72.
Disse Amiel que uma paisagem é um
estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador
débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de
alma. Objetivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um
estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se
lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos
sonhar de ver.
De resto, de que servem estas
especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim, cresce
erva, chove na erva que cresce, e o sol doira a extensão da erva que
cresceu ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o
vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não
existisse, o ouviu. Mais certa era dizer que um estado da alma é uma
paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma
teoria, mas tão-somente a verdade de uma metáfora.
Estas palavras casuais foram-me
ditadas pela grande extensão da cidade, vista à luz universal do
sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez que assim
contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de
altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto,
tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o
sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude
nobre do entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os
montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio
pequeno — vapor de carga preto — dos lados do Poço do Bispo para
a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora
em que cesse este meu aspeto de mim, a noção clara e solar da
realidade externa, o instinto da minha importância, o conforto de
ser pequeno e de poder pensar em ser feliz.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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