Podemos dormir descansados, o
aquecimento global não existe, é um invento malicioso dos
ecologistas na linha estratégica da sua “ideologia em deriva
totalitária”, consoante a definiu o implacável observador da
política planetária e dos fenómenos do universo que é José María
Aznar. Não saberíamos como viver sem este homem. Não importa que
qualquer dia comecem a nascer flores no Árctico, não importa que os
glaciares da Patagónia se reduzam de cada vez que alguém suspira
fazendo aumentar a temperatura ambiente uma milionésima de grau, não
importa que a Gronelândia tenha perdido uma parte importante do seu
território, não importa a seca, não importam as inundações que
tudo arrasam e tantas vidas levam consigo, não importa a igualização
cada vez mais evidente das estações do ano, nada disto importa se o
emérito sábio José María vem negar a existência do aquecimento
global, baseando-se nas peregrinas páginas de um livro do presidente
checo Vaclav Klaus que o próprio Aznar, em uma bonita atitude de
solidariedade científica e institucional, apresentará em breve. Já
o estamos a ouvir. No entanto, uma dúvida muito séria nos atormenta
e que é altura de expender à consideração do leitor. Onde estará
a origem, o manancial, a fonte desta sistemática atitude
negacionista? Terá resultado de um ovo dialéctico deposto por Aznar
no útero do Partido Popular quando foi seu amo e senhor? Quando
Rajoy, com aquela composta seriedade que o caracteriza, nos informou
de que um seu primo catedrático, parece que de física, lhe havia
dito que isso do aquecimento climático era uma treta, tão ousada
afirmação foi apenas o fruto de uma imaginação celta
sobreaquecida que não havia sabido compreender o que lhe estava a
ser explicado, ou, para tornar ao ovo dialéctico, é isso uma
doutrina, uma regra, um princípio exarado em letra pequena na
cartilha do Partido Popular, caso em que, se Rajoy teria sido somente
o repetidor infeliz da palavra do primo catedrático, já o oráculo
em que o seu ex-chefe se transformou não quis perder a oportunidade
de marcar uma vez mais a pauta ao gentio ignaro?
Não me resta muito mais espaço, mas
talvez ainda caiba nele um breve apelo ao senso comum. Sendo certo
que o planeta em que vivemos já passou por seis ou sete eras
glaciais, não estaremos nós no limiar de outra dessas eras? Não
será que a coincidência entre tal possibilidade e as contínuas
acções operadas pelo ser humano contra o meio ambiente se parece
muito àqueles casos, tão comuns, em que uma doença esconde outra
doença? Pensem nisto, por favor. Na próxima era glacial, ou nesta
que já está principiando, o gelo cobrirá Paris. Tranquilizemo-nos,
não será para amanhã. Mas temos, pelo menos, um dever para hoje:
não ajudemos a era glacial que aí vem. E, recordem, Aznar é um
mero episódio. Não se assustem.
José Saramago, em O caderno
Nenhum comentário:
Postar um comentário