Eu
que dei para mentir. E com isso estou dizendo uma verdade. Mas mentir
já não era sem tempo. Engano a quem devo enganar e, como sei que
estou enganando, digo por dentro verdades duras. Não engano meus
filhos, senão o necessário protetor. E o necessário protetor vale
uma verdade. Os outros também me enganam. Ou mentem simplesmente, ou
prometem e esquecem. Um amigo prometeu-me dar-me o busto esculpido de
uma amiga mútua já morta: ele vai esquecer. E isso também é uma
forma de mentir. Ou não? Não.
Houve
um sábado em que Elsie Lessa deu em casa dela um vatapá. Cheguei
tão tarde, por motivos exteriores à minha vontade, que quase todo
mundo já tinha ido embora, mas ainda comi vatapá. Depois cuscuz,
que minha cozinheira não sabe fazer e que não posso recusar. E
assim é a vida, assim correm os dias. Depois fui logo embora porque
uma amiga me esperava para ir ver Fernanda Montenegro. Essa, que não
faz outra coisa a não ser representar no palco o que não é, essa
não mente. A minha amiga, aquela com quem fui ao teatro, também não
mente. O que eu queria agora saber é por que estou tão interessada
em mentiras e verdades.
Fiquei
tonta com o teatro. Era A volta ao lar, de Harold Pinter. Os
palavrões, que nem digo nem sei dizer, não me impressionaram. Mas
me desfiz tanto por dentro a ponto de ter de pentear os cabelos no
primeiro intervalo. Dizem que os homens aguentam menos o enredo da
peça que as mulheres. No entanto tudo gira em torno da volta sórdida
ao lar de uma mulher que é de todos. Eu na hora nem sabia se teria
coragem de voltar para assistir de novo. Fui dormir impressionada. E
acordei toda volta ao lar.
As
palmas, no fim do espetáculo, eram assustadas. Dizem que um homem
levantou-se no meio, não suportou. E que sua esposa retrucou
zangada: se quiser, me espere lá fora. E ficou. Não sei por quê,
hoje eu queria escrever uma coisa bem forte mas estou fraca, um pouco
lânguida. Escrevo de manhã. Hoje é tão sábado. Vou dormir depois
do almoço. Ao correr da máquina: vem uma amiga almoçar comigo. Eu
não sou engraçada mas ela acha graça em tudo o que eu digo. Vai
ficar contente quando souber que hoje tem coco, nem sei de que forma:
a cozinheira quer me fazer uma surpresa. E assim se passam os dias.
Cadê minha força de hoje? Será que vai vir nos sonhos que terei
quando dormir depois do almoço? Sou muito forte nos sonhos. Ah isto
não é crônica nem coluna, bem sei. Por uma vez acho que não
importa: os dias correm, a máquina corre. Mas se eu fosse cronista,
ah não me faltariam assuntos!
Meu
cronista anda muito manso. Aliás ele é de certo modo um manso, um
manso extremamente firme, mas manso. Foi comigo à casa de Elsie
Lessa e depois me deixaria de carro na casa da amiga, aquela com quem
fui ao teatro. E eu apressando-o. Até que ele avisou que se eu
falasse demais, ele me atrasaria tomando mais um uísque. Que eu só
podia sorrir. Então sorri. Ele não me enganou, não demoramos
muito. Ele, aliás, é o meu conselheiro. Quando não sei o que
resolver, telefono para ele e ele diz. Sempre tem razão. A última
vez que pedi conselho foi sobre um contrato com editora estrangeira.
Talvez ele seja o único poeta com senso prático que eu conheço.
O
busto daquela minha amiga já morta, o que eu vou ou não ganhar, foi
feito por Ceschiatti. Ele tentou “fazer” a minha cabeça, quando
esteve hospedado lá em casa, em Berna. Eu me diverti muito em posar
porque, atrás da cabeça que ele esculpia, pedi licença para
esculpir uma mulher. Mas Ceschiatti não estava gostando da cabeça
que fazia de mim, e ele é um dos que precisam ficar satisfeitos com
o seu trabalho. Na Suíça nós tínhamos um terraço com lugar para
amontoar o carvão destinado a aquecer a casa no aquecedor não
elétrico que esta tinha. E Ceschiatti terminou jogando minha cabeça
no meio daquele carvão preto. Só perdoei porque ficou bonito e a
cabeça semirrachada entre pedaços de carvão rachado. A cabeça
ficou lá muito tempo com os olhos de estátua olhando para o céu.
Depois veio a neve forte, e o resultado era carvão preto, neve alva
e cabeça rachada. Ficou para sempre em mim essa imagem. Obrigada,
Ceschiatti, pela cabeça de que você não gostou, pelo carvão negro
e áspero, pela neve que caía em flocos silenciosos. Não sei quem
dos três era mais eu. A cabeça rachada de olhos fixos na neve que
caía do céu. Não, acho que era o carvão negro e preto e friável.
Friável tem ou não tem acento? Acho que tem.
No
domingo que se seguiu ao sábado do teatro apareceu em casa por uns
minutos José Américo Pessanha, professor de Filosofia. Uma aluna
dele pedira-lhe que me trouxesse duas páginas de perguntas sobre
mim. Não sei sequer tanto sobre mim, e além do mais estava de
saída. Por que fazem perguntas? Por que querem saber? Eu, por
exemplo, não quero mais.
Vou
terminar aqui porque hoje é sábado e estou, como disse, muito
fraca. Ser fraca também não é mau. Como vou ser muito falada por
causa dessa minha crônica. Mas não importa mais, sinceramente. E
não é por desprezo da opinião alheia. É porque talvez sábado de
manhã as coisas tenham uma importância extremamente relativa.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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