quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

O que é um país senão uma sentença para toda a vida?


Reli o Diário de luto do Roland Barthes ontem, o livro que ele escreveu todo dia, por um ano, depois da morte da mãe. Conheci o corpo da minha mãe, ele escreve, doente e depois moribundo. E foi aí que eu parei. Foi aí que eu decidi te escrever. Você que ainda está viva.
Aqueles sábados no fim do mês quando, se tinha sobrado dinheiro depois de pagar as contas, a gente ia ao shopping. Tinha gente que punha as melhores roupas para ir à missa ou a jantares, a gente se arrumava todo para ir a um centro comercial perto da Interestadual 91. Você acordava cedo, passava uma hora se maquiando, punha o melhor vestido preto com lantejoulas, o único par de argolas de ouro, sapatos pretos de lamê. Depois você se ajoelhava e besuntava meu cabelo com um punhado de brilhantina, penteando-o.
Vendo nós dois ali, um desconhecido não ia adivinhar que a gente fazia compras na mercearia da esquina da avenida Franklin, onde a entrada ficava entulhada de tíquetes de vale-alimentação fornecidos pelo governo, onde produtos básicos como leite e ovos custavam o triplo do que custavam nos subúrbios, onde as maçãs, enrugadas e machucadas, ficavam numa caixa de papelão ensopada no fundo por conta do sangue de porco vazado da caixa de costelinhas suínas, o gelo há muito derretido.
Vamos comprar o chocolate chique”, você dizia, apontando para os Godivas. Nós saíamos com uma sacolinha de papel com uns cinco ou seis quadradinhos de chocolate escolhidos aleatoriamente. Várias vezes isso era a única coisa que a gente comprava no shopping. Depois a gente andava, passando chocolate de um para o outro até nossos dedos brilharem retintos e doces. “É assim que se aproveita a vida”, você dizia, chupando os dedos, o esmalte rosa descascando depois de uma semana trabalhando como pedicure.
A vez com os teus punhos, gritando no estacionamento, o sol do fim de tarde gravando em água-forte teus cabelos vermelhos. Meus braços protegendo minha cabeça enquanto as tuas juntas batiam em mim.
Naqueles sábados, a gente passeava pelos corredores até que, uma a uma, as lojas baixavam as portas de aço. Depois a gente ia até o ponto de ônibus descendo a rua, nossa respiração flutuando acima de nós, a maquiagem secando no teu rosto. Nossas mãos vazias, exceto por nossas mãos.

Da minha janela hoje de manhã, pouco antes do sol nascer, dava para ver um cervo parado numa neblina tão densa e brilhante que o segundo cervo, não muito longe, parecia uma sombra inacabada do primeiro.
Você pode colorir isso. Pode chamar de “A História da Memória”.

A migração pode ter como gatilho o ângulo do sol, indicando uma mudança de estação, temperatura, vida da flora e quantidade de alimentos disponível. As borboletas-monarcas fêmeas botam ovos pelo caminho. Toda história tem mais de um fio, todo fio é uma história de divisão. A viagem leva sete mil setecentos e setenta quilômetros, mais do que a extensão deste país. As monarcas que voam para o sul não voltarão para o norte. Toda partida, portanto, é definitiva. Só seus filhos voltarão; só o futuro revisita o passado.
O que é um país senão uma sentença sem fronteiras, uma vida?
Aquele dia no açougueiro chinês, você apontou para o porco assado pendurado no gancho. “Depois de queimar, as costelas são iguaizinhas às de uma pessoa.” Você deixou escapar uma risadinha entrecortada, pegou a carteira, o rosto tenso, e contou de novo nosso dinheiro.
O que é um país senão uma sentença para toda a vida?

Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante

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