terça-feira, 4 de novembro de 2025

2ª Faixa: Dolores


Bem que eu não queria ir naquele baile de gala no Clube de Regatas Vasco da Gama. Bacalhau de smoking fica mais deslocado que pinguim de chuteira. Mas o Dininho insistiu e eu acabei indo. Mal-humorado, ancorei o cotovelo no balcão do bar e comecei a encher a cara de cerveja. Já estava chamando urubu de meu louro quando a Aparição me cegou. Instantes depois, refeito do choque, recomecei a beber – só que, humildemente, pra tomar coragem.
Eu me contentaria em ser rato na abóbora daquela Cinderela. O medo fazia meus sovacos destilarem essências dignas de um desastre ecológico em Cubatão. Minha cabeça rodando, girava mais que os casais, fazia perguntas irrespondíveis: e se ela cuspir na minha cara?, será que ela vai reparar que minha faixa é uma adaptação do xale da tia Nicinha?, e se ela disser que essa merda de gravata parece mais mariposa que borboleta?, e se eu pisar no pezinho dela?, e se me der vontade de soltar um pum?, e se além de feder, fizer um barulhão?, e se eu vomitar o ensopadinho, meu Deus?!?
Ela era linda. Estava com uma gargantilha de pérolas de três voltas – minha forca – combinando com o sorriso. E luvas. Luvas. E a ponta de um torturante bandeide no calcanhar. Se ela entrasse em meu quarto, numa noite de lua cheia, só de gargantilha e luvas, mais os bandeides afrodisíacos, eu confesso que seria capaz de cometer uma loucura: dilacerar meu pijama verde de listrinhas, uivando como um lobo; estraçalhar suas luvas brancas com meus cariados caninos; romper a gargantilha com unhas roídas ávidas, deitá-la sobre as pérolas derramadas e, no clímax do surto psicótico, broxar. Tsk, isso acontece!
A orquestra foi fundo em La Puerta. E meu amor, como que hipnotizado, foi atrás da Cinderela. Quando a timidez ameaçava me paralisar, eu pensava no Garrincha driblando os adversários e ia em frente. Cheguei na mesa dela como se tivesse cruzado o Amazonas por debaixo d’água: molhado e sem fôlego.
O suor escorria pelas pernas de tal modo que temi ter feito xixi nas calças. O coroa com pinta de pai devia ser médico porque me fitou longamente, enquanto mordiscava um palito de fósforo. Uma eternidade depois, colocou o que restava do pauzinho no cinzeiro e perguntou:
Quer um Valium?
Sou do Estácio, qual é?
Não perdi a pose. Esse babaca não me conhece, não sabe com quem tá falando, pomba. Respondi à altura:
Se o senhor tiver Maracujina, sem querer abusar, eu aceito.
Justo nessa hora, a letra do bolero falava em padecer. Respirei fundo, tive uma rápida crise de choro, e dei a volta por cima:
Terminei o científico no Externato São José.
Até hoje não entendo a razão daquelas gargalhadas.
Armei um ar entediado, tipo James Dean em Nilópolis, acendi a lapela esquerda do paletó com meu isqueiro Zippo e disse:
Adoro bolero.
Engasguei com a fumaça e ela não ouviu nada. Ela ficava mais bonita ainda gritando: “Hein? Hein?". Tropecei no cadarço desamarrado do meu insólito sapato social de lona (que eu também usava pra futebol e basquete), e caí nos braços do pai dela, que era um cara até bem-humorado:
É comigo que você quer dançar?
Ela colocou água na fervura:
Euclides, vai com calma, meu bem.
Euclides? Meu bem? Hiii.
Mas o cara era realmente compreensivo.
Dá uma dançada com esse palhaço, Dolores, antes que eu arrebente ele todinho.
Dolores! Fiz careta pra ele. Não levo desaforo pra casa. Ela me arrastou pro salão como quem puxa um poodle.
Dolores! Enlacei a cinturinha dela e dei uma rodopiada pra esquerda. Atingimos em cheio um garçon, e vários cuba-libres afluíram da bandeja para o vértice do decote de Dolores. Ela revelou verve e distinção:
Bom, gelado tá, mas eu costumo tomar um de cada vez.
Procurei levar um papo descontraído, bacana, pra que a gafe anterior não provocasse efeitos colaterais.
Minha vó Noêmia sabe fazer pavê de chocolate.
E ela, ardilosa e criativa:
Pa vê ou pa comê?
Meu gogó fez crunch, de paixão contida.
Continuei a conversa com a maior naturalidade.
Você costuma ter cólica menstrual?
Olha, eu...
Mamãe prefere Regulador Gesteira.
É mesmo?
Você tem cabelos sedosos e ondulados. Deve ser graças ao legítimo Óleo de Ovo!
Pra ser sincera...
Vacinosan estimula a vida da epiderme. O melhor medicamento pra cútis.
Quem sabe...
Para uma dama, extrato, loção e pó-de-arroz, de Myrurgia.
Ela me censurou ternamente:
Tira a outra mão do bolso que não fica bem...
Disfarcei, cantarolando no ouvidinho dela o Hino do Expedicionário. Tentei cativá-la com uma última cartada.
Tu lembra do Coronel?
Coronel?
Hum, hum. Laerte, Orlando e Coronel. Do time do Vasco, campeão de 56.
Ela riu, brincou com meu topete emplastrado de gumex, beijou meu queixo de levinho e me chamou de maluco.
Voltei a mim na enfermaria do clube, mais do que nunca a Cruz de Malta cravada em meu peito. A turma é boa, é mesmo da fuzarca. Vasco, Vasco, Vas-cô!
Dolores, mesmo não sendo Sierra nem nascida em Salamanca, deixaste abandonada a ilusão que havia em meu coração por ti.

Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo

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