Os lençóis brancos realçam os
contornos do corpo, as pernas magras, os joelhos alinhados pelas mãos
de outros. O peito frágil, escamado, costelas aparentes, não
respira por si só, os pulmões não conseguem sustentar o natural
sobe e desce, e o ar entra pela boca, máscara de oxigênio. Os olhos
do negro ameaçador que na minha infância tanto temi e admirei foram
encobertos por uma névoa branca, constante, e rezo para que as
pálpebras estejam abaixadas toda vez que entro no quarto.
Sempre estão.
Seus braços são como galhos mortos,
finos, que não conseguem gerar folhas ou frutos, apenas restam
colados junto ao corpo, árvore de raiz seca. A pele, casca arroxeada
pelas picadas de sangue extirpado e jamais devolvido, as mãos
caídas, mero canal de entrada dos remédios que o mantém vivo.
Ele tem 88 anos, meu pai, Natan.
Estou neste hospital há quase dois
meses, ele sempre deitado, coma induzido, e eu esperando que algo
aconteça. E apenas uma coisa pode acontecer. Minha vida é uma
eterna espera, e aguardo sentada numa cadeira acolchoada, olhando
pela janela – uma vista de prédios e casas velhas, a cidade em
ondulações de calor que não passam pelo vidro, eternos 22 graus
comandados por um controle remoto invisível. De turno em turno uma
enfermeira vem e troca o soro dele, de dois em dois dias lhe dão
banho e mudam o jogo de cama. Antes eram mais vezes, mas viram que
não há necessidade, ele não se mexe, as sondas eliminam as únicas
sujeiras possíveis, tem menos vida do que se tivesse enterrado,
comida de vermes.
Saio apenas para almoçar e jantar,
sempre ao meio-dia e às seis da tarde, retorno em 25 minutos, três
a mais nas sextas-feiras, quando atravesso a rua para tirar dinheiro
no caixa eletrônico. No início era um mantra, “Vai para casa,
dona Marlene”, entoado por médicos e enfermeiras, mas com o tempo
desistiram de falar comigo e passaram a falar sobre mim, cochichos e
olhares atravessados enquanto davam banho de gato em meu pai. Nas
últimas semanas ninguém mais fala comigo e, com isso, nada digo
também. O silêncio sempre me pareceu a condição natural, e se
agora posso mantê-lo por horas, dias, isso não chega a me fazer
triste. Ou será que minto?
Não faço planos. Apenas espero
calada que ele morra para que possamos sair deste hospital. Ele com
destino certo; eu, não.
Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

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