Eu, agosto de 1955: Graças à
gentileza do convite de Maria Oliva Fraga, a bela guardiã do Chateau
d’Eu, aqui estou eu no vasto castelo de tijolos e colunata de pedra – obra sem grande interesse arquitetônico iniciada por Henrique de
Guise e restaurada pelo Conde d'Eu três séculos e pouco mais tarde,
depois do incêndio do começo deste século. O parque, desenhado por
Le Nôtre, é realmente belo. Vim para terminar a primeira adaptação
para o cinema de minha peça Orfeu da Conceição, de que o produtor
Sacha Gordine quer extrair um filme. Depositamos ambos grandes
esperanças no projeto.
Para ajudar-me no trabalho estão
comigo minha amiga e secretária Josée Fauquier e seu marido Daniel.
E, naturalmente, minha filhinha Georgiana: a carinha mais marota que
já se viu em qualquer latitude. O diabo é que ela, com tanta graça,
me está perturbando consideravelmente na tarefa. Pois não me posso
impedir de, a todo instante, perder o fio do ditado para vê-la
atravessar o parque correndo, ou surgir pela mão de sua babá
espanhola – pequeno bichinho inconfundível contra o gótico normando
da igreja de Saint Laurent, em cuja cripta dormem sobre os próprios
despojos, lado a lado, em seu misterioso sono de mármore, as
estátuas funerárias dos príncipes e princesas da família
d'Artois.
É coisa apaixonante criar um filme.
Nesta adaptação construo o filme como eu o faria. Ao contrário de
minha peça, em que a "descida aos infernos" de Orfeu
situa-se num gafieira, no 2o ato, estou transpondo o carnaval carioca
para o final do filme, como o ambiente dentro do qual a Morte
perseguirá Eurídice. Josée me ajuda com o maior entusiasmo, mas é
necessário a todo instante interromper o trabalho, pois Georgiana
não dá uma folga.
***
Há homens que são da raça dos
minotauros. Homens como Picasso, como Buñuel, como Hemingway. Sacha
Alexandre Gordine é assim. Ao me pôr ao trabalho está, eu sei,
numa das maiores bancarrotas da história do cinema. O grande e
humaníssimo filme que deveria fazer, L’Affaire Seznec, teve a
filmagem proibida quando todos os contratos já haviam sido firmados.
Mas eu confio em Gordine. Há, para quem sabe ler no rosto humano,
uma profunda bondade nesse homem. Bondade e uma força interior que
se pode quase palpar.
***
Hoje o guia turístico do castelo veio
queixar-se de que, ao mostrar aos visitantes uma das belas carruagens
em exibição no andar térreo, qual não é sua surpresa, e a dos
turistas, quando a porta da caleça se abre e surge, de entre sedas e
alfaias, a carinha matreira de Georgiana. Ele me contou o caso com a
compunção de um guia de castelo que presenciou um sacrilégio, e eu
o ouvi com o ar severo que deve ter no caso o pai da sacrílega. Mas
ao voltar-lhe as costas desatei a rir; e vi que ele também sacudia
os ombros de tanto riso, enquanto descia as escadas.
Estou em pleno carnaval no filme.
Procuro dar o máximo de colorido ao roteiro para que, no caso de uma
segunda adaptação, o novo roteirista sinta a animação popular em
toda a sua vibração. Na rápida viagem que fizemos ontem a Rouen,
surgiu-me a ideia de fazer as mulheres – as Fúrias do mito – matarem Orfeu num parque ou jardim noturno, onde o músico fosse ter
levando nos braços sua amada morta. A estudar.
***
Acabei de ver uma coisa deliciosa.
Enquanto vinha vindo pelo corredor, vi Georgiana que subira no
espaldar de uma poltrona e mirava com a maior atenção, bem de
perto, um retrato de dom Pedro II. Depois ela afastou um pouco a
cabecinha e começou a alisar as venerandas barbas do imperador. Não
contente, chegou a carinha ao retrato e deu-lhe um prolongado beijo.
Juro que vi sorrir o bom monarca.
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
Nenhum comentário:
Postar um comentário