terça-feira, 24 de dezembro de 2024

“Eu tenho que comprar mais pão”


Num esboço anterior desta carta, que acabei deletando, eu te contei como virei escritor. Como eu, o primeiro de nossa família a ir para a faculdade, desperdicei a chance com um diploma de Letras. Como fugi da minha escola secundária de merda para passar meus dias em Nova York perdido em pilhas de livros em bibliotecas, lendo textos obscuros escritos por gente morta, que, em sua maioria, jamais sonhou em ter alguém com um rosto como o meu sobrevoando suas frases – e menos ainda que aquelas frases iriam me salvar. Mas nada disso importa agora. O que importa é que tudo isso, mesmo que eu não soubesse na época, me trouxe até aqui, até esta página, para te contar tudo que você jamais vai saber.
O que aconteceu é que um dia eu fui um menino, e um menino intacto. Eu tinha oito anos quando fiquei parado no apartamento de um quarto em Hartford olhando para o rosto adormecido da vó Lan. Apesar de ser tua mãe, ela não se parece nada com você; a pele é três tons mais escura, da cor da terra depois da chuva, estendida sobre um rosto esquelético cujos olhos brilhavam como vidro lascado. Não sei dizer o que me fez deixar a pilha de soldadinhos verdes e ir andando até onde ela estava, debaixo de uma coberta sobre o piso de madeira, braços cruzados sobre o peito. Os olhos se moviam sob as pálpebras enquanto ela dormia. A testa, açoitada por linhas profundas, assinalava seus cinquenta e seis anos. Uma mosca pousou ao lado da boca, depois deslizou para a beira dos lábios arroxeados. A bochecha esquerda fez um espasmo por segundos. A pele, com grandes marcas negras de pústulas, se agitava à luz do sol. Eu nunca tinha visto tanto movimento durante o sono antes – exceto por cães que correm nos sonhos, nenhum de nós jamais vai ver.
Mas era a imobilidade, percebo agora, que eu buscava, não do corpo dela, que continuava funcionando enquanto ela dormia, mas da mente. Somente nessas contrações silenciosas o cérebro dela, selvagem e explosivo enquanto estava acordada, resfriava e se transformava em algo semelhante à calma. Estou olhando uma desconhecida, pensei, cujos lábios se enrugavam numa expressão de contentamento estranha à Lan que eu conhecia acordada, aquela cujas frases saíam lentas e nervosas, a esquizofrenia pior ainda depois da guerra. Mas eu sempre a conheci selvagem. Desde que me lembro, ela tremeluzia diante de mim, mergulhando na sensatez e depois saindo dela. E era por isso que estudá-la agora, tranquila à luz da tarde, era como observar um tempo passado.
Um olho abriu. Envolto por uma película leitosa de sono, se arregalou para conter minha imagem. Fiquei frente a frente comigo mesmo, fixo pelos raios de luz que passavam pela janela. Então o segundo olho abriu, esse ligeiramente róseo, porém mais claro. “Com fome, Cachorrinho?”, ela perguntou, o rosto sem expressão, como se ainda dormisse.
Fiz que sim com a cabeça.
O que a gente devia comer num tempo desse?” Ela fez um gesto abrangendo a sala.
Uma pergunta retórica, decidi, e mordi meu lábio.
Mas eu estava errado. “Eu disse O que a gente pode comer?” Ela sentou, os cabelos que iam até os ombros espalhados atrás dela como se ela fosse um personagem de desenho animado que acabou de ser detonado com TNT. Ela engatinhou, se acocorou diante dos soldadinhos de brinquedo, pegou um da pilha, segurou entre os dedos, e analisou. As unhas, perfeitamente pintadas e feitas por você, com a tua precisão de costume, eram a única coisa imaculada nela. Distintas e com um brilho de rubi, se destacavam das articulações calejadas e rachadas enquanto ela segurava o soldado, um operador de rádio, e o examinava como se fosse um artefato recém-desenterrado.
Com um rádio nas costas, o soldado está com um joelho no chão, gritando eternamente no receptor. O uniforme sugere que ele combate na Segunda Guerra Mundial. “Quem você ser, messeur?”, ela pergunta ao sujeito de plástico numa mistura truncada de idiomas. Num só movimento, ela colocou o rádio dele na orelha e escutou atenta, olhando para mim. “Sabe o que estão me contando, Cachorrinho?”, ela sussurrou em vietnamita. “Eles dizem...” Ela mergulhou a cabeça para um lado, se encostou em mim, seu hálito uma mescla de xarope para tosse Ricola e o aroma de carne do sono, a cabeça do homenzinho verde engolida pela sua orelha. “Dizem que bons soldados só vencem quando são alimentados pela avó.” Ela deixou escapar uma única risadinha entrecortada, depois parou, repentinamente sem expressão, e colocou o homem do rádio na minha mão, fechando meus dedos sobre a palma. E do nada levantou e foi para a cozinha, os chinelos batendo atrás dela. Agarrei a mensagem, as antenas plásticas machucando a palma da minha mão enquanto o som do reggae, abafado pelas paredes de um vizinho, entrava na sala.

Eu tenho e tive muitos nomes. Cachorrinho foi o nome que a Lan me deu. Que tipo de mulher dá nomes de flores para si e para a filha e depois chama o neto de cachorro? Uma mulher que cuida dos seus. Como você sabe, no vilarejo em que a Lan se criou, muitas vezes o menor ou mais fraco do grupo, como era meu caso, ganhava o nome das coisas mais desprezíveis: diabo, criança fantasma, focinho de porco, macaquinho, cabeça de búfalo, bastardo – deles todos, cachorrinho era o mais suave. Porque espíritos malignos, vagando pelo local em busca de crianças saudáveis, bonitas, ouviriam o nome de algo medonho sendo chamado para o jantar e passariam por cima da casa, poupando a criança. Amar algo, portanto, é dar a ela o nome de algo tão sem valor que pode ser deixado incólume – e vivo. Um nome, tênue como o ar, pode também ser um escudo. Um escudo de Cachorrinho.

Sentei nas lajotas da cozinha e fiquei vendo a Lan colocar duas montanhas de arroz fervendo numa tigela de porcelana com detalhes de videira em índigo. Ela pegou um bule e derramou chá de jasmim sobre o arroz, só o suficiente para alguns grãos flutuarem no pálido líquido âmbar. Sentados no chão, passamos a tigela cheirosa e fervente de um para o outro. O gosto é o que você imaginaria terem flores amassadas – amargo e seco, deixando depois um sabor de brilho e doçura. “Genuína comida de camponês”, Lan sorriu. “Isso é nossa fast food, Cachorrinho. O nosso McDonald’s!” Ela inclinou o corpo e deixou sair um peido gigante. Segui o exemplo e soltei um também, e nós dois rimos de olhos fechados. Depois ela parou. “Coma tudo.” Ela apontou com o queixo para a tigela. “Cada grão que você deixar para trás é uma larva que você vai comer no inferno.” Ela tirou o elástico que estava no pulso e prendeu o cabelo num coque.
Dizem que o trauma afeta não só o cérebro, mas também o corpo, as articulações e a postura. As costas da Lan ficavam perpetuamente encurvadas – a tal ponto que eu mal conseguia ver sua cabeça quando ela ficava de pé na pia. Só se via o cabelo preso atrás, sacudindo enquanto ela esfregava.
Ela olhou para a prateleira da despensa, vazia a não ser por um pote solitário de manteiga de amendoim já pela metade. “Eu tenho que comprar mais pão".

Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante

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