— Schopenhauer, cujo grande
conhecimento das coisas humanas, demasiado humanas, cujo primordial
senso dos fatos foi um tanto prejudicado pela colorida pele de
leopardo de sua metafísica (que é preciso antes remover, para
descobrir embaixo um verdadeiro gênio de moralista) — Schopenhauer
faz esta excelente distinção, com a qual terá bem mais razão do
que realmente podia confessar a si mesmo: “a compreensão da
rigorosa necessidade das ações humanas é a linha que separa as
mentes filosóficas das outras”. Essa poderosa
percepção, a que por vezes ele se achava aberto, ele contrariava
dentro de si mesmo com o preconceito que ainda tinha em comum com os
homens morais (não com os moralistas) e que assim expressa,
de maneira ingênua e crédula: “a última e verdadeira explicação
sobre a íntima essência da totalidade das coisas deve, por
necessidade, ligar-se estreitamente àquela sobre a significação
ética do agir humano” — o que precisamente não é “necessário”
de forma nenhuma, e sim é rejeitado por aquela proposição sobre a
rigorosa necessidade das ações humanas, ou seja, da absoluta não
liberdade e irresponsabilidade da vontade. As mentes filosóficas se
diferenciarão das outras, portanto, através da descrença na
significação metafísica da moral: e isso pode estabelecer entre
elas um abismo profundo e insuperável, de que o deplorado abismo
entre “cultos” e “incultos”, tal como hoje existe, não pode
dar ideia. É certo que devem ser reconhecidas como inúteis várias
outras escapatórias que as “mentes filosóficas”, como
Schopenhauer mesmo, deixaram para si: nenhuma leva ao ar
livre, ao ar do livre-arbítrio; cada uma, através da qual
até agora se tentou escapar, revelou novamente por trás o muro
brônzeo do fado: nós estamos na prisão, só podemos nos
sonhar livres, não nos tornar livres. Que não se pode
contrariar por muito tempo mais esse conhecimento, isso demonstram as
desesperadas, incríveis posturas e contorções daqueles que contra
ele investem, que com ele prosseguem a luta. — Eis o que agora se
passa neles, aproximadamente: “Então ninguém é responsável? E
em tudo há pecado e sentimento do pecado? Mas alguém tem de ser o
pecador: se é impossível e não mais é permitido acusar e julgar o
indivíduo, a pobre onda na inevitável rebentação do devir —
então: que a rebentação mesma, o devir, seja o pecador: aqui está
o livre-arbítrio, aqui se pode acusar, condenar, expiar e pagar: que
seja Deus o pecador, e o homem, seu redentor: que a
história universal seja culpa, autocondenação e suicídio; que o
malfeitor se torne seu próprio juiz, e o juiz, seu próprio
carrasco”. — Esse cristianismo de cabeça para baixo —
que é, senão isso? — é a última estocada na luta entre a
doutrina da moralidade absoluta e a da não liberdade absoluta —
uma coisa horrível, se fosse mais do que uma careta lógica,
mais do que um gesto feio do pensamento que sucumbe — algo como o
espasmo final do coração desesperado e ansioso de cura, ao qual a
loucura sussurra: “És o cordeiro que carrega o pecado de Deus”.
— O erro está não apenas no sentimento “eu sou responsável”,
mas igualmente na antítese “eu não sou responsável, mas alguém
tem de ser”. — Isso justamente não é verdadeiro: o filósofo
deve então dizer, como Cristo: “não julguem!”, e a diferença
última entre os espíritos filosóficos e os outros seria que os
primeiros querem ser justos e os outros querem ser juízes.
Friedrich Nietzsche, em Humano, demasiado humano
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