segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

No espelho da natureza

— Um homem não se acha descrito com exatidão, quando ouvimos que ele gosta de andar por altos campos de trigo amarelo, que prefere as cores das florestas e das flores do outono amarelecido e caduco, por elas insinuarem coisas mais belas do que a natureza jamais alcançou, que ele se sente em casa sob grandes nogueiras de espessas folhas, como entre parentes próximos, que a sua maior alegria, estando nas montanhas, é encontrar os pequenos lagos afastados, dos quais a solidão mesma parece contemplá-lo, que ele ama a cinzenta paz do nevoento crepúsculo que em noites de outono e princípio de inverno se aproxima das janelas e envolve, como cortina de veludo, todo ruído inanimado, que ele sente as rochas brutas como testemunhos do passado desejosos de falar e as venera desde criança, e, por fim, que o mar, com sua movediça pele de serpente e sua beleza de fera, é e sempre lhe será estranho? — Sim, alguma coisa desse homem foi descrita, certamente; mas o espelho da natureza nada diz sobre o fato de que o mesmo homem, com toda a sua idílica sensibilidade (e não “apesar dela”), poderia ser bastante frio, mesquinho e presunçoso. Horácio, que entendia de tais coisas, pôs o mais delicado sentimento pelo campo na boca de um agiota romano, no famoso verso “beatus ille qui procul negotiis” [feliz aquele que, longe das ocupações...].

Friedrich Nietzsche, em Humano, demasiado humano

Nenhum comentário:

Postar um comentário