sábado, 14 de dezembro de 2024

o remorso de baltazar serapião | Dois



a minha mãe não discernia senão sobre lidas da casa. estropiada do pé, pouco capaz de ver, ficara inutilizada para as coisas dos senhores, e eles já lá tinham a brunilde a fazer-lhes serviços de interior, como nos contava ao descer aos legumes e ao leite.
a minha mãe deixava de falar comigo e com o aldegundes, porque lhe saíam coisas de mulher boca fora, e barafustar, como fazia, era encher os ouvidos dos homens com ignorâncias perigosas. uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada, explicava o meu pai, ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus erros. também para não espalhar pela vizinhança a alma secreta da família, que há coisas do decoro da casa que se devem confinar aos nossos. assim se fazia a minha mãe, barafustando dia a dia, mas liberta das intenções de nos educar coisas inúteis ou falsas, que fizessem de nós rapazes menos homens ou simplesmente iludidos com um mundo que só as mulheres imaginavam. o mundo que as mulheres imaginavam era torpe e falacioso, viam coisas e convenciam-se de estupidez por opção, a suspirarem em segredos inconfessáveis, cheias de vícios de sonho como delírios de gente acordada, como se bebessem de mais ou tivessem sido envenenadas por cobra má. era vê-las passar perto umas das outras e perceber como ficavam alteradas, cacarejando palavrões e rindo, felizes por arredadas dos homens e por se poderem deliciar com semelhanças entre elas. as mulheres eram muito perigosas, alimentavam os homens e podiam fazê-los comer pó que os matasse. enviuvavam muito, apoderadas de si mesmas para se vingarem de não terem razão. a minha mãe poderia fazê-lo em qualquer altura, se enlouquecesse das ordens temíveis do meu pai e não quisesse acatar bom senso a que poderia aceder. ela saberia fazê-lo, um dia, e eu esperava-o a medo, vigiando-a, enquanto me apressava nas tarefas de dom afonso e olhava para a nossa casa e a minha mãe parando perto da sarga, a velha vaca. eu via-as como as duas estranhas e loucas mulheres do meu pai.
mas o meu pai ensinava-nos tudo a todos, e dava ares de quem se regozijava por ter criado a brunilde, até ao dia em que a serviu de idade para os senhores a usarem na casa, e para assim nos livrarmos do espaço da cama dela e do diálogo constante e perigoso que traria a sua cabeça de rapariga. também se regozijava por se achar seguro na rotina que dava à minha mãe, apertada na mão dele a cada deslize, reposta no respeito, e no juízo que, como mulher, podia compreender. com tantos cuidados e muito senso, o meu pai acabava gratificado pela força da sua vivacidade.
a brunilde tinha onze anos quando foi para a casa. diziam que lhe vinham as mamas tardava nada, preparava-se para ser leiteira. as mulheres quando se tornavam leiteiras podiam aceder a maior discernimento e os trabalhos a que se destinavam deviam ser aproveitados de imediato. aos homens, dizia-se, se pudesse ser dado maior ócio alguma coisa boa ainda podia vir, como artes várias, destrezas na pintura por exemplo, como os frescos da capela dos senhores nos provavam, feitos assim por jovem que se deu ao ócio para isso lhe vir. mas às raparigas nada lhes dava o ócio, mesmo para bordarem, tão parecidas com estarem a fazer nada, havia que lhes dar severas lições, umas às outras, de outro modo trocariam os pontos e o resultado dos seus trabalhos seriam estropícios sem beleza, ofensivos para a dignidade das mesas. a minha mãe passou muito tempo a ensinar à brunilde essas coisas que competiam às mulheres e explicou-lhe coisas que o meu pai obrigava que não ouvíssemos, nós os rapazes, coisas da vida delas, daquele corpo belo mas condenado que carregavam, para terem de voltar atrás, para se prenderem por uma perna à casa que habitavam, aflitas com ciclos de maleitas que lhes eram naturais. era verdade que às raparigas lhes davam maleitas por hábito, sem mais, para se castigarem de inferioridade. à brunilde rebentou-lhe o meio das pernas em sangue, um dia em que carregava palha para os animais. ficou assim encarnada no meio do campo, a chamar a minha mãe em surdina e a dizer nojices com as mãos nas suas partes da natureza. era assim como se rebentasse um fruto maduro, um tomate que se desfizesse, e ali ficasse a sair-lhe de dentro, a cheirar mal e a doer. a minha mãe roubou-a dos nossos olhos, furiosa com o destino, e todos soubemos que se cobririam uma à outra de segredos, semelhantes e porcas de corpo, condenadas à inferioridade, à fraqueza. um corpo que as obrigava, sem falta, a uma maleita reiterada, como um inimigo habitando dentro delas, era o pior que se podia esperar, um empecilho de toda a perfeição, e tão belas se deixavam quanto doloridas e acossadas. por isso eram instáveis, temperamentais, aflitas de coisas secretas e imaginárias, a prepararem vidas só delas sem sentido à lógica. tinham artefactos e maneiras de parecer gente sem quererem perder tudo o que deviam perder. eram, como sabíamos tão bem, perigosas.
quando os senhores a levaram, foi dom afonso quem disse que era moça de valentia, haveriam de lhe dar aconchego nos afazeres, e só quando fortalecesse o tronco, e as pernas segurassem melhor, teria afazeres de grande responsabilidade. era o que ela confirmava quando vinha aos legumes e ao leite. que era assim que fazia, deixada à deriva pela casa, ao pó e carregando pequenos objectos, e falso seria porque o tronco não se fortalecesse. eu percebera muito antes de que mo dissesse, era para que se conservasse boa de aparências, com a pele clara e as mãos ágeis, assim a queria o senhor para as sevícias que lhe davam a ele, a esfregar-se e a meter-se nela pelos cantos da casa, a tentar retribuir-se de tudo o que dona catarina, velha de carnes, descaída e dada às maleitas, já não lhe oferecia. mais tarde, ela passou a confirmar-mo e eu já nem lho perguntava. como lhe dizia das minhas aventuras e de como me punha quente imaginar ser tão poderoso e mandar a mim criadas de que pudesse desfrutar, ao invés de atravessar os campos até à vizinhança para assaltar as moças mais descaracterísticas no cuidado.

Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião

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