Reli
o Diário de luto do Roland Barthes ontem, o livro que ele
escreveu todo dia, por um ano, depois da morte da mãe. Conheci o
corpo da minha mãe, ele escreve, doente e depois moribundo.
E foi aí que eu parei. Foi aí que eu decidi te escrever. Você que
ainda está viva.
Aqueles
sábados no fim do mês quando, se tinha sobrado dinheiro depois de
pagar as contas, a gente ia ao shopping. Tinha gente que punha as
melhores roupas para ir à missa ou a jantares, a gente se arrumava
todo para ir a um centro comercial perto da Interestadual 91. Você
acordava cedo, passava uma hora se maquiando, punha o melhor vestido
preto com lantejoulas, o único par de argolas de ouro, sapatos
pretos de lamê. Depois você se ajoelhava e besuntava meu cabelo com
um punhado de brilhantina, penteando-o.
Vendo
nós dois ali, um desconhecido não ia adivinhar que a gente fazia
compras na mercearia da esquina da avenida Franklin, onde a entrada
ficava entulhada de tíquetes de vale-alimentação fornecidos pelo
governo, onde produtos básicos como leite e ovos custavam o triplo
do que custavam nos subúrbios, onde as maçãs, enrugadas e
machucadas, ficavam numa caixa de papelão ensopada no fundo por
conta do sangue de porco vazado da caixa de costelinhas suínas, o
gelo há muito derretido.
“Vamos
comprar o chocolate chique”, você dizia, apontando para os
Godivas. Nós saíamos com uma sacolinha de papel com uns cinco ou
seis quadradinhos de chocolate escolhidos aleatoriamente. Várias
vezes isso era a única coisa que a gente comprava no shopping.
Depois a gente andava, passando chocolate de um para o outro até
nossos dedos brilharem retintos e doces. “É assim que se aproveita
a vida”, você dizia, chupando os dedos, o esmalte rosa descascando
depois de uma semana trabalhando como pedicure.
A
vez com os teus punhos, gritando no estacionamento, o sol do fim de
tarde gravando em água-forte teus cabelos vermelhos. Meus braços
protegendo minha cabeça enquanto as tuas juntas batiam em mim.
Naqueles
sábados, a gente passeava pelos corredores até que, uma a uma, as
lojas baixavam as portas de aço. Depois a gente ia até o ponto de
ônibus descendo a rua, nossa respiração flutuando acima de nós, a
maquiagem secando no teu rosto. Nossas mãos vazias, exceto por
nossas mãos.
Da
minha janela hoje de manhã, pouco antes do sol nascer, dava para ver
um cervo parado numa neblina tão densa e brilhante que o segundo
cervo, não muito longe, parecia uma sombra inacabada do primeiro.
Você
pode colorir isso. Pode chamar de “A História da Memória”.
A
migração pode ter como gatilho o ângulo do sol, indicando uma
mudança de estação, temperatura, vida da flora e quantidade de
alimentos disponível. As borboletas-monarcas fêmeas botam ovos pelo
caminho. Toda história tem mais de um fio, todo fio é uma história
de divisão. A viagem leva sete mil setecentos e setenta quilômetros,
mais do que a extensão deste país. As monarcas que voam para o sul
não voltarão para o norte. Toda partida, portanto, é definitiva.
Só seus filhos voltarão; só o futuro revisita o passado.
O
que é um país senão uma sentença sem fronteiras, uma vida?
Aquele
dia no açougueiro chinês, você apontou para o porco assado
pendurado no gancho. “Depois de queimar, as costelas são
iguaizinhas às de uma pessoa.” Você deixou escapar uma risadinha
entrecortada, pegou a carteira, o rosto tenso, e contou de novo nosso
dinheiro.
O
que é um país senão uma sentença para toda a vida?
Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante
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