II
Abandonei a empresa, mas um dia destes
ouvi novo pio de coruja — e iniciei a composição de repente,
valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz
qualquer vantagem, direta ou indireta.
Afinal foi bom privar-me da cooperação
de padre Silvestre, de João Nogueira e do Gondim. Há fatos que eu
não revelaria, cara a cara, a ninguém. Vou narrá-los porque a obra
será publicada com pseudônimo. E se souberem que o autor sou eu,
naturalmente me chamarão potoqueiro.
Continuemos. Tenciono contar a minha
história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades
úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser
que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na
compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De
resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não
importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá
na venda.
Aqui sentado à mesa da sala de
jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às vezes o
trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite
enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não
estou acostumado a pensar. Levanto-me, chego à janela que deita para
a horta. Casimiro Lopes pergunta se me falta alguma coisa.
— Não.
Casimiro Lopes acocora-se num canto.
Volto a sentar-me, releio estes períodos chinfrins.
Ora vejam. Se eu possuísse metade da
instrução de Madalena, encoivarava isto brincando. Reconheço
finalmente que aquela papelada tinha préstimo.
O que é certo é que, a respeito de
letras, sou versado em estatística, pecuária, agricultura,
escrituração mercantil, conhecimentos inúteis neste gênero.
Recorrendo a eles, arrisco-me a usar expressões técnicas,
desconhecidas do público, e a ser tido por pedante. Saindo daí, a
minha ignorância é completa. E não vou, está claro, aos cinquenta
anos, munir-me de noções que não obtive na mocidade.
Não obtive, porque elas não me
tentavam e porque me orientei num sentido diferente. O meu fito na
vida foi apossar-me das terras de S. Bernardo, construir esta casa,
plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o
descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a
avicultura, adquirir um rebanho bovino regular. Tudo isso é fácil
quando está terminado e embira-se em duas linhas, mas para o sujeito
que vai começar, olha os quatro cantos e não tem em que se pegue,
as dificuldades são terríveis. Há também a capela, que fiz por
insinuações de padre Silvestre.
Ocupado com esses empreendimentos, não
alcancei a ciência de João Nogueira nem as tolices do Gondim. As
pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em
linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde.
Não pretendo bancar escritor. É tarde para mudar de profissão. E o
pequeno que ali está chorando necessita quem o encaminhe e lhe
ensine as regras de bem viver.
— Então para que escreve?
— Sei lá!
O pior é que já estraguei diversas
folhas e ainda não principiei.
— Maria das Dores, outra xícara de
café.
Dois capítulos perdidos. Talvez não
fosse mau aproveitar os do Gondim, depois de expurgados.
Graciliano Ramos, em São Bernardo

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