Bem que eu não queria ir naquele
baile de gala no Clube de Regatas Vasco da Gama. Bacalhau de smoking
fica mais deslocado que pinguim de chuteira. Mas o Dininho insistiu e
eu acabei indo. Mal-humorado, ancorei o cotovelo no balcão do bar e
comecei a encher a cara de cerveja. Já estava chamando urubu de meu
louro quando a Aparição me cegou. Instantes depois, refeito do
choque, recomecei a beber – só que, humildemente, pra tomar
coragem.
Eu me contentaria em ser rato na
abóbora daquela Cinderela. O medo fazia meus sovacos destilarem
essências dignas de um desastre ecológico em Cubatão. Minha cabeça
rodando, girava mais que os casais, fazia perguntas irrespondíveis:
e se ela cuspir na minha cara?, será que ela vai reparar que minha
faixa é uma adaptação do xale da tia Nicinha?, e se ela disser que
essa merda de gravata parece mais mariposa que borboleta?, e se eu
pisar no pezinho dela?, e se me der vontade de soltar um pum?, e se
além de feder, fizer um barulhão?, e se eu vomitar o ensopadinho,
meu Deus?!?
Ela era linda. Estava com uma
gargantilha de pérolas de três voltas – minha forca –
combinando com o sorriso. E luvas. Luvas. E a ponta de um torturante
bandeide no calcanhar. Se ela entrasse em meu quarto, numa noite de
lua cheia, só de gargantilha e luvas, mais os bandeides
afrodisíacos, eu confesso que seria capaz de cometer uma loucura:
dilacerar meu pijama verde de listrinhas, uivando como um lobo;
estraçalhar suas luvas brancas com meus cariados caninos; romper a
gargantilha com unhas roídas ávidas, deitá-la sobre as pérolas
derramadas e, no clímax do surto psicótico, broxar. Tsk, isso
acontece!
A orquestra foi fundo em La Puerta. E
meu amor, como que hipnotizado, foi atrás da Cinderela. Quando a
timidez ameaçava me paralisar, eu pensava no Garrincha driblando os
adversários e ia em frente. Cheguei na mesa dela como se tivesse
cruzado o Amazonas por debaixo d’água: molhado e sem fôlego.
O suor escorria pelas pernas de tal
modo que temi ter feito xixi nas calças. O coroa com pinta de pai
devia ser médico porque me fitou longamente, enquanto mordiscava um
palito de fósforo. Uma eternidade depois, colocou o que restava do
pauzinho no cinzeiro e perguntou:
– Quer um Valium?
Sou do Estácio, qual é?
Não perdi a pose. Esse babaca não me
conhece, não sabe com quem tá falando, pomba. Respondi à altura:
– Se o senhor tiver Maracujina, sem
querer abusar, eu aceito.
Justo nessa hora, a letra do bolero
falava em padecer. Respirei fundo, tive uma rápida crise de choro, e
dei a volta por cima:
– Terminei o científico no
Externato São José.
Até hoje não entendo a razão
daquelas gargalhadas.
Armei um ar entediado, tipo James Dean
em Nilópolis, acendi a lapela esquerda do paletó com meu isqueiro
Zippo e disse:
– Adoro bolero.
Engasguei com a fumaça e ela não
ouviu nada. Ela ficava mais bonita ainda gritando: “Hein? Hein?".
Tropecei no cadarço desamarrado do meu insólito sapato social de
lona (que eu também usava pra futebol e basquete), e caí nos braços
do pai dela, que era um cara até bem-humorado:
– É comigo que você quer dançar?
Ela colocou água na fervura:
– Euclides, vai com calma, meu bem.
Euclides? Meu bem? Hiii.
Mas o cara era realmente compreensivo.
– Dá uma dançada com esse palhaço,
Dolores, antes que eu arrebente ele todinho.
Dolores! Fiz careta pra ele. Não levo
desaforo pra casa. Ela me arrastou pro salão como quem puxa um
poodle.
Dolores! Enlacei a cinturinha dela e
dei uma rodopiada pra esquerda. Atingimos em cheio um garçon, e
vários cuba-libres afluíram da bandeja para o vértice do decote de
Dolores. Ela revelou verve e distinção:
– Bom, gelado tá, mas eu costumo
tomar um de cada vez.
Procurei levar um papo descontraído,
bacana, pra que a gafe anterior não provocasse efeitos colaterais.
– Minha vó Noêmia sabe fazer pavê
de chocolate.
E ela, ardilosa e criativa:
– Pa vê ou pa comê?
Meu gogó fez crunch, de paixão
contida.
Continuei a conversa com a maior
naturalidade.
– Você costuma ter cólica
menstrual?
– Olha, eu...
– Mamãe prefere Regulador Gesteira.
– É mesmo?
– Você tem cabelos sedosos e
ondulados. Deve ser graças ao legítimo Óleo de Ovo!
– Pra ser sincera...
– Vacinosan estimula a vida da
epiderme. O melhor medicamento pra cútis.
– Quem sabe...
– Para uma dama, extrato, loção e
pó-de-arroz, de Myrurgia.
Ela me censurou ternamente:
– Tira a outra mão do bolso que não
fica bem...
Disfarcei, cantarolando no ouvidinho
dela o Hino do Expedicionário. Tentei cativá-la com uma última
cartada.
– Tu lembra do Coronel?
– Coronel?
– Hum, hum. Laerte, Orlando e
Coronel. Do time do Vasco, campeão de 56.
Ela riu, brincou com meu topete
emplastrado de gumex, beijou meu queixo de levinho e me chamou de
maluco.
Voltei a mim na enfermaria do clube,
mais do que nunca a Cruz de Malta cravada em meu peito. A turma é
boa, é mesmo da fuzarca. Vasco, Vasco, Vas-cô!
Dolores, mesmo não sendo Sierra nem
nascida em Salamanca, deixaste abandonada a ilusão que havia em meu
coração por ti.
Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo

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