sábado, 20 de dezembro de 2025

Marlene e Marquinhos




Os lençóis brancos realçam os contornos do corpo, as pernas magras, os joelhos alinhados pelas mãos de outros. O peito frágil, escamado, costelas aparentes, não respira por si só, os pulmões não conseguem sustentar o natural sobe e desce, e o ar entra pela boca, máscara de oxigênio. Os olhos do negro ameaçador que na minha infância tanto temi e admirei foram encobertos por uma névoa branca, constante, e rezo para que as pálpebras estejam abaixadas toda vez que entro no quarto.
Sempre estão.
Seus braços são como galhos mortos, finos, que não conseguem gerar folhas ou frutos, apenas restam colados junto ao corpo, árvore de raiz seca. A pele, casca arroxeada pelas picadas de sangue extirpado e jamais devolvido, as mãos caídas, mero canal de entrada dos remédios que o mantém vivo.
Ele tem 88 anos, meu pai, Natan.
Estou neste hospital há quase dois meses, ele sempre deitado, coma induzido, e eu esperando que algo aconteça. E apenas uma coisa pode acontecer. Minha vida é uma eterna espera, e aguardo sentada numa cadeira acolchoada, olhando pela janela – uma vista de prédios e casas velhas, a cidade em ondulações de calor que não passam pelo vidro, eternos 22 graus comandados por um controle remoto invisível. De turno em turno uma enfermeira vem e troca o soro dele, de dois em dois dias lhe dão banho e mudam o jogo de cama. Antes eram mais vezes, mas viram que não há necessidade, ele não se mexe, as sondas eliminam as únicas sujeiras possíveis, tem menos vida do que se tivesse enterrado, comida de vermes.
Saio apenas para almoçar e jantar, sempre ao meio-dia e às seis da tarde, retorno em 25 minutos, três a mais nas sextas-feiras, quando atravesso a rua para tirar dinheiro no caixa eletrônico. No início era um mantra, “Vai para casa, dona Marlene”, entoado por médicos e enfermeiras, mas com o tempo desistiram de falar comigo e passaram a falar sobre mim, cochichos e olhares atravessados enquanto davam banho de gato em meu pai. Nas últimas semanas ninguém mais fala comigo e, com isso, nada digo também. O silêncio sempre me pareceu a condição natural, e se agora posso mantê-lo por horas, dias, isso não chega a me fazer triste. Ou será que minto?
Não faço planos. Apenas espero calada que ele morra para que possamos sair deste hospital. Ele com destino certo; eu, não.

Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

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