Há
quase três meses terminava um importante capítulo do caso da ficha
limpa no STF: o tribunal, por 6 votos a 5, entendeu que a referida
lei não se aplica às eleições de 2010. Na Folha de S.Paulo,
duas reações vieram à tona. Eliane Cantanhêde entendeu que a
decisão representava “a vitória da lei, da experiência e da
técnica jurídica sobre o apelo fácil da demagogia”. Para ela, o
grupo dos seis ministros não teria se curvado, tal como os outros
cinco, ao “clamor popular e do aplauso fácil”. Teria tido a
“coragem de enfrentar as câmeras e as críticas”. Páginas
adiante, Joaquim Falcão oferecia leitura mais comedida. Explicava
que a controvérsia diz respeito à escolha entre dois artigos
constitucionais que levaram, respectivamente, a duas posições
opostas no caso. Aplicar a Constituição, para ele, é “ato de
vontade do ministro. […] Há flexibilidade interpretativa”.
O
contraste entre as duas reações é ilustrativo. A primeira evoca um
mito tão antigo e universal quanto persistente sobre o estado de
direito. Segundo esse mal-entendido, caberia ao juiz deixar suas
inclinações de lado e respeitar a letra da lei, um ato certo e
mecânico. Virtude e preparo técnico, assim, seriam suficientes para
que a “verdadeira resposta” seja descoberta nas entrelinhas do
texto legal, sem interferência da vontade. Essa visão é
conveniente para os dois lados: de um, o juiz deixa de ser inquirido
pelas escolhas interpretativas que faz, pois as apresenta como
resultados naturais da técnica jurídica não dominada pelo público
leigo; de outro, o público leigo se vê dispensado da árdua tarefa
de ler as decisões, pois, a não ser que o juiz seja desonesto, elas
corresponderiam ao comando único da lei. Juízes virtuosos e bem
treinados, portanto, bastariam para a saúde dessa engrenagem.
Há
poucos dias, de forma unânime, o STF determinou a extensão da união
estável para casais homossexuais. Celebramos o avanço, uma custosa
e demorada vitória dos direitos individuais sobre a inércia crônica
e mal fundamentada do Congresso. Sobretudo mal fundamentada.
O
STF está dividido no primeiro caso e unido no segundo. Cabe agora
refletir sobre o significado dessa diferença e acompanhar como o
Congresso reagirá nos dois casos. Não foi o bem que venceu o mal,
nem a técnica jurídica que prevaleceu sobre o casuísmo medroso,
populista ou intolerante. A “letra da lei”, em ambos os casos,
não é óbvia. Ao contrário, ela acaba de ser (e continuará a ser)
escrita pelo próprio tribunal, por mais curioso que possa parecer.
Não teremos um debate maduro sobre nossa jurisprudência
constitucional enquanto não percebermos essa característica
elementar.
Rejeitar
aquele confortável mito do juiz que faz valer a “letra da lei”
traz desafios importantes para a prática do jornalismo judicial, da
pesquisa acadêmica e para o exercício da própria cidadania.
Decisões do STF podem e devem ser elogiadas ou criticadas, mas há
maneiras mais ricas e inteligentes de fazê-lo. Argumento jurídico
não é um detalhe decorativo com o qual enfeitamos nossas
preferências políticas, mas raramente será mera repetição do
texto legal. Somente avaliando os argumentos que os ministros
apresentaram em cada caso, entre tantos outros da agenda do STF,
avançaremos na discussão. E os argumentos “derrotados” merecem
tanta consideração quanto os “vitoriosos”. Se forem, de fato,
argumentos.
31
de maio de 2011
Conrado Hübner Mendes, em O discreto charme da magistocracia – Vícios e disfarces do judiciário brasileiro

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