a
minha mãe não discernia senão sobre lidas da casa. estropiada do
pé, pouco capaz de ver, ficara inutilizada para as coisas dos
senhores, e eles já lá tinham a brunilde a fazer-lhes serviços de
interior, como nos contava ao descer aos legumes e ao leite.
a
minha mãe deixava de falar comigo e com o aldegundes, porque lhe
saíam coisas de mulher boca fora, e barafustar, como fazia, era
encher os ouvidos dos homens com ignorâncias perigosas. uma mulher é
ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada, explicava o meu
pai, ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças
e calada para não estragar os filhos com os seus erros. também para
não espalhar pela vizinhança a alma secreta da família, que há
coisas do decoro da casa que se devem confinar aos nossos. assim se
fazia a minha mãe, barafustando dia a dia, mas liberta das intenções
de nos educar coisas inúteis ou falsas, que fizessem de nós rapazes
menos homens ou simplesmente iludidos com um mundo que só as
mulheres imaginavam. o mundo que as mulheres imaginavam era torpe e
falacioso, viam coisas e convenciam-se de estupidez por opção, a
suspirarem em segredos inconfessáveis, cheias de vícios de sonho
como delírios de gente acordada, como se bebessem de mais ou
tivessem sido envenenadas por cobra má. era vê-las passar perto
umas das outras e perceber como ficavam alteradas, cacarejando
palavrões e rindo, felizes por arredadas dos homens e por se poderem
deliciar com semelhanças entre elas. as mulheres eram muito
perigosas, alimentavam os homens e podiam fazê-los comer pó que os
matasse. enviuvavam muito, apoderadas de si mesmas para se vingarem
de não terem razão. a minha mãe poderia fazê-lo em qualquer
altura, se enlouquecesse das ordens temíveis do meu pai e não
quisesse acatar bom senso a que poderia aceder. ela saberia fazê-lo,
um dia, e eu esperava-o a medo, vigiando-a, enquanto me apressava nas
tarefas de dom afonso e olhava para a nossa casa e a minha mãe
parando perto da sarga, a velha vaca. eu via-as como as duas
estranhas e loucas mulheres do meu pai.
mas
o meu pai ensinava-nos tudo a todos, e dava ares de quem se
regozijava por ter criado a brunilde, até ao dia em que a serviu de
idade para os senhores a usarem na casa, e para assim nos livrarmos
do espaço da cama dela e do diálogo constante e perigoso que traria
a sua cabeça de rapariga. também se regozijava por se achar seguro
na rotina que dava à minha mãe, apertada na mão dele a cada
deslize, reposta no respeito, e no juízo que, como mulher, podia
compreender. com tantos cuidados e muito senso, o meu pai acabava
gratificado pela força da sua vivacidade.
a
brunilde tinha onze anos quando foi para a casa. diziam que lhe
vinham as mamas tardava nada, preparava-se para ser leiteira. as
mulheres quando se tornavam leiteiras podiam aceder a maior
discernimento e os trabalhos a que se destinavam deviam ser
aproveitados de imediato. aos homens, dizia-se, se pudesse ser dado
maior ócio alguma coisa boa ainda podia vir, como artes várias,
destrezas na pintura por exemplo, como os frescos da capela dos
senhores nos provavam, feitos assim por jovem que se deu ao ócio
para isso lhe vir. mas às raparigas nada lhes dava o ócio, mesmo
para bordarem, tão parecidas com estarem a fazer nada, havia que
lhes dar severas lições, umas às outras, de outro modo trocariam
os pontos e o resultado dos seus trabalhos seriam estropícios sem
beleza, ofensivos para a dignidade das mesas. a minha mãe passou
muito tempo a ensinar à brunilde essas coisas que competiam às
mulheres e explicou-lhe coisas que o meu pai obrigava que não
ouvíssemos, nós os rapazes, coisas da vida delas, daquele corpo
belo mas condenado que carregavam, para terem de voltar atrás, para
se prenderem por uma perna à casa que habitavam, aflitas com ciclos
de maleitas que lhes eram naturais. era verdade que às raparigas
lhes davam maleitas por hábito, sem mais, para se castigarem de
inferioridade. à brunilde rebentou-lhe o meio das pernas em sangue,
um dia em que carregava palha para os animais. ficou assim encarnada
no meio do campo, a chamar a minha mãe em surdina e a dizer nojices
com as mãos nas suas partes da natureza. era assim como se
rebentasse um fruto maduro, um tomate que se desfizesse, e ali
ficasse a sair-lhe de dentro, a cheirar mal e a doer. a minha mãe
roubou-a dos nossos olhos, furiosa com o destino, e todos soubemos
que se cobririam uma à outra de segredos, semelhantes e porcas de
corpo, condenadas à inferioridade, à fraqueza. um corpo que as
obrigava, sem falta, a uma maleita reiterada, como um inimigo
habitando dentro delas, era o pior que se podia esperar, um empecilho
de toda a perfeição, e tão belas se deixavam quanto doloridas e
acossadas. por isso eram instáveis, temperamentais, aflitas de
coisas secretas e imaginárias, a prepararem vidas só delas sem
sentido à lógica. tinham artefactos e maneiras de parecer gente sem
quererem perder tudo o que deviam perder. eram, como sabíamos tão
bem, perigosas.
quando
os senhores a levaram, foi dom afonso quem disse que era moça de
valentia, haveriam de lhe dar aconchego nos afazeres, e só quando
fortalecesse o tronco, e as pernas segurassem melhor, teria afazeres
de grande responsabilidade. era o que ela confirmava quando vinha aos
legumes e ao leite. que era assim que fazia, deixada à deriva pela
casa, ao pó e carregando pequenos objectos, e falso seria porque o
tronco não se fortalecesse. eu percebera muito antes de que mo
dissesse, era para que se conservasse boa de aparências, com a pele
clara e as mãos ágeis, assim a queria o senhor para as sevícias
que lhe davam a ele, a esfregar-se e a meter-se nela pelos cantos da
casa, a tentar retribuir-se de tudo o que dona catarina, velha de
carnes, descaída e dada às maleitas, já não lhe oferecia. mais
tarde, ela passou a confirmar-mo e eu já nem lho perguntava. como
lhe dizia das minhas aventuras e de como me punha quente imaginar ser
tão poderoso e mandar a mim criadas de que pudesse desfrutar, ao
invés de atravessar os campos até à vizinhança para assaltar as
moças mais descaracterísticas no cuidado.
Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião
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