domingo, 8 de dezembro de 2024

Ao correr dos dias, da máquina

Eu que dei para mentir. E com isso estou dizendo uma verdade. Mas mentir já não era sem tempo. Engano a quem devo enganar e, como sei que estou enganando, digo por dentro verdades duras. Não engano meus filhos, senão o necessário protetor. E o necessário protetor vale uma verdade. Os outros também me enganam. Ou mentem simplesmente, ou prometem e esquecem. Um amigo prometeu-me dar-me o busto esculpido de uma amiga mútua já morta: ele vai esquecer. E isso também é uma forma de mentir. Ou não? Não.
Houve um sábado em que Elsie Lessa deu em casa dela um vatapá. Cheguei tão tarde, por motivos exteriores à minha vontade, que quase todo mundo já tinha ido embora, mas ainda comi vatapá. Depois cuscuz, que minha cozinheira não sabe fazer e que não posso recusar. E assim é a vida, assim correm os dias. Depois fui logo embora porque uma amiga me esperava para ir ver Fernanda Montenegro. Essa, que não faz outra coisa a não ser representar no palco o que não é, essa não mente. A minha amiga, aquela com quem fui ao teatro, também não mente. O que eu queria agora saber é por que estou tão interessada em mentiras e verdades.

Fiquei tonta com o teatro. Era A volta ao lar, de Harold Pinter. Os palavrões, que nem digo nem sei dizer, não me impressionaram. Mas me desfiz tanto por dentro a ponto de ter de pentear os cabelos no primeiro intervalo. Dizem que os homens aguentam menos o enredo da peça que as mulheres. No entanto tudo gira em torno da volta sórdida ao lar de uma mulher que é de todos. Eu na hora nem sabia se teria coragem de voltar para assistir de novo. Fui dormir impressionada. E acordei toda volta ao lar.

As palmas, no fim do espetáculo, eram assustadas. Dizem que um homem levantou-se no meio, não suportou. E que sua esposa retrucou zangada: se quiser, me espere lá fora. E ficou. Não sei por quê, hoje eu queria escrever uma coisa bem forte mas estou fraca, um pouco lânguida. Escrevo de manhã. Hoje é tão sábado. Vou dormir depois do almoço. Ao correr da máquina: vem uma amiga almoçar comigo. Eu não sou engraçada mas ela acha graça em tudo o que eu digo. Vai ficar contente quando souber que hoje tem coco, nem sei de que forma: a cozinheira quer me fazer uma surpresa. E assim se passam os dias. Cadê minha força de hoje? Será que vai vir nos sonhos que terei quando dormir depois do almoço? Sou muito forte nos sonhos. Ah isto não é crônica nem coluna, bem sei. Por uma vez acho que não importa: os dias correm, a máquina corre. Mas se eu fosse cronista, ah não me faltariam assuntos!
Meu cronista anda muito manso. Aliás ele é de certo modo um manso, um manso extremamente firme, mas manso. Foi comigo à casa de Elsie Lessa e depois me deixaria de carro na casa da amiga, aquela com quem fui ao teatro. E eu apressando-o. Até que ele avisou que se eu falasse demais, ele me atrasaria tomando mais um uísque. Que eu só podia sorrir. Então sorri. Ele não me enganou, não demoramos muito. Ele, aliás, é o meu conselheiro. Quando não sei o que resolver, telefono para ele e ele diz. Sempre tem razão. A última vez que pedi conselho foi sobre um contrato com editora estrangeira. Talvez ele seja o único poeta com senso prático que eu conheço.

O busto daquela minha amiga já morta, o que eu vou ou não ganhar, foi feito por Ceschiatti. Ele tentou “fazer” a minha cabeça, quando esteve hospedado lá em casa, em Berna. Eu me diverti muito em posar porque, atrás da cabeça que ele esculpia, pedi licença para esculpir uma mulher. Mas Ceschiatti não estava gostando da cabeça que fazia de mim, e ele é um dos que precisam ficar satisfeitos com o seu trabalho. Na Suíça nós tínhamos um terraço com lugar para amontoar o carvão destinado a aquecer a casa no aquecedor não elétrico que esta tinha. E Ceschiatti terminou jogando minha cabeça no meio daquele carvão preto. Só perdoei porque ficou bonito e a cabeça semirrachada entre pedaços de carvão rachado. A cabeça ficou lá muito tempo com os olhos de estátua olhando para o céu. Depois veio a neve forte, e o resultado era carvão preto, neve alva e cabeça rachada. Ficou para sempre em mim essa imagem. Obrigada, Ceschiatti, pela cabeça de que você não gostou, pelo carvão negro e áspero, pela neve que caía em flocos silenciosos. Não sei quem dos três era mais eu. A cabeça rachada de olhos fixos na neve que caía do céu. Não, acho que era o carvão negro e preto e friável. Friável tem ou não tem acento? Acho que tem.

No domingo que se seguiu ao sábado do teatro apareceu em casa por uns minutos José Américo Pessanha, professor de Filosofia. Uma aluna dele pedira-lhe que me trouxesse duas páginas de perguntas sobre mim. Não sei sequer tanto sobre mim, e além do mais estava de saída. Por que fazem perguntas? Por que querem saber? Eu, por exemplo, não quero mais.
Vou terminar aqui porque hoje é sábado e estou, como disse, muito fraca. Ser fraca também não é mau. Como vou ser muito falada por causa dessa minha crônica. Mas não importa mais, sinceramente. E não é por desprezo da opinião alheia. É porque talvez sábado de manhã as coisas tenham uma importância extremamente relativa.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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