Suspa!
— que me não dão nem tempo para repuxar o cinto nas calças e me
pôr debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos
sossegos da cozinha. Aí — ...“ai-te...” — a voz da
mulher do caseiro declarou, quando o caso começou. Vi o que era. E,
pois. Lá se ia, se fugia, o meu esmarte Patrão, solerte se
levantando da cama, fazendo das dele, velozmente, o artimanhoso. Nem
parecesse senhor de tanta idade, já sem o escasso juízo na cabeça,
e aprazado de moribundo para daí a dia desses, ou horas ou semanas.
Ôi, tenho de sair também por ele, já se vê, lhe corro todo atrás.
Ao que, trancei tudo, assungo as tripas do ventre, viro que me viro,
que a mesmo esmo, se me esmolambo, se me despenco, se me esbandalho:
obrigações de meu ofício. — “Ligeiro, Vagalume, não larga
o velho!” — acha ainda de me informar o caseiro Sô
Vincêncio, presumo que se rindo, e: — “Valha-me eu!” —
rogo, ih, danando-o, êpa! e desço em pulos passos
esta velha escada de pau, duma droga, desta antiquíssima fazenda,
ah...
E
o homem — no curral, trangalhadançando, zureta, de afobafo — se
propondo de arrear cavalo! Me encostei nele, eu às ordens. Me olhou
mal, conforme pior que sempre. — “Tou meio precisado de
nada...” — me repeliu, e formou para si uma cara, das de
desmamar crianças. Concordei. Desabanou com a cabeça. Concordei com
o não. Aí ele sorriu, consigo meio mesmo. Mas mais me olhou, me
desprezando, refrando: — “Que, o que é, menino, é que é
sério demais, para você, hoje!” Me estorvo e estranhei, pelo
peso das palavras. Vi que a gente estávamos era em tempo-de-guerra,
mas com espadas entortadas; e que ele não ia apelar para manias
antigas. E a gente, mesmo, vesprando de se mandar buscar, por conta
dele, o doutor médico, da cidade, com sábias urgências! Jeito que,
agora, o velho me mandava pôr as selas. Bom desatino! Nem queria os
nossos, mansos, mas o baio-queimado, cavalão alto, e em perigos
apresentado, que se notava. E o pedresão, nem mor nem menor. Os
amaldiçoados, estes não eram de lá, da fazenda, senão que animais
esconhecidos, pegados só para se saber depois de quem fosse que
sejam. Obedeci, sem outro nenhum remédio de recurso; para maluco,
maluco-e-meio, sei. O velho me pespunha o azul daqueles seus grandes
olhos, ainda de muito mando delirados. Já estava com a barba no ar —
aquela barba de se recruzar e baralhar, de nenhum branco fio certo.
Fez fabulosos gestos. Ele estava melhor do que na amostra.
Mal
pus pé em estrivos, já ele se saía pela porteira, no que
esporeava. E eu — arre a Virgem — em seguimentos. Alto, o velho,
inteiro na sela, inabalável, proposto de fazer e acontecer. O que
era se ser um descendente de sumas grandezas e riquezas — um Iô
João-de-Barros-Diniz-Robertes! — encostado, em maluca velhice,
para ali, pelos muitos parentes, que não queriam seus incômodos e
desmandos na cidade. E eu, por precisado e pobre, tendo de agüentar
o restante, já se vê, nesta desentendida caceteação, que me coisa
e assusta, passo vergonhas. O cavalo baio-queimado se avantajava,
andadeiro de só espaços. Cavalo rinchão, capaz de algum
derribamento. Será que o velho seria de se lhe impor? Suave, a gente
se indo, pelo cerrado, a bom ligeiro, de lados e lados. O chapéu
dele, abado pomposo, por debaixo porém surgindo os compridos alvos
cabelos, que ainda tinha, não poucos. — “Ei, vamos, direto,
pegar o Magrinho, com ele hoje eu acabo!” — bramou, que
queria se vingar. O Magrinho sendo o doutor, o sobrinho-neto dele,
que lhe dera injeções e a lavagem intestinal. — “Mato! Mato,
tudo!” — esporeou, e mais bravo. Se virou para mim, aí deu o
grito, revelando a causa e verdade: — “Eu ’tou solto, então
sou o demônio!” A cara se balançava, vermelha, ele era claro
demais, e os olhos, de que falei. Estava crente, pensava que tinha
feito o trato com o Diabo!
P’r’
onde vou? — a trote, a gente, pelas esquerdas e pelas direitas,
pisando o cascalharal, os cavalos no bracear. O velho tendo boa mão
na rédea. De mim, não há de ouvir, censuras minhas. Eu, meus
mal-estares. O encargo que tenho, e mister, é só o de me poitar
perto, e não consentir maiores desordens. Pajeando um traste ancião
— o caduco que não caia! De qualquer repente, se ele, tão doente,
por si se falecesse, que trabalhos medonhos que então não ia haver
de me dar? Minha mexida, no comum, era pouca e vasta, o velho homem
meu Patrão me danava-se. Me motejou: — “Vagalume, você então
pensa que vamos sair por aí é p’ra fazer crianças?” A voz
toda, sem sobrossos nem encalques. E ia ter a coragem de viagem,
assim, a logradouros — tão sambanga se trajando? Sem paletó, só
o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um
pé de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete,
enfiado no braço, falando que aquele era a sua toalha de se enxugar.
Um de espantos! E, ao menos, desarmado, senão que só com uma faca
de mesa, gastada a fino e enferrujada — pensava que era capaz,
contra o sobrinho, o doutor médico: ia pôr-lhe nos peitos o punhal!
— feio, fulo. Mas, me disse, com o pausar: — “Vagalume,
menino, volta, daqui, não quero lhe fazer enfrentar, comigo, riscos
terríveis.” Esta, então! Achava que tinha feito o trato com o
Diabo, se dando agora de o mor valentão, com todas as sertanejices e
braburas. Ah, mas, ainda era um homem — da raça que tivera — e o
meu Patrão! Nisto, apontava o dedo, para lá ou cá, e dava tiros
mudos. Se avançou, à frente, só avançávamos, a fora, por aí,
campampantes.
Por
entre arvoredos grandes, ora demos, porém, com um incerto homem,
desconfioso e quase fugidiço, em incerta montada. Podia-se-o ver ou
não ver, com um tal sujeito não se tinha nada. Mas o velho
adivinhou nele algum desar, se empertigando na sela, logo às barbas
pragas: — “Mal lhe irá!” — gritou altamente.
Aproximou seu cavalão, volumou suas presenças. Parecia que lhe ia
vir às mãos. Não é que o outro, no tir-te, se encolheu,
borrafofo, todo num empate? Nem pude regularizar o de meu olhar, tudo
expresso e distenso demais se passava. O velho achando que esse era
um criminoso! — e, depois, no Breberê, se sabendo: que ele o era,
de fato, em meios termos. Isto que é, que somente um Sem-Medo,
ajudante de criminoso, mero. Nem pelejou para se fugir, dali donde
moroso se achava; estava como o gato com chocalho. — “Ai-te!”
— o velho, sacudindo sua cabeça grande, sem com que desenfezar-se:
— “Pague o barulho que você comprou!” — o intimava. O
ajudante-de-criminoso ouviu, fazendo uns respeitos, não sabendo o
que não adiar. Aí, o velho deu ordem: — “Venha comigo,
vosmicê! Lhe proponho justo e bom foro, se com o sinal de meu
servidor...” E... É de se crer? Deveras. Juntou o homem seu
cavalinho, bem por bem vindo em conosco. Meio coagido, já se vê;
mas, mais meio esperançado.
Sem
nem mais eu me sonhar, nem a quantas, frigido de calor e fartado.
Aquilo tudo, já se vê, expunha a desarrazoada loucura. O velho,
pronto em arrepragas e fioscas, no esbrabejo, estrepa-e-pega. No
gritar: — “Mato pobres coitados!” Se figurava, nos
trajos, de já ser ele mesmo o demo, no triste vir, na capetagem?
Só
de déu e em léu tocávamos, num avante fantasmado. O
ajudante-de-criminoso não se rindo, e eu ainda mais esquivançando.
Nisto, o visto: a que ia com feixinho de lenha, e com a
escarrapachada criança, de lado, a mulher, pobrepérrima. O velho,
para vir a ela, apressou macio o cavalo. Receei, pasmado para tudo. O
velho se safou abaixo o chapéu, fazia dessas piruetas, e outras
gesticulações. Me achei: — “Meu, meu, mau! Esta é aquela flor,
de com que não se bater nem em mulher!” Se bem que as coisas todas
foram outras. O velho, pasmosamente, do doidar se arrefecia. Não é
que, àquela mulher, ofereceu tamanhas cortesias? Tanto mais quanto
ele só insistindo, acabou ela afinal aceitando: que o meu Patrão se
apeou, e a fez montar em seu cavalo. Cuja rédea ele veio, galante, a
pé, puxando. Assim, o nosso ajudante-de-criminoso teve de pegar com
o feixe de lenha, e eu mesmo encarregado, com a criança a tiracolo.
Se bem que nós dois montados; já se vê? — nessas peripécias de
pato.
Só,
feliz, que curta foi a farsalhança, até ali a pouco, num povoado.
Onde o destino dessa pobre e festejada mulher, que se apeou, menos
agradecida que envergonhada. Mas, veja um, e reveja, em o que às
vezes dá uma boa patacoada. Por fato que, lá, havia, rústico, um
“Felpudo”, rapaz filho dessa mulher. O qual, num reviramento, se
ateou de gratidões, por ver a mãe tão rainha tratada. Mas o velho
determinou, sem lhe dar atualmentes nem ensejos: — “Arranja
cavalo e vem, sob minhas ordens, para grande vingança, e com o
demônio!” Advirto, desse Felpudo: tão bom como tão não, da
mioleira. No que — não foi, quê? — saiu, para se prover do dito
cavalo; e vir, a muito adiante. Para vexar o pejo da gente, nessa
toda trapalhada. Das pessoas moradoras, e de nós, os terceiros
personagens. Mas, que ser, que haver? Os olhos do velho se sucediam.
Que estragos?
Se
o que seja. Se boto o reto no correto: comecei a me duvidar. Tirar
tempo ao tempo. Mas, já a gente já passávamos pelo povoadinho do
M’engano, onde meu primo Curucutu reside. Cujo o nome vero não é,
mas sendo João Tomé Pestana; assim como o meu, no certo, não seria
Vagalume, só, só, conforme com agrado me tratam, mas João
Dosmeuspés Felizardo. Meu primo vi, e a ele fiz sinal. Lhe pude dar,
dito: — “Arreia alguma égua, e alcança a gente, sem falta,
que nem sei adonde ora andamos, a não ser que é do Dom Demo esta
empreitada!” Meu primo prestes me entendeu, acenou. E já a
gente — haja o galopar — no encalço do velho, estramontado. Que,
nisto de ainda mais se sair de si, desadoroso, num outro assomo ao
avante se lançava: — “Eu acabo com este mundo!”
Aí,
o mais: poeiras! Ao pino. E, depois de uma virada, o arraial do
Breberê, a gente ia dar de lá chegar, de entrada. O vento tangendo,
para nós, pedaços de toque de sinos. Do dia me lembrei: que sendo
uma Festa de Santo. E uns foguetes pipoquearam, nesse interintintim,
com no ar azuis e fumaças. O Patrão parou a nós todos, a gesto,
levantado envaidecido: — “Tão me saudando!” — ele se
comprouve, do a-tchim-pum-pum dos foguetes, que até tiros. Não se
podia dele discordar. Nós: o ajudante-de-criminoso, o Felpudo filho
da pobre mulher, meu primo Curucutu; e eu, por ofício. Que, de
galope, no arraial então entrou-se, nós dele assim, atrasmente,
acertados. No Breberê.
Foi
danado. Lá o povo, se apinhando, no largo enorme da igreja,
procissão que se aguardava. Ô velho! — ele veio, rente, perante,
ponto em tudo, pá! p’r’ achato, seu cavalão a se espinotear,
z’t-zás...; e nós. Aí, o povaréu fez vêvêvê: pé, p’rá
lá, se esparziam. O velho desapeou, pernas compridas, engraçadas; e
nós. Meio o que pensei, pus a rédea no braço: que íamos ter de
pegar nos bentos tirantes do andor. Mas, o velho, mais, me pondo em
espantos. Vem chegando, discordando, bradou vindas ao pessoal: —
“Vosmicês!...” — e sacou o que teria em algibeiras. E
tinha. Vazou pelo fundo. Era dinheiro, muitíssimas moedas, o que no
chão ele jogava. Suspa e ai-te! — à choldraboldra, desataram que
se embolaram, e a se curvar, o povo, em gatinhas, para poderem catar
prodigiosamente aquela porqueira imortal. Tribuzamos. Safanamos.
Empurrou-se para longe a confusão. No clareado, se tomou fôlego.
Porém, durante esse que-o-quê, o padre, à porta da igreja,
sobrevestido se surgia. O velho caminhou para o padre. Caminhou,
chegou, dobrou joelho, para ser bem abençoado; mas, mesmo antes,
enquanto que em caminhando, fez ainda várias outras ajoelhadas: —
“Ele está com um vapor na cabeça...” — ouvi mote que
glosavam. O velho, circunspecto, alto, se prazia, se abanava, em sua
barba branca, sujada. — “Só saiu de riba da cama, para vir
morrer no sagrado?” — outro senhor perguntava. O que qual era
um “Cheira-Céu”, vizinho e compadre do padre. Mais dizia: — “A
ele não abandono, que devo passados favores à sua estimável
família.” Ouviu-o o velho: — “Vosmicê, venha!” E
o outro, baixo me dizendo: — “Vou, para o fim, a segurar na
vela...” — assentindo. Também quis vir um rapaz Jiló; por
ganâncias de dinheiro? O velho, em fogo: — “Cavalos e armas!”
— queria. O padre o tranquilizou, com outra bênção e mão
beijável. Já menos me achei: — “Lá se avenha Deus com o seu
mundo...” Montou-se, expediu-se, esporeou-se, deixando-se o
Breberê para trás. Os sinos em toada tocavam.
Seja
— galopes. Depois de nenhum almoço, meio caminho desandado; isto
é, caminho-e-meio. Ao que, o velho: pá! impava. Aí, em beira da
estrada-real, parava o acampo dos ciganos. — “Tira lá!”
— se teve: aos com cachorros e meninos, e os tachos, que
consertavam. No burloló, esses ciganos, em tretas, tramóias,
zarandalhas; cigano é sempre descarado. No entendimento do vulgo:
pois, esses, propunham cangancha, de barganhar todos os cavalos. —
“À p’r’-a-parte! Cruz, diabo!” Mas o velho convocou;
e um se quis, bandeou com a gente. O cigano Pé-de-Moleque; para
possíveis patifarias? Me tive em admirações. Tantos vindo, se em
seguida. Assim, mais um Gouveia “Barriga-Cheia”, que já em
outros tempos, piores, tinha sido ruim soldado. Já me vejo em
adoidadas vantagens?
Assim
a gente, o velho à frente — tiplóco... t’plóco... t’plóco...
— já era cavalaria. Mais um, ainda, sem cujo nem quem: o vagabundo
“Corta-Pau”; o sem-que-fazer, por influências. A gente, com
Deus: onze! Ao adiante — tira-que-tira — num sossego revoltoso.
Eu via o velho, meu Patrão: de louvada memória maluca, torre alta.
Num córrego, ele estipulou: — “Os cavalos bebem. A gente, não.
A gente não tenha sede!” Por áspera moderação, penitência de
ferozes. O Patrão, pescoço comprido, o grande gogó, respeitável.
O rei! guerreiro. Posso fartar de suar; mas aquilo tinha para
grandezas.
— “Mato
sujos e safados!” — o velho. Os cavalos, cavaleiros.
Galopada. A gente: treze... e quatorze. A mais um outro moço, o
“Bobo”, e a menos um “João-Paulino”. Aí, o chamado
“Rapa-pé”, e um amigo nosso por nome anônimo; e, por gostar
muito de folguedos, o preto de Gorro-Pintado. Todos vindos, entes,
contentes, por algum calor de amor a esse velho. A gente retumbava,
avantes, a gente queria façanhas, na espraiança, nós assoprados. A
gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer ideias. Era um
desembaraçamento — o de se prezar, haja sol ou chuva. E gritos de
chegar ao ponto: — “Mato mortos e enterrados!” — o
velho se pronunciava.
Ao
que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o teatro.
— “Vou ao demo!” — bramava. — “Mato o Magrinho,
é hoje, mato e mato, mato, mato!” — de seu sobrinho doutor,
iroso não se olvidava. Súspe-te! que eu não era um porqueira; e
quem não entende dessas seriedades? Aí o trupitar — cavalos bons!
— que quem visse se perturbasse: não era para entender nem fazer
parar. Fechamos nos ferros. — “Vigie-se, quem vive!” —
espandongue-se. Não era. Num galopar, ventos, flores. Me passei para
o lado do velho, junto — ... tapatrão, tapatrão... tarantão...
tarantão... — e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso
azul, certeiros, esses muito se mexiam. Me viu mil. — “Vagalume!”
— só, só, cá me entendo, só de se relancear o olhar. — “João
é João, meu Patrão...” Aí: e — patrapão, tampantrão,
tarantão... — cá me entendo. Tarantão, então... — em nome em
honra, que se assumiu, já se vê. Bravos! Que na cidade já se ia
chegar, maiormente, à estrupida dos nossos cavalos, desbestada.
Agora,
o que é que ia haver? — nem pensei; e o velho: — “Eu mato!
Eu mato!” Ia já alta a altura. — “Às portas e janelas,
todos!” — trintintim, no desbaralhado. E eu ali no meio. O um
Vagalume, Dosmeuspés, o Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu,
Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Bobo, o
Gorro-Pintado; e o sem-nome nosso amigo. O Velho, servo do demo —
só bandeiras despregadas. O espírito de pernas-para-o-ar, pelos
cornos da diabrura. E estávamos afinal-de-contas, para cima de
outros degraus, os palhaços destemidos. Estávamos, sem até que a
final. Ah, já era a rua.
A
cidade — catastrapes! Que acolhenças? A cidade, estupefacta, com
automóveis e soldados. Aquelas ruas, aldemenos, consideraram nosso
maltrupício. A gente nem um tico tendo medo, com o existido não se
importava. Ah, e o Velho, estardalhão? — que jurava que matava.
Pois, o demo! vamos... O Velho sabia bem, aonde era o lugar daquela
casa.
Lá
fomos, chegamos. A grande, bela casa. O meu em glórias Patrão, que
saudoso. Ao chegar a este momento, tenho os olhos embaciados. Como
foi, crente, como foi, que ele tinha adivinhado? Pois, no dia, na
hora justa, ali uma festa se dava. A casa, cheia de gente,
chiquetichique, para um batizado: o de filha do Magrinho, doutor! Sem
temer leis, nem flauteio, por ali entramos, de rajada. Nem ninguém
para impedimento — criados, pessoas, mordomado. Com honra. Se
festava!
Com
surpresas! A família, à reunida, se assombrava gravemente, de ver o
Velho rompendo — em formas de mal-ressuscitado; e nós, atrás,
nesse estado. Aquela gente, da assemblança, no estatelo, no
estremunho. Demais. O que haviam: de agora, certos sustos em
remorsos. E nós, empregando os olhos, por eles. O instante, em
tento. A outra instantaneação. Mas, então, foi que de repente, no
fechar do aberto, descomunal. O Velho nosso, sozinho, alto, nos
silêncios, bramou — dlão! — ergueu os grandes braços:
— “Eu
pido a palavra...”
E
vai. Que o de bem se crer? Deveras, que era um pasmar. Todos, em roda
de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se vê. Ah, e o
Velho, meu Patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! — e se
saiu, foi por aí embora a fora, sincero de nada se entender, mas a
voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das
pedras. Era de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de
chorar. Tive mais lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos,
mais calados. O Velho, fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que
falou, eram baboseiras, nada, idéias já dissolvidas. O Velho só se
crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os históricos dessa voz: e
a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia.
Até
que parou, porque quis. Os parentes se abraçavam. Festejavam o
recorte do Velho, às quantas, já se vê. E nós, que atrás, que
servidos, de abre-tragos, desempoeirados. Porque o Velho fez questão:
só comia com todos os dele em volta, numa mesa, que esses seus
cavaleiros éramos, de doida escolta, já se vê, de garfo e faca.
Mampamos. E se bebeu, já se vê. Também o Velho de tudo provou,
tomou, manjou, manducou — de seus próprios queixos. Sorria
definido para a gente, aprontando longes. Com alegrias. Não houve
demo. Não houve mortes.
Depois,
ele parou em suspensão, sozinho em si, apartado mesmo de nós,
parece’que. Assaz assim encolhido, em pequenino e tão em claro:
quieto como um copo vazio. O caseiro Sô Vincêncio não o ia ver,
nunca mais, à doidiva, nos escuros da fazenda. Aquele meu esmarte
Patrão, com seu trato excelentriste — Iô
João-de-Barros-Diniz-Robertes. Agora, podendo daqui para sempre
se ir, com direito a seu inteiro sossego. Dei um soluço, cortado.
Tarantão — então... Tarantão... Aquilo é que era!
Guimarães Rosa, em Primeiras Estórias

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