segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Do outro lado do rio, entre as árvores | 2


Contudo, ele não era um rapaz. Tinha cinquenta anos, era um coronel de infantaria do Exército dos Estados Unidos e, para se submeter a um exame médico obrigatório, na véspera de sua vinda a Veneza para essa caçada, tomara uma quantidade de hexanitrato de manitol suficiente para… Para o quê? Ele não sabia exatamente o motivo… Para ser aprovado no exame, era o que dizia para si mesmo.
O médico mostrara-se um tanto cético, mas tomou nota da sua pressão, depois de tirá-la duas vezes. Ele disse:
Quer saber, Dick? Não é indicado. Para ser franco, é até categoricamente contraindicado em casos de pressão intraocular e intracraniana aumentada.
Mas do que é que você está falando? — redarguiu o caçador, que então não era um caçador, a não ser em estado potencial, e sim um coronel de infantaria do Exército dos Estados Unidos, posto a que voltara depois de ter sido general comissionado.
Já faz bastante tempo que o conheço, coronel. Ou pelo menos me parece que já faz bastante tempo — disse-lhe o médico.
Claro que faz! — concordou o coronel.
Até parece que estamos compondo canções… — observou o médico. — Mas uma coisa lhe digo… Se você está conduzindo um veículo lotado de nitroglicerina, não deve bater em nada, nem deixar que uma centelha o atinja. É sempre preferível rodar com proteções extras, como fazem aqueles caminhões mais potentes.
O meu eletro não estava normal? — perguntou o coronel.
Estava ótimo, coronel. Poderia ser o eletrocardiograma de um homem de vinte e cinco anos. De um rapaz de dezenove.
Então do que é que você está falando? — perguntou o coronel.
Tomar todo aquele hexanitrato de manitol deixava qualquer um nauseado, e era por isso que ele estava aflito para que a consulta terminasse. Também estava ansioso para se deitar e tomar um seconal. Ele pensou: “Eu devia escrever o manual da tática de rotina para o esquadrão da pressão alta. Pena que não posso lhe contar isso. Por que não me sujeito logo à misericórdia dos juízes? Ora, nunca fazemos isso. Rogamos sempre que nos absolvam…”
Quantas vezes foi ferido na cabeça? — perguntou o médico.
Mas, não sabe? Sirvo no 201.
Quantas vezes foi ferido na cabeça?
Oh! Cristo! — Depois indagou: — Está perguntando como meu médico ou por algum motivo militar?
Pergunto como seu médico. Ou você acha que deveria me limitar a ajustar você como se fosse um relógio?
Não, não acho, ora… Afinal, você quer saber o quê?
Se teve comoções cerebrais.
Autênticas?
Qualquer ocasião em que tenha ficado sem sentidos ou algo que, depois, não conseguia recordar.
Umas dez vezes, acho. Contando com o polo. Mas podem ter sido umas três vezes mais… ou menos.
Seu grande patife! — E rapidamente acrescentou: — Quer dizer, coronel… senhor!
Posso ir?
Pode, sim. Está em boa forma.
Obrigado. Quer vir comigo caçar patos nos mangues da desembocadura do Tagliamento? Uma esplêndida caçada. Uns ótimos camaradas italianos que encontrei em Cortina falaram tão bem de lá que…
É onde caçam frangos-d’água?
Não. Onde vou só se caçam patos. Ótimos rapazes. Ótima caçada. Caça de verdade. Patos selvagens, marrecos, adens. Alguns gansos. Tão bom como em nossa terra, quando éramos rapazolas.
Entre 1929 e 1930, eu era um garoto.
Essa é a primeira coisa maldosa que já escutei de você.
Você não entendeu o que eu quis dizer. Disse que não podia me lembrar do tempo em que me divertia caçando patos. Aliás, fui garoto de cidade.
Ora, aí está o seu ponto fraco. Nunca vi um garoto de cidade que desse para alguma coisa boa na vida.
Está sendo sincero, coronel?
Claro que não. Sabe muito bem que não!
Está em boa forma, coronel — afirmou o médico. — Lamento não poder tomar parte nessa sua caçada, mas nem mesmo sei atirar.
Grande coisa! — replicou o coronel. — E quem é que sabe atirar aqui nessa tropa? Eu gostaria é de ter a sua companhia.
Vou receitar mais alguma coisa para reforçar o que está usando.
Achou alguma coisa grave?
Nada. A doença trabalha, mas ainda sem efeitos detectáveis.
Pois que trabalhe.
Acho essa sua atitude muito louvável, senhor.
Dane-se, você! Então, não quer vir mesmo?
Eu costumo pegar meus patos no Longchamps, na Madison Avenue — replicou o médico. — Tem ar-condicionado no verão e é aquecido no inverno. E também não preciso me levantar antes do amanhecer, nem me enrolar todo, que nem um esquimó.
Está bem, menino da cidade. Não sabe o que está perdendo.
Jamais quis saber. Está em boa forma, senhor coronel.
Obrigado — agradeceu o coronel e retirou-se…

Ernest Hemingway, em Do outro lado do rio, entre as árvores

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