[...]
A
vez em que você, enquanto descascava uma cesta de vagens na pia,
disse, do nada: “Eu não sou um monstro. Eu sou uma mãe.”
O
que a gente quer dizer quando fala sobrevivente? Talvez um
sobrevivente seja o último a chegar em casa, a última monarca que
pousa num galho já pesado de fantasmas.
A
manhã se fechou à nossa volta.
Larguei
o livro. As cabeças das vagens continuaram estalando. Elas caíam na
cuba de aço da pia como dedos. “Você não é um monstro”, eu
disse.
Mas
eu menti.
O
que eu quis dizer de verdade é que não é tão terrível ser um
monstro. Da raiz latina monstrum, um mensageiro divino da
catástrofe, depois adaptado pelo francês antigo para se referir a
um animal de origens múltiplas: centauro, grifo, sátiro. Ser um
monstro é ser um sinal híbrido, um farol: ao mesmo tempo um farol e
um alerta.
Leio
que pais que sofrem de Síndrome do Estresse Pós-Traumático têm
maior probabilidade de bater nos filhos. Talvez isso tenha uma origem
monstruosa, no fim das contas. Talvez bater no seu filho seja
prepará-lo para a guerra. Dizer que temos batimento cardíaco nunca
é tão simples quanto a tarefa do coração de dizer sim sim sim
para o corpo.
Eu
não sei.
O
que eu sei é que naquele dia no mercado você me entregou o vestido
branco, teus olhos vítreos e arregalados. “Você consegue ler
isso”, você disse, “e me contar se é à prova de fogo?”
Procurei a barra, estudei o impresso na etiqueta e, sem conseguir
ler, disse: “É sim.” Disse mesmo assim. “É sim.” Menti,
segurando o vestido na altura do teu queixo. “É à prova de fogo.”
Dias
depois, um garoto da vizinhança, andando de bicicleta, me viu usando
aquele mesmo vestido – eu pus imaginando que ia ficar mais parecido
com você – no jardim de casa enquanto você estava no trabalho. No
recreio no outro dia, os meninos me chamavam de aberração,
fadinha, bicha. Soube muito depois que essas palavras também
eram repetições de monstro.
Às
vezes, imagino as monarcas fugindo não do inverno, mas das nuvens de
napalm da tua infância no Vietnã. Imagino as borboletas voando de
explosões de fogo, incólumes, suas minúsculas asas negras e
vermelhas tremendo como escombros que continuassem explodindo, por
milhares de quilômetros no céu, de um jeito que, ao olhar para
cima, você já não consegue descobrir de qual explosão elas
vieram, apenas uma família de borboletas flutuando no ar límpido,
gelado, suas asas, depois de tantas conflagrações, finalmente à
prova de fogo.
“Muito
bom saber isso, querido.” Você desviou o olhar, rosto impassível,
olhando por cima do meu ombro, o vestido preso a teu peito. “Muito
bom.”
Você
é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou –
e é por isso que eu não posso me afastar de você. E é por isso
que eu peguei a mais solitária criação de deus e te coloquei
dentro dela.
Veja.
Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante
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