[…]
E, em relance em mais, eu já estava
carecendo de declarar aos companheiros todos os erros que vínhamos
pagando, por motivo do ultimamente, conforme agora eu ladino deduzia.
Disse, com modos, ao próprio Zé Bebelo, que isto de mim escutou:
― ...Sem tenção de descrédito ou
ofensa, Chefe, mas duvido de que bem fizemos em restar todos aqui,
comprando cura de doenças. Mais ajuizado certo não seria se ter
remetido meia-dúzia de cabras, dos sãos, que tivessem ido buscar a
munição nesse lugar, a Virgem-Mãe, e trazer? Munição já estava
aqui, e a gente estava mais garantidos...
Zé Bebelo em mal amargo ― ele
espinoteou com a cabeça, arejou os queixos. Desde, depressinha, me
explicou a maior razão, com palavras baixas. Porque ele de tudo já
soubesse! foi então que me disse que o extravio nosso tinha sido
mais completo; porque a gente tinha vindo em má rota, em vez da
Virgem-Mãe para a Virgem-da-Laje. Eu escutei, tei. Em outras
ocasiões, uma notícia dessas era capaz de me perturbar. Mas, dessa
viagem, eu achava até divertido. Figuro explicando ao senhor! desde
por aí, tudo o que vinha a suceder era engraçado e novo, servia
para maiores movimentos. Com essas levezas eu seguia a vida.
Quando, então, trouxeram reunidos
todos os animais, estavam ajuntando a cavalhada. Regulava subida
manhã, orçado o sol, e eles redondeavam no aprazível ― tropilha
grande, pondo poeira, dado o alvoroço de muitos cascos. Fiz um
rebuliz? Dou confesso o que foi! era de mim que eles estavam
espantados. Aí porque a cavalaria me viu chegar, e se estrepoliu. O
que é que cavalo sabe? Uns deles rinchavam de medo; cavalo sempre
relincha exagerado. Ardido aquele nitrinte riso fininho, e, como não
podiam se escapulir para longe, que uns suavam, e já escumavam e
retremiam, que com as orêlhas apontavam. Assim ficaram, mas
murchando e obedecendo, quando, com uma raiva tão repentina, eu
pulei para o meio deles! ― Barzabú! Aquieta, cambada! ― que eu
gritei. Me avaliaram. Mesmo pus a mão no lombo dum, que emagreceu à
vista, encurtando e baixando a cabeça, arrufava a crina, conforme
terminou o bufo de bufôr.
Notei que os companheiros reparavam a
estranhez daquilo, dos cavalos e as minhas maneiras. Só que se riam,
formados no costume de jagunços, que é de frouxas essas
leviandades. ― Barzabú! ― ó gente!, feito fosse minha certeza,
o Das-Trevas. E eu parava, rente, no meio de todos, que de volta
aceitavam minha presença, esses cavalos.
― Tu sendo peão amansador domador?!
― que o Ragásio caçoou comigo. Mas eu me virei, e já se ouvia
outro tropel: era aquele seó Habão, que chegava. Vinha com três
homens, estroteantes ― gentinha trabalhosa. E o animal dele, o
gateado formoso, deu que veio se esbarrar ante mim. Foi o seó Habão
saltando em apeio, e ele se empinou: de dobrar os jarretes e o rabo
no chão; o cabresto, solto da mão do dono, chicoteou alto no ar. ―
Barzabú! ― xinguei. E o cavalão, lão, lão, pós pernas para
adiante e o corpo para trás, como onça fêmea no cio mor. Me
obedecia. Isto, juro ao senhor: é fato de verdade.
O seó Habão estava ali, me
desentendeu nos olhos. Ele ficou a vermelho. Mas eu acho que, homem
só vendido ao dinheiro e ao ganho, às vezes são os que percebem
primeiro o atiço real das coisas, com a ligeireza mais sutil. Ele
não gaguejou. Melhor me disse:
― Se este praz ao senhor... Se ele
praz ao senhor... Lhe dou, amigavelmente, com bom agrado: assim como
ele está, moço, ele é seu...
Não acreditei? Reafirmo ao senhor:
meu coração não pulsou dúvidas. Agradeci, como meu brio; peguei a
ponta do cabresto. Agora, daquela hora, era meu o cavalo grande, com
suas manchas e riscas ― ah, como ele pisava peso no chão, e como
ocupava tão grande lugar! Até passeei um carinho nas faces dele, e
pela tábua-do-pescoço a fora. Meu o bicho era, por posse, e assim
revestido, conforme estava ― que era com um socadinho bom, com
caçambas de pau. Mas sendo que, dividido o instante, eu já ali
pensei! por que seria que o seô Habão se engraçava de me
presentear de repente com uma prenda dum valor desse, eu que não era
amigo nem parente dele, que não me devia obrigação, quase que nem
me conhecia? Aos que projetos ele engenhava em sua mente, que
possança minha ele adivinhava? A pois, fosse. Aquele homem me temia?
Da admiração de meu povo todo, dei fé, borborinho com que me
rodeavam. Certo, deviam de estar com invejas. Fosse! E a mãe!... A
primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é
topar firme as invejas dos outros restantes... Me rêjo, me calêjo!
Só por causa daquele cavalo, até, eu fui ficando mais e mais,
enfrentava. Não me riram.
― E deveras... Animal de riqueza!
graúdo, farto e manteúdo...
― Sorte é isto. Merecer e ter...
― Ainda bem que foi bem empregado...
Só dissessem. Disfarcei meu regozijo.
Disse logo foi a tenção de maiores ideias em desejos ― segundo a
como apeirado aquele eu já queria! que arreado à gaúcha, com
peitoral com pratas em meia-lua, e as peças dos arreios chapeadas de
belo metal.
― Ara, que assim ouvi, Tatarana! o
nome que ele vai se chamar é mesmo Barzabúl ― algum caçoou de me
perguntar.
― A não, meu compadre tôrto!
Sossega a velha... Nome que dou a ele, d ora em diante, conferido, é
este ― quem que aprender, aprende! ― que é! o cavalo Siruiz... ―
assim foi que eu respondi, sem tempo nenhum para pensamento. Montei.
Ah, as coisas influentes da vida
chegam assim sorrateiras, ladroalmente. Pois Zé Bebelo estava
aparecendo ali, e eu atinei, ligeiro, com o que não tinha refletido.
Ao que! oferecer e receber um presente daquele, naquelas condições,
era a mesma coisa que forte ofender Zé Bebelo. Um dom de tanto
quilate tinha de ser para o Chefe. Reconheci, aí. Mas não tirei
para trás. Não desapeei. E de ver que, conforme em mim, nesses
enquantos, eu já devia de estar fitando Zé Bebelo com um certo
desprezo. Ia haver o que ia haver, e eu não me importei. Um qualquer
chefe de jagunço havia de ter ímpeto de resolver aquilo fatal. Aí,
esperei. Teria sido uma tenção dessas, de arder a desordem no meio
nosso, a razão do seó Habão? Pensei o dito, num interim. E pensei
pontudo em minhas armas.
Mas Zé Bebelo, acabando de saber o
acontecido, mirou em mim, somente, poupado risonho:
― Tal te fica bem, Professor,
amontado nesse estampo, queremos havemos de te ver garboso,
guerreando as boas batalhas... Em hora!... ― foi o que ele disse,
se me seja que gostou pouco. Choveu para o meu arrozal! Ah, mesmo só
inteligência, só, era que que era aquele homem. Desapeei.
Como por um rasgo, para solércias,
dei o cabresto ao Fafafa. Disse: ― Tu desarreia, amilha e escova,
tu trata dele... ―; e isso fiz, porque o Fafafa, que tanto gostava
simples de cavalos, era o prestante para cuidar dum animal, em mesmo
que dele não sendo. Mas eu tinha dado uma ordem. Assim me refiz. E o
seó Habão tinha trazido também boa quantidade de remédio para se
tomar pela maleita, das pastilhas mais amargosas. Todo o mundo
recebia.
Saí, uns passos. Eu estava dando as
costas a Zé Bebelo. Ele podia, num relance, me agredir de morte, me
atirar por detrás... ― atentei. Esbarrei em meu caminhar, fiquei
assim parado, assim mesmo. O medo nenhum: eu estava forro, glorial,
assegurado; quem ia conseguir audácias para atirar em mim? As deles
haviam de amolecer e retombar, com emortecidos braços; eu podia dar
as costas para todos. O que o Drão ― o demonião ― me disse,
disse: seria só? Olhei para cima: pegaram nas nuvens do céu com
mãos de azul. Aquela firme possança; assim permaneci, outro tempo,
acendido. Eu leve, leve, feito de poder correr o mundo ao redor. Ao
senhor eu conto, direto, isto como foi, num dia tão natural. Será
que, de cousas tão forçosas, eu ia poder me esquecer? Aquele dia
era uma véspera.
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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