sábado, 7 de dezembro de 2024

Querer ser justo e querer ser juiz

— Schopenhauer, cujo grande conhecimento das coisas humanas, demasiado humanas, cujo primordial senso dos fatos foi um tanto prejudicado pela colorida pele de leopardo de sua metafísica (que é preciso antes remover, para descobrir embaixo um verdadeiro gênio de moralista) — Schopenhauer faz esta excelente distinção, com a qual terá bem mais razão do que realmente podia confessar a si mesmo: “a compreensão da rigorosa necessidade das ações humanas é a linha que separa as mentes filosóficas das outras”. Essa poderosa percepção, a que por vezes ele se achava aberto, ele contrariava dentro de si mesmo com o preconceito que ainda tinha em comum com os homens morais (não com os moralistas) e que assim expressa, de maneira ingênua e crédula: “a última e verdadeira explicação sobre a íntima essência da totalidade das coisas deve, por necessidade, ligar-se estreitamente àquela sobre a significação ética do agir humano” — o que precisamente não é “necessário” de forma nenhuma, e sim é rejeitado por aquela proposição sobre a rigorosa necessidade das ações humanas, ou seja, da absoluta não liberdade e irresponsabilidade da vontade. As mentes filosóficas se diferenciarão das outras, portanto, através da descrença na significação metafísica da moral: e isso pode estabelecer entre elas um abismo profundo e insuperável, de que o deplorado abismo entre “cultos” e “incultos”, tal como hoje existe, não pode dar ideia. É certo que devem ser reconhecidas como inúteis várias outras escapatórias que as “mentes filosóficas”, como Schopenhauer mesmo, deixaram para si: nenhuma leva ao ar livre, ao ar do livre-arbítrio; cada uma, através da qual até agora se tentou escapar, revelou novamente por trás o muro brônzeo do fado: nós estamos na prisão, só podemos nos sonhar livres, não nos tornar livres. Que não se pode contrariar por muito tempo mais esse conhecimento, isso demonstram as desesperadas, incríveis posturas e contorções daqueles que contra ele investem, que com ele prosseguem a luta. — Eis o que agora se passa neles, aproximadamente: “Então ninguém é responsável? E em tudo há pecado e sentimento do pecado? Mas alguém tem de ser o pecador: se é impossível e não mais é permitido acusar e julgar o indivíduo, a pobre onda na inevitável rebentação do devir — então: que a rebentação mesma, o devir, seja o pecador: aqui está o livre-arbítrio, aqui se pode acusar, condenar, expiar e pagar: que seja Deus o pecador, e o homem, seu redentor: que a história universal seja culpa, autocondenação e suicídio; que o malfeitor se torne seu próprio juiz, e o juiz, seu próprio carrasco”. — Esse cristianismo de cabeça para baixo — que é, senão isso? — é a última estocada na luta entre a doutrina da moralidade absoluta e a da não liberdade absoluta — uma coisa horrível, se fosse mais do que uma careta lógica, mais do que um gesto feio do pensamento que sucumbe — algo como o espasmo final do coração desesperado e ansioso de cura, ao qual a loucura sussurra: “És o cordeiro que carrega o pecado de Deus”. — O erro está não apenas no sentimento “eu sou responsável”, mas igualmente na antítese “eu não sou responsável, mas alguém tem de ser”. — Isso justamente não é verdadeiro: o filósofo deve então dizer, como Cristo: “não julguem!”, e a diferença última entre os espíritos filosóficos e os outros seria que os primeiros querem ser justos e os outros querem ser juízes.

Friedrich Nietzsche, em Humano, demasiado humano

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