segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Entre heróis e demagogos?


Há quase três meses terminava um importante capítulo do caso da ficha limpa no STF: o tribunal, por 6 votos a 5, entendeu que a referida lei não se aplica às eleições de 2010. Na Folha de S.Paulo, duas reações vieram à tona. Eliane Cantanhêde entendeu que a decisão representava “a vitória da lei, da experiência e da técnica jurídica sobre o apelo fácil da demagogia”. Para ela, o grupo dos seis ministros não teria se curvado, tal como os outros cinco, ao “clamor popular e do aplauso fácil”. Teria tido a “coragem de enfrentar as câmeras e as críticas”. Páginas adiante, Joaquim Falcão oferecia leitura mais comedida. Explicava que a controvérsia diz respeito à escolha entre dois artigos constitucionais que levaram, respectivamente, a duas posições opostas no caso. Aplicar a Constituição, para ele, é “ato de vontade do ministro. […] Há flexibilidade interpretativa”.
O contraste entre as duas reações é ilustrativo. A primeira evoca um mito tão antigo e universal quanto persistente sobre o estado de direito. Segundo esse mal-entendido, caberia ao juiz deixar suas inclinações de lado e respeitar a letra da lei, um ato certo e mecânico. Virtude e preparo técnico, assim, seriam suficientes para que a “verdadeira resposta” seja descoberta nas entrelinhas do texto legal, sem interferência da vontade. Essa visão é conveniente para os dois lados: de um, o juiz deixa de ser inquirido pelas escolhas interpretativas que faz, pois as apresenta como resultados naturais da técnica jurídica não dominada pelo público leigo; de outro, o público leigo se vê dispensado da árdua tarefa de ler as decisões, pois, a não ser que o juiz seja desonesto, elas corresponderiam ao comando único da lei. Juízes virtuosos e bem treinados, portanto, bastariam para a saúde dessa engrenagem.
Há poucos dias, de forma unânime, o STF determinou a extensão da união estável para casais homossexuais. Celebramos o avanço, uma custosa e demorada vitória dos direitos individuais sobre a inércia crônica e mal fundamentada do Congresso. Sobretudo mal fundamentada.
O STF está dividido no primeiro caso e unido no segundo. Cabe agora refletir sobre o significado dessa diferença e acompanhar como o Congresso reagirá nos dois casos. Não foi o bem que venceu o mal, nem a técnica jurídica que prevaleceu sobre o casuísmo medroso, populista ou intolerante. A “letra da lei”, em ambos os casos, não é óbvia. Ao contrário, ela acaba de ser (e continuará a ser) escrita pelo próprio tribunal, por mais curioso que possa parecer. Não teremos um debate maduro sobre nossa jurisprudência constitucional enquanto não percebermos essa característica elementar.
Rejeitar aquele confortável mito do juiz que faz valer a “letra da lei” traz desafios importantes para a prática do jornalismo judicial, da pesquisa acadêmica e para o exercício da própria cidadania. Decisões do STF podem e devem ser elogiadas ou criticadas, mas há maneiras mais ricas e inteligentes de fazê-lo. Argumento jurídico não é um detalhe decorativo com o qual enfeitamos nossas preferências políticas, mas raramente será mera repetição do texto legal. Somente avaliando os argumentos que os ministros apresentaram em cada caso, entre tantos outros da agenda do STF, avançaremos na discussão. E os argumentos “derrotados” merecem tanta consideração quanto os “vitoriosos”. Se forem, de fato, argumentos.
31 de maio de 2011

Conrado Hübner Mendes, em O discreto charme da magistocracia – Vícios e disfarces do judiciário brasileiro

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