segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

o remorso de baltazar serapião | Seis


refaladas todas as coisas, era comigo que a ermesinda se casaria, duvidado de ascendência mas bom de aspecto, muito largo e viril, como aos melhores homens se pede que sejam. será um ajuizado chefe de família, reiterado na valentia e astuto nos recursos, está protegido por um misericordioso senhor, garante a nossa filha como se precisa, terá a sua mão e a nossa familiaridade, marquemos a hora para que se festejem nossos intentos e corações decididos. e eu humedeci os olhos, criado de emoção, apartei-me feliz, iludido com o amor como devia ser.
em maio era quando se casavam os noivos de sorte, escolhido o dia de são pancrácio, a velar-nos as juras, com as chuvas meio levantadas, os calores ainda previstos, a claridade dos dias muito imposta como supremacia do que se via sobre o que se sentia, e era como se via no ar essa cor tão forte que deixava felicidade pelos lugares. a igreja de cristo redentor estava aberta ao povo que quisesse participar, e era repleta de velhas que se tinha, a cheirar a mijo e suores, quando entrei e me puseram à espera da ermesinda no altar. também cheirávamos os mortos sepultados chão debaixo das pedras, mal tapados de narizes bicudos e mal dispostos. a nossa igreja estava repleta. não havia muitos mais buracos a abrir onde enfiar mortos sempre a morrer. as velhas, mijadas e paradas nos bancos, até pareciam acorrer ali para nada mais. mais, era o que se devia, acertar-lhes com um pé na nuca para as abater de vez. se lhes perguntássemos alguma coisa, não tinham disposição de entender. olhavam mesmamente para a frente como se vissem para depois da vida. o teodolindo, meu amigo, sentado de orgulho e banho ao pé de mim, sorria e soltava-se de gases na cara de uma velha vertida para o chão. que porcaria de estropício se haveria de sentar à frente, queixava-se ela. era porque onde ele queria ficar se havia metido a mulher sem reacção nenhuma, só como uma pedra morta a marcar lugar.
a cerimónia não teve grande ciência, abençoados pela confissão como estávamos, pedidos pelos pais para nos casarmos, nada se apoquentava com nosso acto e só praticá-lo era preciso. por isso foram ditas as palavras sem grande tempo e já a arca da ermesinda tinha sido levada para nossa casa tão preparada, e era como o seu enxoval ficaria guardado para nosso uso, muito dele para mais tarde, quando me autonomizasse verdadeiramente da casa dos meus pais e não estivesse a disfarçar o espaço que cabia aos animais. e era como dizia o aldegundes, revoltado com a expulsão da sarga, haviam de ser vocês, os dois, a peidar e a cagar o suficiente para aquecer a casa à noite se isso compete por natureza ao gado que se tem.
lá estava a sarga debaixo das madeiras mal seguras. realmente mal seguras, como, à pressa, ainda tive de ser eu a alojá-la. poderia fugir, chorava o aldegundes, vai fugir como parece fazer tanta força sempre que chove, vai esconder-se em lugar que desconhecemos e deixaremos de a ver. era cruel da minha parte alhear-me do seu sofrimento, e mais cruel dizer-lhe em surdina que se calasse dos pretextos pela vaca, não fosse viver um amor estouvado de porcaria e alguém notasse. não fosse o meu pai, passivo e desimportado, notar algum sinal da sua ainda burra masculinidade. não sejas burro, aldegundes, deixa-a a dormir assim, às vacas tanto se lhes dá os confortos, e a sarga quando se assusta faz um grande temporal, nada do que temos esta noite. o meu pai não foi a vê-la, não se inteirou do coberto que lhe fizera eu, e ela estava metida debaixo das madeiras em espaço exíguo, e o meu pai nem perguntara que fora da vaca, já bom tempo decorrido no meu casamento. estava para a cama mais cedo que minha mãe, e ordens claras, todos a dormir que não queria nem fogo nem barulho acesos a impedirem-no de descansar. a sarga estava calada, o aldegundes calou-se, eu e a ermesinda gememos, sem custo, gememos.
uma virgem, de sangrar e tudo, mas que não é feita mulher pelas dores, que poderia significar, perguntava-me eu. nem por um só momento imaginei que se faria mulher sem dores, num silêncio só gemido como naturalmente um casal geme já tempo decorrido. como meus pais, sem novidade ou esforço, apenas o gasto esperado e remediado da rotina. não que fosse destituído de prazer ou forçado à euforia pela novidade, mas que a novidade lhe fosse tão simples e benfazeja da partida à chegada. sob mim a receber os meus jeitos em paz de proveito, muito delicada sem dizer palavra que me quisesse pedir maior cuidado ou carinho. nada. e o lençol sujou-se de sangue e assim o apresentámos aos meus pais para que surdamente se espalhasse o orgulho de toda a família. o teodolindo, jurando por nós nos votos religiosos, abriu os dentes em flor, bateu-me nas costas muito amigo e disse-me, chegaste bem à idade adulta, tens mulher e honra com que te servir. não percas nada. eu tive toda a ideia disso. enchi o peito de mim, feliz de ser quem era. só mirrei um bocado à lembrança de que ele, o teodolindo, o meu melhor amigo, estava ainda longe de se prender. tens recordações em demasia das partes da natureza, tens de esfriar por baixo e ver as raparigas por cima. esquivava-se nas árvores, desaparecia, metido para os seus segredos sem mais conversa.
disse à minha ermesinda que se estendesse nua na cama. que eu a queria ver à luz da vela, muito próxima de cada pedaço da sua pele. ela pareceu acalmar quando lhe pus a mão suave no contorno da anca. lembrei-me, toca-lhe com leveza, tal fosse coisa de partir da casa de dom afonso. porcelana da colecção de dona catarina, faz de conta que, se errares, não voltas a ter tamanha felicidade e deves ter por tal momento todo o cuidado possível. toca-lhe por amor. e assim fiz, segundo as palavras do senhor santiago. depois, ela perguntou se teria de ganhar barriga por cada vez que eu a conhecesse. e eu sorri com sua burrice, e até a amei mais ainda, por corresponder perfeita à estupidez que se espera numa mulher. puxei-lhe a cabeça para trás e busquei-a pelo meio de mim, e ela ali ficou paciente a encontrar-se pelo interior dos buracos sem grande surpresa.
mandada a lavar os lençóis em discrição, ermesinda portou-se como tal, a esbranquiçar o seu sangue com dedicação. e muito diferente se pendurou aquele linho à vista do sol e de todos, esperado por dom afonso à boca das suas janelas, acordado cedo como à espera ansioso de que lá subíssemos para a apresentação combinada. e a correr nos fomos, os dois, no primeiro desmedo que tive de arranjar, liberto de meu pai para as coisas assim, entrado na casa grande para me honrar de virar homem de mulher e tudo. e a desmedo entrei, aberta a porta pela brunilde, que nos contara os minutos de chegar. uma palavra mínima, cortada à socapa para que se escondesse do que a casa pudesse ouvir, que ali dentro da casa tudo era passível de ser inteligente, era da figura e preciosidade das coisas, pareciam guardar vida incrível que se accionasse por poderoso feitiço à voz do proprietário.
era como nos sentíamos na casa de dom afonso, enterrados por preciosas peças que ornavam a casa, como eu imaginaria um castelo de el-rei. dom dinis, ele próprio, viveria ali de agrado sem queixa de qualidade ou luxo, era em que acreditava. parados, silenciosos de tudo como objectos a tremer, esperámos atentos que viesse chamado pela brunilde. esperámos, sem mais olhar que a porta por onde viria, e foi com um salto por dentro que o recebemos. sorrindo, bigode puxado pela mão para fremir os lábios e, que se visse, era claro que a ermesinda lhe agradava de beleza e frescura. e eu abençoei-me por ele de joelhos e agradeci infinitamente a oferta dos dois torneis, como gabei os aposentos em que tornámos o lugar da sarga. sim, essa vaca, dizia ele, quantos anos terá. talvez uns trinta, dom afonso. trinta anos que o teu pai a tem, parece impossível que não a tivesse desfeito em postas quando era de comer. meu pai tem apreço pela bicha, dom afonso. um apreço que lhe deu fama, rapaz. dom afonso saberá. uma mulher é melhor do que uma vaca, disso estou certo, do que o povo diz pouco me interessa, e a tua é uma bela mulher, viçosa nos modos, clara nos olhos, aberta nos membros. é muito bela, sim, como se regozija o meu amor por ela e mais ainda por se ter sem empecilhos ou maleitas. sim, bem vejo, rapaz, que tudo nela está aberto e pronto para a vida. se dom afonso o diz. digo mais, estou seguro que seu corpo se estenderá ao trabalho em grande rendimento e todos aproveitaremos do que souber fazer. por isso, sou capaz de jurar que fará da sua vinda para a nossa casa uma grande surpresa, como surpreso ficarei só de vê-la a cada dia e confirmar que existe tal beleza. assim, quero que passe todas as manhãs aqui a ver-me, deverá fazê-lo bem cedo antes dos horários de dona catarina, para que eu possa gerir o seu dia nos animais com atenção e especial cuidado. ouviste, rapaz, farei tudo para que seja feliz nos trabalhos e destino que lhe competem. se dom afonso o pede. agora vão, dona catarina levanta-se e há que tornar a casa desimpedida para os seus confortos.
naquele tempo o meu martírio começou. empoleirado nas bermas da casa, agarrado às janelas a desesperar de incerteza, fosse a ermesinda meter-se debaixo de dom afonso e que faria eu corno, apaixonado, morto de loucura por ela. nem meu pai me convencia, transtornado a deitar-me juízo cabeça abaixo, incapaz de me impedir de exercer a direcção devida no matrimónio que acabara de realizar. assim falávamos, que se estivesse posto dentro dela lhe arrancaria a cabeça numa só desgraça para toda a família. ou, se me esfriasse o pensamento e pudesse hesitar, talvez o matasse de venenos colhidos secretamente, cozinhados à sua boca com o auxílio da brunilde. senão, muitas cobras poderiam ser minhas presas por um tempo, até que as soltasse infalíveis no quarto do filho do demónio. mas nada da boca da ermesinda me confirmava, nem os olhos que lhe deitava às partes da natureza, abertas em bom sol, me diziam o que ali poderia ter entrado. e mesmo ao toque dos dedos nada parecia diferenciar os seus dias das nossas noites. e era como me enlouquecia, nada saber e saber apenas o que me queria confirmar dos bons intentos de dom afonso. ela dizia que entrava para a sala de grande nobreza para uma conversa muito rápida, em que o senhor lhe perguntava pelos queijos, tão apropriada das tarefas logo de início, e depois lhe desejava bom trabalho em simples continuação de instruções já dadas. mais nada. era como perder tempo, parecia, não acontecia mais nada. dizia-me a minha bela e calada mulher, olhos não abertos dos pés, delicadeza à minha mesa e na minha cama, como coisa branca que me impressionava.
era diariamente, como diariamente ali a mandou, e tudo o que eu fazia para os alcançar em conversa não era suficiente. nem pedido à brunilde o serviço se fazia, mandada embora com veemência, as portas fechavam-se para que nada visse ou ouvisse. e dom afonso não saía de lá a arfar, causado de rosadas faces, abafado de qualquer modo, trôpego, aflito de calores, odores, feridas tocadas, cabeça pesada, nada. saía por seu pé igual como entrara e, sem análise maior, nada parecia acusá-lo de comer a rapariga. puta que o pariu. porque andaria a recebê-la perdia sentido, e tempo decorrido desde a primeira vez, cada vez se parecia mais com um improvável jogo de gato e rato onde o rato, eu, não conhecia as regras. que mais podia senão mugir dia inteiro a trabalhar, furioso sem respostas, adormecido cada vez menos e acordado cada vez mais.
até o teodolindo posto em cuidado nada me dizia. podia fazer coincidir com a visita da minha ermesinda a sua entrega dos trajes do dia. mas não ouvia nada para lá da porta fechada da grande sala. atentamente entrava de orelhas aguçadas, entregava os delicados trajes de dona catarina aprumados de véspera e saía por mesmo pé e silêncio. não lhe parecia ser real que alguém se tivesse de sexo para lá daquela porta, que mesmo em modos meigos um dia haveria em que se soltaria um gemido revelador, um soluço de garganta engasgada, um tropeço no chão ou arrastar de uma cadeira. mas nada. afirmava o teodolindo por cima das notícias da brunilde, nada se ouvia porque nada devia estar a acontecer. claro, além disso, vozes, a voz de um e outro, espaçadamente, percebia-se baixinho, vindas de muito ao fundo da grande sala, sem contorno suficiente para organizar palavras. eram só sons de timbre e nenhuma definição.
como disse à minha ermesinda, ainda volto a pôr-me na teresa diaba só para sentir que conheço o bicho que tenho nas mãos. e ela corava de medo, talvez meus pais atentos a escutarem o que lhe dizia, e a minha mãe como pediria que não fosse bruto com ela. era porque lhe entortara o pé meu pai, descabido com ela num tempo em que eu era muito novo, e assim a ensinou de modos para sempre, tomada de respeitos por ele para o resto da vida, não quisesse que ele lhe entortasse também o outro. e eu acho que ela se escudava como vítima de quando em vez para que nos apiedássemos da sua condição de fêmea, mas eu nunca lhe admitiria que me chamasse a atenção para os tratos tão cedo dados a ermesinda, era porque algo me escapava ao entendimento, e desgraçada da mulher que saísse do entendimento do marido. por isso tudo devia estar bem explícito no seu espírito coarctado, mesmo mulher, determinadas coisas haveriam de ser passíveis de se manterem no seu espírito, coisas inclusive nada complicadas, como não pretender ter segredos para mim e não me encornar nunca. e se lhe dei o primeiro correctivo de mão na cara não foi porque não a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós, assim te aceitei por decisão de meu pai que quer o melhor para mim, mas deus quis que eu fosse este homem e tu a minha mulher, como tal está nas minhas mãos completar tudo o que no teu feitio está incompleto, e deverás respeitar-me para que sejas respeitada. nada do que te disser deve ser posto em causa, a menos que enlouqueças e me autorizes a pôr-te fim. deitei-me, a minha mãe estremeceu no lado de lá da parede. o meu pai desconfiou do meu pulso para decidir da vida sozinho. o aldegundes arrepiou-se por todos, ali sozinho de mim, a saber que os nossos pais se juntavam menos na cama à noite, talvez imperfeitos também perante a minha juventude e da ermesinda, e a saber que cada um de nós se afastava para uma nova realidade, apartados pelas opções e papéis que nos eram destinados desde sempre. já não se levantava para acalmar a sarga, e a pobre vaca, talvez percebida de estar velha e pronta a morrer, deixava-se mais quieta e deitada fora, talvez temendo que as tábuas lhe partissem os ossos, se caídas com um coice que lhes desse. e o aldegundes já nada dizia, mais trabalhador e menos brincado.
[...]

Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião

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