umas das outras e do mundo que habitam – uma sociedade em que os seres humanos são escravizados pelo monstruoso poder do capital e das mercadorias inanimadas.
Desde o momento em que nasceu, em 5 de maio de 1818, Marx viveu à margem – um garoto judeu em uma cidade predominantemente católica, Trier, dentro do Estado prussiano, cuja religião oficial era o protestantismo. Embora a Renânia tenha sido anexada à França durante as guerras napoleônicas, três anos antes de Marx nascer ela fora reincorporada à Prússia imperial, e os judeus de Trier tornaram-se então vítimas de um édito que os bania do exercício de suas profissões: o pai de Marx, Heinrich Marx, viu-se obrigado a converter-se ao luteranismo para trabalhar como advogado. Portanto, não surpreende que, ainda jovem, Karl Marx tenha iniciado sua reflexão sobre o fenômeno da alienação. “Nem sempre podemos alcançar a posição à qual acreditamos estar destinados”, escreveu aos 17 anos em uma dissertação escolar. “De certo modo, nossas relações na sociedade começaram a ser estabelecidas antes mesmo de termos condição de determiná-las.”
Seu pai encorajava-o a ler com voracidade. Os anos da anexação deram a Heinrich uma simpatia pelos gostos franceses em política, religião, vida e arte: um de seus netos descreveu-o como “um verdadeiro ‘francês’ do século XVIII, que conhecia Voltaire e Rousseau de cor”. O outro mentor intelectual do jovem Marx foi o barão Ludwig von Westphalen, amigo de Heinrich e funcionário do governo, culto e liberal, que o apresentou à poesia e à música (e à sua filha Jenny von Westphalen, que depois viria a se tornar a sra. Karl Marx). Em longas caminhadas, o barão recitava passagens de Homero e Shakespeare a seu jovem acompanhante, que as memorizava – e mais tarde as empregaria como principal tempero de seus próprios escritos. Já adulto, Marx reencenaria os passeios com Von Westphalen, declamando passagens de Shakespeare, Dante e Goethe quando levava sua própria família ao alto do Hampstead Heath para piqueniques dominicais. Como escreveu S.S. Prawer, no lar de Karl Marx todos eram obrigados a viver “em uma perpétua tormenta de alusões à literatura inglesa”. Havia uma citação própria para cada ocasião: debilitar um desafeto político, dar vida a um texto árido, salientar um gracejo, autenticar uma emoção – ou insuflar vida em uma abstração inanimada, como fez com a personificação do capital, que fala pela voz de Shylock (no primeiro tomo do Capital) para justificar a exploração do trabalho infantil nas fábricas.

Trabalhadores e inspetores da fábrica protestaram por motivos higiênicos e morais. O capital, porém, respondeu:
Que meus atos recaiam sobre minha cabeça!
Meu direito exijo eu! A multa e o penhor do meu título!

Para provar que o dinheiro é um nivelador radical, Marx citava uma fala de Timão de Atenas, de Shakespeare, que se refere ao dinheiro como “a prostituta comum da humanidade”, seguida de outra, da Antígona, de Sófocles (“Nada suscitou nos homens tanta ignomínia / Como o ouro. É capaz de arruinar cidades, / De expulsar os homens de seus lares; / Seduz e deturpa o espírito nobre / Dos justos, levando-os a ações abomináveis; / Ensina aos mortais os caminhos da astúcia e da perfídia, / E os induz a cada obra amaldiçoada pelos deuses”). Economistas com categorias e modelos anacrônicos são comparados a Dom Quixote, que “pagou pelo erro de presumir que a cavalaria andante seria compatível a todas as formas econômicas de sociedade”.
As primeiras ambições de Marx foram literárias. Ainda estudante de direito na Universidade de Berlim, escreveu um livro de poemas, um drama em versos e até um romance, Escorpião e Félix, redigido às carreiras enquanto estava sob o encantamento da leitura de Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Depois dessas experiências, sentiu-se desanimado:

Subitamente, como num toque de mágica – ó, o toque foi em princípio um golpe perturbador –, vislumbrei o reino longínquo da verdadeira poesia como um palácio distante e encantado, e todas as minhas criações reduziram-se a nada…. Uma cortina se abriu, meu santuário se despedaçou, e novos deuses precisaram ser empossados.

Acometido por uma espécie de colapso, foi aconselhado por seu médico a se refugiar no campo para um longo descanso – no qual finalmente se rendeu à sedutora voz de G.W.F. Hegel, o então recém-falecido professor de filosofia de Berlim cujo legado era alvo de intensa disputa entre discípulos e conferencistas. Na juventude, Hegel apoiou com entusiasmo a Revolução Francesa e seus ideais; na meia-idade, porém, tornou-se acomodado e complacente, acreditando que um homem maduro de fato deveria reconhecer “a necessidade objetiva e a racionalidade do mundo que o defronta”. Segundo o filósofo alemão, “tudo que é real é racional”, e, visto que o Estado prussiano era sem dúvida real, no sentido de que existia, os discípulos mais conservadores de Hegel argumentavam que o Estado era, por consequência, racional e irrepreensível. Aqueles que professavam a obra mais subversiva dos primeiros anos – os Jovens Hegelianos – preferiam citar a segunda metade da máxima: “tudo que é racional é real”. Uma monarquia absoluta, apoiada por censores e pela polícia secreta, era evidentemente irracional e, portanto, irreal, uma miragem que desapareceria tão logo alguém ousasse tocá-la.
Na universidade, Marx adotou o hábito de anotar excertos de todos os livros que lia – costume que jamais abandonaria. Uma lista das leituras desse período revela a precocidade de suas investigações intelectuais. Enquanto escrevia um ensaio sobre a filosofia do direito, realizou um estudo detalhado da História da arte, de Johann Joachim Winckelmann; aprendeu sozinho inglês e italiano; traduziu a Germânia, de Tácito, e a Retórica, de Aristóteles. No mesmo período também leu Francis Bacon e, segundo confessou ao pai, “gastei um bom tempo com Hermann Samuel Reimarus, sobre cujo livro a respeito dos instintos artísticos dos animais me debrucei com prazer.”
É esse o mesmo estilo de pesquisa eclético, onívoro e não raro paralelo que deu ao Capital sua extraordinária amplitude de referências. A descrição que Marx faz de Demócrito em sua tese de doutorado, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, se assemelha admiravelmente a um autorretrato: “Cícero chamava-o um vir eruditus. É versado em física, ética, matemática, nas disciplinas enciclopédicas, em todas as artes.”
Durante algum tempo, Marx parecia inseguro sobre como utilizar tamanha erudição. Após a conclusão do doutorado, considerou a possibilidade de ensinar filosofia, mas logo decidiu que a proximidade diária dos professores seria intolerável. “Quem desejaria para si a eterna obrigação de conversar com detestáveis intelectuais, indivíduos que estudam com o único propósito de encontrar novos ‘becos sem saída’ em cada recanto do mundo?” Além disso, desde que deixara a universidade, Marx voltara seus pensamentos do idealismo para o materialismo, do abstrato para o concreto. “Visto que cada verdadeira filosofia é a quintessência intelectual de sua época”, escreveu em 1842, “chegará a hora em que a filosofia, não apenas internamente, por causa de seu conteúdo, mas também externamente, por meio de sua forma, estabelecerá contato e interação com o mundo real de seu tempo.” Na primavera do mesmo ano, começou a escrever para um jornal liberal de Colônia, a Gazeta Renana, cuja direção assumiria seis meses depois.
O jornalismo de Marx caracterizava-se por uma estouvada beligerância que explica por que passou grande parte da vida adulta no exílio e no isolamento político. O primeiro artigo dele para a Gazeta Renana foi um ataque à intolerância do absolutismo prussiano e à mente estreita de seus oponentes liberais. Não satisfeito em fazer, a um só tempo, inimigos no governo e na oposição, também se voltou contra os próprios companheiros e denunciou os Jovens Hegelianos por “brutalidade e vilania”. Apenas dois meses após Marx assumir a responsabilidade editorial, o governador da província pediu aos censores em Berlim que o processassem por “crítica impudente e desrespeitosa”. Pouco depois, ninguém menos que o czar Nicolau, ao sentir-se ofendido com uma diatribe anti-russa, solicitou ao rei da Prússia a extinção da Gazeta Renana. O jornal foi fechado em março de 1843: aos 24 anos, Marx já brandia uma pena capaz de amedrontar e enfurecer as maiores coroas da Europa. Ao perceber que não teria futuro na Prússia, aceitou um convite para ir a Paris como co-editor de uma nova revista produzida por exilados alemães, os Anais Franco-Alemães. Havia apenas um inconveniente: “Estou noivo; não devo, não posso e não irei abandonar a Alemanha sem minha noiva.”
Karl Marx casou-se com Jenny von Westphalen em junho de 1843. Durante aquele verão, enquanto aguardava um chamado de Paris, o jovem casal aproveitou uma prolongada lua-de-mel no elegante balneário de Kreuznach. Quando não caminhava com a esposa às margens do rio, Marx se recolhia a uma sala de trabalho, lia e escrevia com furiosa intensidade. Sempre gostou de elaborar suas ideias no papel, e uma página remanescente dos cadernos de Kreuznach revela tal processo em pleno andamento:

Nota. Sob Luís XVIII, a Constituição por graça do rei (carta outorgada pelo rei); sob Luís Felipe, o rei por graça da Constituição (reinado outorgado). Em geral podemos observar que a conversão do sujeito em predicado e do predicado em sujeito, a troca daquilo que determina pelo que é determinado, é sempre a mais imediata revolução…. O rei faz a lei (antiga monarquia), a lei faz o rei (nova monarquia).

A simples inversão sintática revela o equívoco da filosofia alemã. Hegel pressupunha que “a Idéia do Estado” era o sujeito, que tinha a sociedade como objeto, enquanto a história demonstrava o oposto. Vire o pensamento de Hegel de cabeça para baixo, e o problema se resolve: a religião não faz o homem, o homem faz a religião; a Constituição não cria o povo, o povo cria a Constituição. Embora tenha tomado a ideia de Ludwig Feuerbach – que havia escrito que “o pensamento origina-se do ser, não o ser do pensamento” –, Marx ampliou essa lógica, transpondo-a da filosofia abstrata para o mundo material.
Como escreveu nas Teses sobre Feuerbach, publicadas em 1845: “Até agora os filósofos apenas têm interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” Aqui, ainda embrionária, está a ideia básica do Capital. Por mais gloriosos que pareçam os triunfos econômicos, o capitalismo permanece um desastre, uma vez que transforma as pessoas em mercadorias intercambiáveis por outras mercadorias. Até que os homens possam se afirmar como sujeitos da história, e não como objetos, não há modo de escapar a essa tirania.
O triunvirato dos Anais Franco-Alemães – Karl Marx, o jornalista Arnold Ruge e o poeta Georg Herwegh – desembarcou em Paris no outono de 1843 e deu início a um “falanstério”, ou comuna, na rue Vanneau, inspirado pelas ideias utópicas do socialista francês Charles Fourier. A vivência em comunidade foi uma experiência tão breve quanto a própria revista: apenas um único número apareceu antes da dispersão dos editores. Marx aceitou então uma oferta para escrever no Vorwärts, um quinzenário comunista publicado por expatriados alemães no qual delineou pela primeira vez sua convicção de que a consciência de classe era um catalisador da revolução. “O proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como o proletariado inglês é o economista, e o proletariado francês, o político”, escreveu ele, antecipando uma avaliação de Engels, que qualificaria o marxismo como um híbrido dessas três linhagens.
Naquele momento Marx já era bem versado em filosofia alemã e política francesa; iniciava-se nos estudos de economia inglesa, percorria, à sua maneira, as obras de Adam Smith, David Ricardo e James Mill, e, à medida que avançava, rabiscava incessantemente suas anotações. Essas notas, de hábito conhecidas como “manuscritos de Paris”, são uma espécie de rascunho inicial do que viria a ser O Capital.
O primeiro manuscrito começa com uma assertiva direta: “Os salários são determinados pela luta aberta entre o capitalista e o trabalhador. O capitalista inevitavelmente vence. Ele pode viver mais sem o trabalhador que o trabalhador sem ele.” Se o capital nada mais é que o fruto acumulado da labuta do trabalhador, então o capital da nação cresce somente quando

se privam os trabalhadores de uma parcela cada vez maior de sua produção, quando de modo crescente seu próprio trabalho os defronta como a propriedade alheia, e os meios de subsistência e ação se concentram de modo progressivo nas mãos do capitalista.

Até nas mais favoráveis condições econômicas o destino do trabalhador é, inevitavelmente, “o excesso de trabalho e a morte precoce, a redução a uma máquina, a submissão ao capital”. Seu trabalho se torna um ser exterior, que “existe fora dele, independentemente, alienado dele, e começa a confrontá-lo como um poder autônomo; a vida que ele havia conferido a um objeto o enfrenta como algo hostil e dele alienado”.
Essa imagem tem origem em um dos livros favoritos de Marx, Frankenstein, a história de um monstro que se volta contra seu próprio criador. Embora alguns especialistas defendam que há uma “ruptura radical” entre o pensamento do jovem Marx e o do Marx maduro, as expressões inquietantes dos dois períodos são uma clara produção do mesmo homem que argumentou no Capital, mais de 20 anos depois, que os meios pelos quais o capitalismo aumenta sua produtividade

mutilam o trabalhador e o transformam num ser parcial, degradam-no e o tornam um apêndice da máquina; aniquilam, com o tormento do trabalho, seu conteúdo, alienam-lhe as potências espirituais do processo de trabalho, … transformam seu tempo de vida em tempo de trabalho, jogam sua mulher e seu filho sob a roda de Juggernaut do capital.

Em agosto de 1844, enquanto Jenny Marx visitava a mãe em Trier, Friedrich Engels, então um jovem de 23 anos, apareceu no apartamento em que Karl Marx vivia em Paris. Os dois já haviam se encontrado anteriormente, de passagem, na redação da Gazeta Renana, e algum tempo depois Marx ficara bastante impressionado com a “Crítica da economia política”, que Engels submetera aos Anais Franco-Alemães. Pode-se entender por quê: embora acreditasse que as forças sociais e econômicas fossem o motor da história, Marx não tinha qualquer conhecimento prático ou direto do capitalismo.
Engels estava em boa posição para esclarecê-lo, sendo filho e herdeiro de um fabricante alemão de algodão que possuía tecelagens em Manchester, coração da Revolução Industrial e berço da Liga Anti-Lei do Trigo, uma cidade apinhada de cartistas, owenistas e agitadores socialistas de todo tipo. Engels se mudara para Lancashire no outono de 1842, a princípio para inteirar-se dos negócios da família, mas com a verdadeira intenção de observar as consequências humanas do capitalismo vitoriano. De dia, era um jovem e diligente administrador do comércio de algodão; depois do expediente, porém, mudava de lado, explorava as ruas e os cortiços proletários da cidade a fim de recolher material para sua precoce obra-prima, A situação da classe operária na Inglaterra, de 1845.
Embora Marx e Engels tenham passado dez dias juntos em Paris, o único registro a respeito desse período épico se encontra em uma sentença solitária escrita por Engels mais de 40 anos depois: “Quando visitei Marx em Paris no verão de 1844, nossa total concordância em todos os campos teóricos tornou-se evidente, e nosso trabalho conjunto data daquele tempo.” Eles se complementaram com perfeição, Marx com sua riqueza de conhecimento, Engels com seu conhecimento da riqueza. Marx escrevia devagar e dolorosamente, com incontáveis rasuras e emendas, enquanto os manuscritos de Engels eram limpos e elegantes. Marx viveu no caos e na penúria ao longo de quase toda a vida; Engels, embora trabalhasse em tempo integral, mantinha uma formidável produção de livros, cartas e artigos jornalísticos – e ainda encontrava tempo para apreciar os prazeres da vida da alta burguesia, com cavalos nos estábulos e muito vinho na adega.
Mesmo assim, apesar de suas aparentes vantagens, Engels soube desde o princípio que jamais teria o papel hegemônico na parceria. Aceitou, portanto, sem reclamação ou ciúme, que seu dever era dar o apoio intelectual e financeiro que tornaria possível a obra de Marx. “Simplesmente não compreendo”, escreveu ele, “como alguém pode invejar o gênio; é algo tão especial que nós, que não o temos, sabemos desde o início ser inacessível; mas para invejar algo assim é preciso ser tremendamente tacanho.”
Eles não guardavam segredos um para o outro e tampouco tinham tabus: a correspondência entre os dois é uma pungente combinação de história e fofoca, economia secreta e piadas juvenis. Engels servia também como uma espécie de mãe substituta para Marx – arranjava-lhe trocados para as despesas do dia-a-dia, inquietava-se com sua saúde e continuamente o advertia para que não negligenciasse os estudos. Em uma carta de outubro de 1844, a mais antiga de que se tem notícia entre os dois, já incitava Marx a compilar sem demora suas anotações políticas e econômicas em um livro: “Assegure-se de que o material que reuniu seja em breve apresentado ao mundo. É um momento de agitação, Deus bem o sabe!” Três meses depois sua impaciência aumentara:

Procure terminar o livro de economia política mesmo que haja nele muita coisa que não o satisfaça, não importa; as mentes encontram-se amadurecidas e devemos malhar o ferro ainda quente…. Por isso, tente finalizá-lo antes de abril, faça como eu, imponha-se uma data na qual definitivamente o terá encerrado, e tenha certeza de que será publicado sem demora.

Vã esperança: mais de duas décadas se passariam antes que o primeiro volume do Capital finalmente fosse entregue às prensas.
Nesse aspecto, entretanto, o próprio Engels não estava completamente isento de culpa. Pouco depois do encontro com Marx em Paris, propôs-lhe a colaboração em um pequeno panfleto – no máximo 40 páginas – que criticasse os mais irascíveis Jovens Hegelianos. Tendo terminado a parte que lhe cabia – 20 páginas – em poucos dias, Engels não ficaria “nem um pouco surpreso” ao descobrir, vários meses depois, que o panfleto acumulava então 300 páginas. Marx era o tipo de escritor que não conseguia resistir à distração, preferia a imediata gratificação de panfletos e artigos à faina muda e inglória exigida por sua magnum opus, então provisoriamente intitulada Crítica de economia e política. Apesar de ter prometido entregar o manuscrito do livro ao editor alemão Karl Leske no final do verão de 1845, Marx o deixou de lado depois de escrever apenas o sumário, dando-lhe a seguinte explicação:

Parece-me muito importante preceder meu desenvolvimento positivo com uma obra polêmica contra a filosofia alemã e o socialismo alemão até o presente. Isso é necessário a fim de preparar o público para o ponto de vista adotado em minha economia, que é diametralmente oposto à erudição alemã de ontem e hoje…. Se for preciso, posso apresentar inúmeras cartas que recebi da Alemanha e da França como prova de que esse trabalho é aguardado pelo público com grande ansiedade.

Desculpa pouco plausível, uma vez que o livro em questão, A ideologia alemã, não encontraria editor até 1932. “Abandonamos, de muito bom grado, o manuscrito à crítica roedora dos camundongos, visto que nosso objetivo principal foi alcançado: esclarecer nossas próprias ideias”, escreveu Marx.
No entanto, ele ainda se sentia incapaz de dedicar atenção total à sua obra econômica, ou relutava em fazer isso. Haveria muitas outras interrupções polêmicas ao longo dos anos seguintes: Miséria da filosofia, uma invectiva de 100 páginas contra Pierre-Joseph Proudhon; Os grandes homens do exílio, uma sátira loquaz sobre os “idiotas mais notáveis” e os “velhacos democráticos” da diáspora socialista; A secreta história diplomática do século XVIII, peça de oratória anti-russa; A vida de Lorde Palmerston, em que procurava provar que o ministro do Exterior era um agente secreto do czar russo; e Herr Vogt, um agressivo ataque ao professor de ciência natural da Universidade de Berna que atraíra a fúria de Marx ao chamá-lo de charlatão e parasita. “Olho por olho, represálias fazem o mundo girar”, murmurava Marx alegremente consigo mesmo, enquanto perdia boa parte do ano na batalha com Vogt.
Contínuas preocupações domésticas obstruíram ainda mais o andamento do livro. Em janeiro de 1845, o enviado prussiano em Paris protestou junto ao rei Luís Felipe contra um artigo do Vorwärts no qual Marx ridicularizava o rei Frederico Guilherme IV. O ministro do Interior francês prontamente fechou a revista e ordenou que o autor fosse expulso da França. O único rei na Europa continental disposto a acolhê-lo era Leopoldo I, da Bélgica, e apenas depois de receber por escrito de Marx a promessa de que não publicaria “qualquer obra sobre política contemporânea”.
Por acreditar que isso não o impediria de participar da política, Marx intimou Engels a encontrá-lo em Bruxelas, onde fundariam um Comitê de Correspondência Comunista com o intuito de manter “um contínuo intercâmbio de cartas” com grupos socialistas da Europa Ocidental. Em 1847, o comitê tinha se convertido em uma ramificação da recém-formada Liga Comunista de Londres, que convocou Marx para produzir uma declaração de princípios. Marx produziu então o Manifesto do Partido Comunista, provavelmente o panfleto mais lido e influente da história.
Quando escreveu o Manifesto, nas primeiras semanas de 1848, Marx acreditava que o capitalismo burguês já havia cumprido suas obrigações e em breve seria soterrado por suas próprias contradições. Ao agrupar em tecelagens e fábricas os trabalhadores até então isolados, a indústria moderna criara as verdadeiras condições para que o proletariado constituísse uma força irresistível. “O que a burguesia produz são, sobretudo, seus próprios coveiros.” Entretanto, por acreditar que entoava uma oração fúnebre, Marx se permitia ser generoso diante da prostração do adversário. Um crítico descreveu o manifesto como “uma celebração lírica das conquistas da burguesia”, e os primeiros leitores frequentemente se espantavam com o louvor que dedicava ao inimigo:
Historicamente, a burguesia desempenhou um papel revolucionário. Onde quer que tenha assumido o poder, pôs fim a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Destruiu impiedosamente os vários laços feudais que ligavam os homens a seus “superiores naturais”, deixando como única forma de relação entre os homens o laço do frio interesse, o insensível “pagamento à vista”. Afogou os êxtases sagrados do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco e do sentimentalismo pequeno-burguês nas gélidas águas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca…. A burguesia não pode existir sem revolucionar de modo permanente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção – e, com elas, todas as relações sociais.
Com maior grandeza e complexidade, Marx retomaria esses temas no Capital. Por ora, contudo, não havia tempo para elaborações. Tanto a frase de abertura do Manifesto (“Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”) quanto sua igualmente famosa conclusão (“Que tremam as classes dominantes diante da revolução comunista … PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!”) confirmam que, não obstante sua incomparável inteligência, essa era uma peça de propaganda escrita às pressas, no momento em que a insurreição parecia iminente.
[…]

Francis Wheen em, O Capital de Marx – Uma Biografia

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