[…]
Desde
os tempos da fundação, José Arcádio Buendía construía alçapões
e gaiolas. Em pouco tempo encheu de corrupiões, canários, azulões
e tiês-sangue não só a própria casa, mas todas as da aldeia. O
concerto de tantos pássaros diferentes chegou a ser tão atordoante
que Úrsula tapou os ouvidos com cera de abelha para não perder o
senso da realidade. A primeira vez que a tribo de Melquíades chegou
vendendo bolas de vidro para dor de cabeça, todo mundo se
surpreendeu que eles tivessem conseguido encontrar aquela aldeia
perdida no marasmo do pantanal, e os ciganos confessaram que tinham
se orientado pelo canto dos pássaros.
Aquele
espírito de iniciativa social desapareceu em pouco tempo, arrastado
pela febre dos ímãs, dos cálculos astronômicos, dos sonhos de
transmutação e das ânsias de conhecer as maravilhas do mundo. De
empreendedor e limpo, José Arcádio Buendía transformou-se num
homem de aspecto folgazão, descuidado no vestir, com uma barba
selvagem que Úrsula conseguia aparar a duras penas com uma faca de
cozinha. Não faltou quem o considerasse vítima de algum estranho
sortilégio. Mas até os mais convencidos de sua loucura abandonaram
trabalho e famílias para segui-lo quando jogou sobre os ombros suas
ferramentas de desbastar matos e bosques e pediu a participação de
todos para abrir uma picada que pusesse Macondo em contato com os
grandes inventos.
José
Arcádio Buendía ignorava por completo a geografia da região. Sabia
que para os lados do oriente estava a serra impenetrável, e do outro
lado da serra, a antiga cidade de Riohacha, onde em épocas passadas
— segundo havia contado a ele o primeiro Aureliano Buendía, seu
avô — sir Francis Drake se dava ao esporte de caçar jacarés a
tiros de canhão, que depois mandava remendar e rechear de palha e
despachava para a rainha Elizabeth. Na sua juventude, José Arcádio
e seus homens, com mulheres e crianças e animais e todo tipo de
utensílios domésticos, atravessaram a serra buscando uma saída
para o mar, e ao cabo de vinte e seis meses desistiram da aventura e
fundaram Macondo para não ter que empreender o caminho de volta.
Era, pois, um caminho que não lhe interessava, porque só podia
conduzir ao passado. Ao sul estavam as lagoas cobertas por uma eterna
nata vegetal e o vasto universo do pântano grande, que de acordo com
o depoimento dos ciganos carecia de limites. Esse pantanal se
confundia ao ocidente com uma extensão aquática sem horizontes,
onde havia cetáceos de pele delicada com cabeça e torso de mulher,
que faziam os navegantes se perderem com o feitiço de suas tetas
descomunais. Os ciganos navegavam seis meses por essa rota antes de
alcançar o cinturão de terra firme por onde passavam as mulas do
correio. De acordo com os cálculos de José Arcádio Buendía, a
única possibilidade de contato com a civilização era a rota do
norte. Por isso, entregou foices, machados, facões e armas de caça
aos mesmos homens que o acompanharam na fundação de Macondo, enfiou
numa mochila seus instrumentos de orientação e seus mapas, e
lançou-se à temerária aventura.
Nos
primeiros dias não encontraram obstáculo apreciável. Desceram pela
pedregosa ribeira do rio até o lugar onde anos antes haviam
encontrado a armadura do guerreiro, e por ali penetraram o bosque por
uma trilha de laranjeiras silvestres. No fim da primeira semana
mataram e assaram um veado, mas se conformaram em comer a metade e
salgar o resto para os próximos dias. Tratavam de adiar com essa
precaução a necessidade de continuar comendo araras, cuja carne
azul tinha um áspero sabor de almíscar. Depois, durante mais de dez
dias, não tornaram a ver o sol. O chão tornou-se mole e úmido,
feito cinza vulcânica, e a vegetação ficou cada vez mais insidiosa
e se fizeram cada vez mais distantes os gritos dos pássaros e a
algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens
da expedição sentiram-se angustiados por suas recordações mais
antigas naquele paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado
original, onde as botas afundavam em poços de óleo fumegante e os
facões destroçavam lírios sangrentos e salamandras douradas.
Durante uma semana, quase sem falar, avançaram como sonâmbulos por
um universo de desassossego, alumbrados apenas por uma tênue
reverberação de insetos luminosos e com os pulmões agoniados por
um sufocante cheiro de sangue. Não podiam regressar, porque a trilha
que abriam enquanto caminhavam tornava a se fechar num instante, com
uma vegetação nova que quase viam crescer diante de seus olhos.
“Não importa”, dizia José Arcádio Buendía. “O essencial é
não perder a direção.” Sempre atento à bússola, continuou
guiando seus homens rumo a um norte invisível, até que conseguiram
sair da região encantada. Era uma noite densa, sem estrelas, mas a
escuridão estava impregnada por um ar novo e limpo. Exauridos pela
longa travessia, dependuraram suas redes e dormiram pesado pela
primeira vez em duas semanas. Quando despertaram, já com o sol alto,
ficaram pasmos de fascinação. Diante deles, rodeado de samambaias e
palmeiras, branco e empoeirado na silenciosa luz da manhã, estava um
enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de
seus mastros intactos pendiam fiapos esquálidos do velame, entre
cordoalhas adornadas por orquídeas. O casco, tapado por uma
resplandecente couraça de rêmoras petrificadas e musgo tenro,
estava firmemente cravado num solo de pedras. Toda a estrutura
parecia ocupar um âmbito próprio, um espaço de solidão e de
esquecimento, vedado aos vícios do tempo e aos costumes dos
pássaros. No interior, que os expedicionários exploraram com um
fervor sigiloso, não havia nada além de um espesso bosque de
flores.
Achar
o galeão, indício da proximidade do mar, estraçalhou o ímpeto de
José Arcádio Buendía. Considerava uma ironia de seu travesso
destino ter buscado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios
e penas sem conta, e ter encontrado o mar sem buscá-lo, atravessado
em seu caminho como um obstáculo invencível. Muitos anos depois, o
coronel Aureliano Buendía tornou a atravessar a região, quando já
era uma rota regular do correio, e a única coisa que encontrou do
galeão foi o esqueleto carbonizado no meio de um campo de amapolas.
Só então, convencido de que aquela história não tinha sido uma
artimanha da imaginação de seu pai, se perguntou como o galeão
tinha conseguido entrar até aquele ponto na terra firme. Mas José
Arcádio Buendía não teve essa inquietação quando encontrou o
mar, depois de outros quatro dias de viagem, a doze quilômetros de
distância do galeão. Seus sonhos terminavam diante daquele mar cor
de cinza, espumoso e sujo, que não merecia os riscos e sacrifícios
de sua aventura.
— Caralho!
— gritou. — Macondo está cercada de água por todos os lados.
A
ideia de uma Macondo peninsular prevaleceu durante muito tempo,
inspirada no mapa arbitrário que José Arcádio Buendía desenhou
quando regressou de sua expedição. Traçou-o com raiva, exagerando
de má-fé as dificuldades de comunicação, como castigando-se a si
mesmo pela absoluta falta de noção com que escolhera o destino da
sua marcha. “Nunca chegaremos a nenhum lugar”, lamentava-se para
Úrsula. “Aqui vamos apodrecer em vida, sem receber os benefícios
da ciência.” Essa certeza, ruminada vários meses no quartinho do
laboratório, levou-o a conceber o projeto de levar Macondo para um
lugar mais propício. Só que desta vez Úrsula se antecipou aos seus
desígnios febris. Num secreto e implacável trabalho de formiguinha
ela predispôs as mulheres da aldeia contra as veleidades de seus
homens, que já começavam a se preparar para as mudanças. José
Arcádio Buendía não soube em que momento, nem graças a que forças
adversas, seus planos foram se enredando em um emaranhado de
pretextos, contratempos e evasivas, até se converterem em pura e
simples ilusão. Úrsula observou-o com uma atenção inocente e até
chegou a sentir por ele um pouco de piedade, na manhã em que o
encontrou no quartinho dos fundos comentando entre dentes seus sonhos
de mudança, enquanto colocava nas caixas originais as peças do
laboratório. Deixou que ele terminasse. Deixou que pregasse as
caixas e com um pincel lambuzado de tinta pusesse suas iniciais em
cima, sem fazer reparo algum, mas já sabendo que ele sabia (porque
ouviu o que ele dizia em seus monólogos surdos) que os homens da
aldeia não o seguiriam em sua aventura. Só quando começou a
desmontar a porta do quartinho Úrsula se atreveu a perguntar por que
estava fazendo aquilo, e ele respondeu com uma certa amargura: “Já
que ninguém quer ir embora, vamos sozinhos.” Úrsula não se
alterou.
— Não
vamos não — disse ela. — Nós ficamos aqui, porque aqui tivemos
um filho.
— Mas
ainda não temos um morto — disse ele. — E a gente não é de
lugar nenhum enquanto não tem um morto debaixo da terra deste lugar.
Úrsula
replicou, com uma suave firmeza:
— Pois
se for preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, então eu
morro.
José
Arcádio Buendía não acreditou que fosse tão rígida a vontade da
sua mulher. Tratou de seduzi-la com o feitiço da sua fantasia, com a
promessa de um mundo prodigioso onde bastava jogar uns líquidos
mágicos na terra para que as plantas dessem frutos de acordo com a
vontade dos homens, e onde se vendia por quase nada todo tipo de
artefato contra a dor. Mas Úrsula foi insensível à sua
clarividência.
— Em
vez de andar pensando em suas maluquices fantasiosas, você devia é
cuidar dos seus filhos — replicou. — Olha só como estão,
largados de mão feito os burros.
José
Arcádio Buendía tomou ao pé da letra as palavras de sua mulher.
Olhou pela janela e viu os dois meninos descalços na horta
ensolarada, e teve a impressão de que só naquele instante haviam
começado a existir, concebidos pelo pedido determinado de Úrsula.
Alguma coisa então aconteceu dentro dele; algo misterioso e
definitivo que o desenraizou do tempo presente levou-o à deriva por
uma região inexplorada de recordações. Enquanto Úrsula continuava
varrendo a casa que agora tinha certeza de não abandonar pelo resto
da vida, ele permanecia contemplando os meninos com um olhar absorto,
até que os olhos se umedeceram e ele os secou com o dorso da mão, e
exalou um profundo suspiro de resignação.
— Bom
— falou. — Diga a eles que venham me ajudar a tirar as coisas dos
caixotes.
José
Arcádio, o mais velho dos meninos, havia feito catorze anos. Tinha a
cabeça quadrada, os cabelos espessos e emaranhados e a personalidade
voluntariosa do pai. Embora tivesse o mesmo impulso de crescimento e
solidez, já naquele tempo era evidente que carecia de imaginação.
Foi concebido e dado à luz durante a penosa travessia da serra,
antes da fundação de Macondo, e seus pais deram graças aos céus
ao comprovar que não tinha nenhum órgão de animal. Aureliano, o
primeiro ser humano que nascera em Macondo, ia completar seis anos em
março. Era silencioso e retraído. Tinha chorado no ventre de sua
mãe e nasceu com os olhos abertos. Enquanto cortavam seu umbigo
movia a cabeça de um lado a outro reconhecendo as coisas do quarto,
e examinava o rosto das pessoas com uma curiosidade sem assombro.
Depois, indiferente aos que chegavam perto para conhecê-lo, manteve
a atenção concentrada no teto de sapé, que parecia a ponto de
desmoronar debaixo da tremenda pressão da chuva. Úrsula não tornou
a se lembrar da intensidade daqueles olhares até o dia em que o
pequeno Aureliano, na idade de três anos, entrou na cozinha no
momento em que ela retirava do fogão e punha na mesa uma panela de
barro com caldo fervendo. O menino, perplexo na porta, disse: “Vai
cair.” A panela estava bem posta no centro da mesa, mas assim que o
menino deu o anúncio, começou um movimento irremediável rumo à
borda, como impulsionada por um dinamismo interior, e se espatifou no
chão. Úrsula, alarmada, contou o episódio ao marido, que o
interpretou como sendo um fenômeno natural. Assim foi sempre, alheio
à existência de seus filhos, em parte porque considerava a infância
um período de insuficiência mental, em parte porque estava sempre
absorto demais em suas próprias especulações quiméricas.
Mas
desde a tarde em que chamou os meninos para ajudá-lo a desempacotar
as coisas do laboratório, dedicou a eles suas melhores horas. No
quartinho afastado, cujas paredes foram se enchendo pouco a pouco de
mapas inverossímeis e gráficos fabulosos, ensinou-os a ler e a
escrever e a fazer contas, e falou a eles das maravilhas do mundo não
apenas até onde iam seus conhecimentos, mas forçando a extremos
incríveis os limites de sua imaginação. Foi assim que os meninos
acabaram aprendendo que no extremo meridional da África havia homens
tão inteligentes e pacíficos que sua única distração era sentar
e pensar, e que era possível atravessar a pé o mar Egeu saltando de
ilha em ilha até o porto de Salônica. Aquelas sessões alucinantes
ficaram de tal modo impressas na memória dos meninos que, muitos
anos mais tarde, um segundo antes que o oficial dos exércitos
regulares desse a ordem de fogo ao pelotão de fuzilamento, o coronel
Aureliano Buendía tornou a viver a tarde morna de março em que seu
pai interrompeu a lição de física e ficou fascinado, com a mão no
ar e os olhos imóveis, ouvindo à distância os pífanos e tambores
e pandeiros dos ciganos que uma vez mais chegavam à aldeia,
apregoando o último e assombroso descobrimento dos sábios de
Mênfis.
Eram
ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só conheciam a própria
língua, exemplares formosos de pele oleosa e mãos inteligentes,
cujas danças e músicas semearam nas ruas um pânico de alvoroçada
alegria, com seus papagaios pintados de todas as cores que recitavam
romanças, e a galinha que punha uma centena de ovos de ouro ao som
da pandeireta, e o mico amestrado que adivinhava o pensamento, e a
máquina múltipla que servia ao mesmo tempo para pregar botões e
baixar a febre, e o aparelho para esquecer as más lembranças, e o
emplastro para enganar o tempo, e um milhar de invenções a mais,
tão engenhosas e insólitas que José Arcádio Buendía bem que
gostaria de inventar a máquina da memória para poder se lembrar de
todas elas. Num instante transformaram a aldeia. Os habitantes de
Macondo se encontraram de repente perdidos em suas próprias ruas,
aturdidos pela feira multitudinária.
Levando
um menino em cada mão para não perdê-los no tumulto, tropeçando
com saltimbancos de dentes encouraçados de ouro e malabaristas de
seis braços, sufocado pelo confuso bafo de esterco e sândalo que a
multidão exalava, José Arcádio Buendía andava feito louco
buscando Melquíades em todas as partes, para que lhe revelasse os
infinitos segredos daquele pesadelo fabuloso. Dirigiu-se a vários
ciganos que não entenderam sua língua. Finalmente chegou até o
lugar onde Melquíades costumava plantar sua tenda, e encontrou um
armênio taciturno que anunciava em castelhano um xarope para se
tornar invisível. Havia tomado de um golpe só uma taça da
substância ambarina, quando José Arcádio Buendía abriu caminho
aos empurrões entre o grupo absorto que presenciava o espetáculo e
conseguiu fazer a pergunta. O cigano envolveu-o no clima atônito de
seu olhar, antes de se transformar num charco de alcatrão pestilento
e fumegante sobre o qual ficou flutuando a ressonância de sua
resposta: “Melquíades morreu.” Aturdido pela notícia, José
Arcádio Buendía permaneceu imóvel, tratando de superar a aflição,
até que o grupo se dispersou convocado por outros artifícios e o
charco do armênio taciturno se evaporou por completo. Mais tarde,
outros ciganos confirmaram que de fato Melquíades havia sucumbido às
febres nas dunas de Singapura, e que seu corpo havia sido arrojado no
lugar mais profundo do mar de Java. Os meninos não se interessaram
pela notícia. Estavam obstinados em que seu pai os levasse para
conhecer a portentosa novidade dos sábios de Mênfis, anunciada na
entrada de uma tenda que, pelo que diziam, tinha pertencido ao rei
Salomão. Tanto insistiram, que José Arcádio Buendía pagou os
trinta pesos e os conduziu até o centro da tenda, onde havia um
gigante de torso peludo e cabeça raspada, com um anel de cobre no
nariz e uma pesada corrente de ferro no tornozelo, custodiando um
cofre de pirata. Ao ser destapado pelo gigante, o cofre deixou
escapar um hálito glacial. Dentro só havia um enorme bloco
transparente, com infinitas agulhas internas nas quais a claridade do
crepúsculo se despedaçava em estrelas coloridas. Desconcertado,
sabendo que os meninos esperavam uma explicação imediata, José
Arcádio Buendía atreveu-se a murmurar:
— É
o maior diamante do mundo.
— Não
— corrigiu o cigano. — É gelo.
José
Arcádio Buendía, sem entender, estendeu a mão até o bloco de
gelo, mas o gigante não deixou. “Para tocar, são mais cinco
pesos”, disse. José Arcádio Buendía pagou, e então pôs a mão
sobre o gelo, e a manteve por vários minutos, enquanto seu coração
se inchava de temor e de júbilo graças ao contato com o mistério.
Sem saber o que dizer, pagou mais dez pesos para que seus filhos
vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Arcádio se negou
a tocar. Aureliano, porém, deu um passo adiante, pôs a mão e a
retirou no ato. “Está fervendo”, exclamou assustado. Mas seu pai
não prestou atenção. Embriagado pela evidência do prodígio,
naquele momento esqueceu a frustração de seus empreendimentos
delirantes e o corpo de Melquíades abandonado ao apetite das lulas.
Pagou mais cinco pesos e, com a mão no bloco de gelo, como que
prestando um depoimento e jurando sobre o texto sagrado, exclamou:
— Este
é o grande invento do nosso tempo.
Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão
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