Não há de haver profissão mais
louca do que a de escritor. É possível até que, quando me viam
chegando de manhãzinha para trabalhar no meu “escritório” de
Itaparica, os frequentadores da Praça da Quitanda pensassem em que
vida mansa eu tinha, de bermudas e chinelos sempre aproveitando
qualquer pretexto para, antes de subir, ficar por ali prosando sobre
a tarrafa de Luiz Cuiúba ou as galinhas de Zé de Honorina, como
quem não tinha pressa nem obrigação. Além disso, era tão comum
que, depois de passar uma meia hora lá em cima, eu descesse outra
vez para ficar zanzando pela praça ou pela beira do cais, que muitas
vezes me perguntavam se eu estava trabalhando mesmo.
Mal sabiam eles que, lá em cima,
olhando para uma montanha desorganizada de papéis e entulhos
variados, eu tinha acabado de concluir pela enésima vez que aquilo
tudo era uma maluquice, que não estava entendendo nada e que jamais
seria capaz de escrever uma outra linha, quanto mais concluir o livro
que, fazia quase um ano, prometia à editora que entregaria “para o
mês”. Que sentido tinham aquelas garatujas todas, lauda após
lauda de uma história que eu estava tirando não sabia de onde,
gente que não existia e cujos sentimentos e ações agora me
ocupavam como a um alucinado, personagens que de repente começavam a
mandar nos acontecimentos, por que eu não tinha uma atividade
decente como qualquer pai de família respeitável? Ainda mais que,
no dia anterior, em quase delírio, eu havia mais uma vez assustado a
pacientíssima santa esposa com descrições verborrágicas dos
maravilhosos feitos literários que brotavam em catadupas da minha
máquina inspirada — que confiança, que fé no taco, que certeza
de que estava no caminho certo!
Como é que isso acontecia, como é
que eu era gênio na quarta-feira e cretino na quinta? Cretino,
irremediavelmente cretino, metido até o pescoço num projeto
impossível e paranóico, isolado em meio a fantasias estranhas,
levantando-me exasperado para ir até a janela e ver a praça, onde
as pessoas, placidamente conversando, acreditavam estar cá em cima
um escritor com aquela cara de escritor que se vê nos livros,
escrevendo agilmente belas palavras e convivendo com as musas. E,
ainda por cima, não sou amador, sou profissional, não faço mais
nada, não sei fazer mais nada. É possível exercer atividade tão
absurda como ofício e meio de vida, isto é normal? Talvez fosse por
isso — certamente era por isso — que eu tinha procurado, como
procurara muitas vezes antes e continuaria a procurar, adiar o penoso
instante em que, nas vascas do cretinismo, teria de subir de novo ao
escritório e enfrentar a escrita. Não, não, era uma situação
insuportável, o jeito era descer outra vez, carregando todos aqueles
personagens na cabeça espremida como um caju, os miolos meio doidos
— e ir de novo conversar sobre as galinhas e a tarrafa, de novo
mostrar a eles como é amena e descontraída a vida de quem trabalha
de bermudas e chinelos. Ou então — por que não? — baixar a
cestinha amarrada numa corda que o inimitável Zé de Honorina me
providenciou quando montei o escritório, dar um berro para o
compadre Bento lá embaixo e pedir que ele, por caridade, encha um
copão daqueles de requeijão com alguma coisinha forte e o envie,
via cesta, cá para cima. Compadre Bento é sempre prestimoso,
especialmente em questões de escrever, porque uma vez, quando eu não
conseguia parar de batucar na máquina apesar da presença dele,
ocupado em consertar um negócio qualquer no escritório, me viu
trabalhando e ficou muito impressionado.
— É trabalho pesado — explicou
ele mais tarde à sua santa senhora, comadre Marileide. — Ele bate,
bate, destremece todo, dá risada e faz cada careta que só a pessoa
vendo. Aquilo puxa muito pelo juízo, coitado.
Muitos acessos de genialidade e
cretinismo mais tarde, muitas noites maldormidas e copos de requeijão
mais tarde, acabei o livro. Abestalhei, dei para vagar pela ilha como
um zombie, fazendo perguntas sem nexo aos passantes e achando
que nunca mais ia conseguir dormir. Entreguei os originais, não
melhorei da cabeça, comecei a esperar que o livro saísse, que
alguém lesse aquilo, que eu pudesse tocar no produto final daquele
processo enlouquecido.
Ai de nós, escritores, nada se passa
tão simplesmente. O livro tem de ir para o editor, tem de ser
planejado, composto, revisto, impresso, encapado, encadernado,
guilhotinado e não sei mais o quê. Não é como o trabalho de um
pintor, que termina o quadro e pode mostrá-lo; não é como o
trabalho de um praticante das artes cênicas, que exibe suas artes
diretamente, é aplaudido, ignorado ou vaiado na mesma hora; não é
como o trabalho de um músico, que toca sua música e presencia seu
eco logo em seguida. Nada disso, o trabalho do escritor se
multiplica, lentamente, enervantemente, em exemplares e mais
exemplares, que são (ou não são) curtidos de forma individual,
privada e pessoal — o escritor não sabe de nada do que está
acontecendo, não tem um momento de explosão, tem só aquela coisa
parada, vagarosa, indefinida. Quando, finalmente, o editor telefona e
diz “está pronto, venha ver”, já se sofreu tanta agonia que a
visão da obra transformada em objeto utilizável pode ser até
melancólica. Então é isso? Então foi para isso que me meti em
tanta atribulação? O que é isto, que quer dizer, aonde cheguei?
Mas só agora você aparece, livro, depois de quase me haver matado?
E daí?
E daí que há outras exigências, a
que o sujeito não pode furtar-se. Antes mesmo que alguém possa ter
lido o livro, há que dar entrevistas, respondendo sobre coisas que
não se sabe, eis que o livro só existe intimamente e só revela sua
identidade depois de lido pelos outros. Então como é que o escritor
vai saber de alguma coisa sobre o livro, antes que o livro realmente
exista? Mas é preciso trabalhar e é preciso arregimentar talentos
inexistentes para conseguir realizar esse trabalho.
Tal como o talento de dar autógrafos,
fazer dedicatórias e ser simpático quando se está nervoso. Mal sei
assinar o nome (sou do Norte), não consigo fazer dedicatórias que
não sejam “com a admiração do...” e fico nervoso quando mais
de duas pessoas me olham simultaneamente. Então me sento lá e,
invariavelmente, esqueço os nomes dos bondosos amigos que aparecem
nos lançamentos e, crentes de que eu nunca poderia esquecer seus
nomes, ignoram os pedidos desesperados que faço ao pessoal que vende
os livros para que anotem a lápis os nomes (“pode deixar isso pra
lá, ele me conhece”) e surgem risonhos, estendendo seus exemplares
para que eu os autografe. Dá um branco, todos os nomes vão embora,
os neurônios não disparam, a mão na caneta não funciona. Agora
mesmo vai haver uma dessas sessões de autógrafos, já prevejo o que
acontecerá, a vida do escritor é muito dura, não adianta nem usar
truques antigos.
Como, por exemplo, o que eu costumava
empregar há algum tempo. Em Salvador, num lançamento um pouco
remoto, lembro muito bem que já tinha passado por diversos vexames
amnésicos quando se apresentou diante de mim um senhor simpático,
me olhando com afeto e até carinho, livro em punho e sorriso
encorajador. Eu tinha certeza de que conhecia aquela cara, era com
toda a certeza um grande amigo meu, uma pessoa de quem gostava muito
— mas quem seria? Como era o nome dele, meu Deus do céu? Vasculhei
as gavetas emperradas dos velhos centros da memória, cheguei a
perder o fôlego, não adiantou, o nome não vinha. Sorri amarelo e
usei o truque que me parecia mais adequado.
— Como é seu nome completo? —
perguntei brilhantemente, de caneta em riste e cara hipócrita de
quem sabia o primeiro nome.
— Ora, meu filho — respondeu o
simpático senhor. — Não precisa pôr nome nenhum. Basta escrever
“para meu pai”, que está tudo bem.
— Desculpe, papai — disse eu.
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
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