Um dia, há talvez sete ou oito anos,
procurou-nos, a Pilar e a mim, um leonês chamado Emilio Silva,
pedindo apoio para a empresa a que se propunha meter ombros, a de
encontrar o que ainda restasse do seu avô, assassinado pelos
franquistas no princípio da guerra civil. Pedia-nos apoio moral,
nada mais. Sua avó havia manifestado o desejo de que os ossos do avô
fossem recuperados e recebessem digna sepultura. Mais que como um
desejo de uma anciã inconformada, Emilio Silva tomou essas palavras
como uma ordem que seria seu dever cumprir, acontecesse o que
acontecesse. Este foi o primeiro passo de um movimento colectivo que
rapidamente se espalhou por toda a Espanha: recuperar das fossas e
barrancos, onde haviam sido enterradas, as dezenas de milhares das
vítimas do ódio fascista, identificá-las e entregá-las às
famílias. Uma tarefa imensa que não encontrou só apoios, basta
recordar os contínuos esforços da direita política e sociológica
espanhola para travar o que já era uma realidade exaltante e
comovedora, erguer da terra escavada e removida os restos daqueles
que haviam pago com a vida a fidelidade às suas ideias e à
legalidade republicana. Permita-se-me que deixe aqui, como simbólica
vénia a quantos se têm dedicado a este trabalho, o nome de Ángel
del Río, um cunhado meu que a ele tem dado o melhor do seu tempo,
incluindo dois livros de investigação sobre os desaparecidos e os
represaliados.
Era inevitável que o resgate dos
restos de Federico García Lorca, enterrado como milhares de outros
no barranco de Viznar, na província de Granada, se tivesse
convertido rapidamente em autêntico imperativo nacional. Um dos
maiores poetas de Espanha, o mais universalmente conhecido, está
ali, naquele páramo, aliás em um lugar acerca do qual existe
praticamente a certeza de ser a fossa onde jaz o autor do Romancero
gitano, junto com três outros fuzilados, um professor primário
chamado Dióscoro Galindo e dois bandarilheiros anarquistas, Joaquín
Arcollas Cabezas e Francisco Galadí Melgar. Estranhamente, porém, a
família de García Lorca sempre se opôs a que se procedesse à
exumação. Os argumentos alegados relacionavam-se, todos eles, em
maior ou menor grau, com questões que podemos classificar de decoro
social, como a curiosidade malsã dos meios de comunicação social,
o espectáculo em que se iria tornar o levantamento das ossadas,
razões sem dúvida respeitáveis, mas que, permito-me dizê-lo,
perderam hoje peso perante a simplicidade com que a neta de Dióscoro
Galindo respondeu quando, em entrevista numa estação de rádio, lhe
perguntaram aonde levaria os restos do seu avô, se viessem a ser
encontrados: “Ao cemitério de Pulianas”. Há que esclarecer que
Pulianas, na província de Granada, é a aldeia onde Dióscoro
Galindo trabalhava e a sua família continua a morar. Só as páginas
dos livros se viram, as da vida, não.
José Saramago, em O caderno
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