quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Do outro lado do rio, entre as árvores | 1




Saíram duas horas antes do amanhecer, e no início não foi necessário quebrar a camada de gelo para avançar pelo canal, já que outros botes haviam seguido na frente. Em cada embarcação, invisível devido à escuridão, apenas se ouvia, em pé, na popa, o barqueiro, com seu remo comprido. O caçador estava sentado num banco de tiro, preso em cima duma caixa que continha o almoço e a munição. Suas armas — havia outras duas ou mais — estavam encostadas nos patos de madeira que serviriam de chamariz. Em cada barco, num canto qualquer, havia um saco com uma ou duas patas selvagens vivas, ou uma pata e um pato. E em cada barco havia também um cão que nunca parava quieto, arrepiando-se ao som das asas dos patos que passavam no alto, em plena escuridão.
Quatro barcos prosseguiram pelo canal maior, em direção à grande laguna ao norte. Um quinto barco já havia entrado num canal secundário. E agora o sexto barco virou para o sul, entrando numa laguna rasa, com a superfície de gelo ainda intacta.
A laguna congelara não havia muito. Fora durante a noite, com aquele frio súbito, sem vento. A camada de gelo mostrava-se flexível e como que cedia ao golpe do remo do barqueiro. Então, estilhaçava-se como se fosse uma vidraça; mas o barco avançava pouca coisa.
Me dê um remo! — pediu o caçador do sexto barco, levantando-se, com todo cuidado. Ele escutava os patos passando na escuridão e percebia nitidamente os tremores nervosos do cachorro. Do lado norte, chegavam a ele os ruídos que faziam os outros barcos, quebrando o gelo.
Cuidado! — alertou o barqueiro, da popa. — Não vá fazer o barco virar.
Também estou acostumado a barcos, sabia? — retrucou o caçador, pegando o remo comprido que o barqueiro lhe passava e virando-o de maneira a agarrá-lo pela pá.
A seguir, moveu-se até a proa e cravou o cabo do remo no gelo. Logo pôde sentir o fundo firme da laguna, que era bastante rasa, e apoiou o peso do corpo na beirada larga da pá. Segurando com ambas as mãos, primeiro forçou para baixo, depois deu impulso, enviesando o cabo do remo e fazendo o bote avançar rompendo o gelo. A superfície de gelo se partiu como se fosse de lâminas de vidro liso, ao ser atravessada pelo barco. Da popa, o barqueiro conduzia o bote pela passagem que ia se abrindo.
Depois de algum tempo, o caçador, a quem o esforço prolongado fizera começar a suar, por baixo da roupa espessa, perguntou ao barqueiro:
Onde está o tonel de abrigo?
Bem para a esquerda. No centro da próxima baía.
Já posso rumar para lá?
Sim, se quiser.
Que quer dizer com isso? Você conhece essas águas. Há água para nos levar até lá?
A maré está baixa. Como vou saber?
Se não nos apressarmos, vai amanhecer antes de chegarmos lá.
O barqueiro não respondeu.
Certo, seu idiota enfezado”, pensou o caçador. “Vamos chegar lá. Já fizemos dois terços do percurso e se você está chateado por ter de dar duro quebrando gelo para caçar alguns patos, azar o seu…”. Então, disse em inglês:
Vamos em frente, bestalhão!
Como? — perguntou o barqueiro em italiano.
Eu só disse… Vamos em frente! Logo vai amanhecer.
Já era dia claro antes de eles alcançarem o tonel de carvalho enfiado no fundo da laguna. Era rodeado por uma fímbria de terra em declive onde haviam plantado relva e carriço. Com toda cautela, o caçador passou para a borda gramada, sentindo o solo congelado romper-se à medida que ia pisando. O barqueiro ergueu o banco de tiro, que também servia de caixa de munição, entregando-o para o caçador, que o recolheu e colocou-o no fundo do tonel.
O caçador calçava suas botas de cano alto e um velho jaquetão de combate, com um patch já indecifrável, no ombro esquerdo, além dos pontos desbotados, nas palas, de onde arrancara as estrelas. O barqueiro passou-lhe as duas armas.
O caçador apoiou-as contra a parede do abrigo, pendurando entre elas, em dois ganchos fincados no interior do tonel submerso, a sua cartucheira. Então, encostou as espingardas, uma de cada lado da bolsa com cartuchos. A seguir, perguntou ao barqueiro:
Você trouxe água?
Não. Nenhuma.
Posso beber essa água da laguna?
Não. É salgada.
Depois de todo o esforço para quebrar o gelo e impelir o barco, o caçador estava com muita sede. Sentiu a irritação crescer, mas conteve-se e perguntou:
Quer que eu volte para o barco para ajudá-lo a quebrar o gelo enquanto coloca os patos de madeira?
Não — respondeu o barqueiro, e jogou o barco energicamente para cima da camada fina de gelo que ia se partindo e fragmentando-se à medida que o barco avançava. Então, o barqueiro começou a golpear o gelo com a pá do seu remo e a distribuir os patos de madeira para os lados e para trás.
Mas que bom humor!”, pensou o caçador. “Sujeito estúpido! Trabalhei que nem um cavalo para chegarmos até aqui. Ele apenas carregou o próprio peso. Mais nada. Que diabo pode estar remoendo, agora? É esse o trabalho dele, não é?”
Ele ajeitou o banco de tiro de maneira a ter o máximo de movimento de giro, para a direita e para a esquerda, abriu a caixa de munições, encheu os bolsos, abriu mais uma e deixou-a dentro da bolsa, de modo que poderia com facilidade enfiar a mão e servir-se dos cartuchos. Bem à sua frente, onde a laguna já refletia os primeiros clarões da alvorada, estava a embarcação negra. O barqueiro, muito alto e corpulento, quebrava o gelo com seu remo e atirava a esmo os chamarizes, como se estivesse se livrando de algo obsceno.
Já começava a clarear e o caçador agora enxergava, atravessando a laguna, a linha baixa do próximo posto. Para além daquele ponto, ele sabia que havia mais dois postos de tiro. Mais para longe, ficava o mangue e, depois, o mar. Ele municiou ambas as armas e checou onde estava o barco que espalhava os chamarizes.
Vindo de trás dele, escutou o farfalhar de asas se aproximando. Ele agachou-se, segurou firme a espingarda na mão direita e voltou o olhar para cima, exatamente sobre a borda gramada em torno do barril, a seguir ergueu-se e disparou em dois patos que estavam baixando voo, suas asas estendidas, já diminuindo a velocidade do mergulho, como sombras negras que cortavam o céu, ainda densamente acinzentado, para pousar junto aos patos de madeira.
Cabeça baixa, agora, girou a arma num movimento longo e oblíquo, para baixo, mirando logo à frente do segundo pato. Depois, sem parar para olhar o resultado do tiro, ergueu suavemente a arma, um pouco para a esquerda, e apontou para o outro pato que elevava voo desse lado. Então, puxou o gatilho e imediatamente o viu despencar no vazio e tombar entre os chamarizes sobre o gelo quebrado. A seguir, voltou-se para a sua direita e viu o primeiro pato, uma espécie de mancha negra sobre o gelo. Sabia que atirara com cuidado no primeiro pato, bem à direita de onde se achava o barco; e, no segundo, bem no alto e para a esquerda, de modo a não deixar a embarcação ficar na linha de fogo. Foram dois esplêndidos tiros, executados com precisão, calculadamente, com pleno cuidado em relação ao ponto onde se achava o barco. Ao tornar a carregar as armas, sentiu-se satisfeito e tranquilo.
Ei, você! — chamou-o o barqueiro. — Não atire na direção do barco.
Mas eu teria de ser um filho da puta para fazer uma coisa dessas…”, pensou consigo o caçador. Depois, para o barqueiro:
Espalhe os chamarizes! Todos eles, depressa! Não vou atirar de novo até você ter colocado todos eles, a não ser que seja direto para o alto!
O barqueiro não retrucou coisa alguma que pudesse ser escutado.
E o atirador tornou a raciocinar: “Não compreendo. Ele conhece muito bem este trabalho. Sabe que fiz tanta força quanto ele, ou mais ainda, para chegar até aqui. Na minha vida nunca atirei num pato tomando tanto cuidado. Foi um tiro absolutamente seguro. Que diabo deu nele? Mas não cheguei até a me oferecer para espalhar os patos com ele? Que vá para o inferno!”
A alguma distância, à direita, o barqueiro continuava a bater no gelo com raiva e a espalhar os patos de madeira com uma irritação que se evidenciava em cada gesto.
Não vou deixar ele estragar meu dia!”, pensou consigo o caçador. “Com tanto gelo assim, não haverá muita caça, a não ser que o sol comece logo a derreter a crosta. O mais provável é que haja poucos patos passando por aqui. Assim, não posso deixar que ele estrague meu dia. Você não sabe quantas vezes vai poder voltar aqui para caçar patos; assim, não deixe que ele estrague um minuto sequer!”
Ficou observando o sol brilhando para além da longa linha do pântano e enxergou também as montanhas cobertas de neve, bem mais distantes. Encontrava-se num plano muito baixo para enxergar os sopés das montanhas, que assim pareciam brotar abruptamente da linha do horizonte. Ao dirigir o olhar para as montanhas, pôde sentir uma brisa nas faces e foi assim que percebeu de que direção viria o vento, agora, do lado do nascente, e teve a certeza de que alguns pássaros viriam voando lá dos lados do mar, quando o vento começasse a perturbá-los.
O barqueiro terminou de espalhar os chamarizes. Estavam agrupados em dois bandos, um logo à frente, para a esquerda, na direção do alvorecer, e o outro à direita do caçador. Em seguida atirou na água a pata, com a corda, e a âncora. A ave que serviria de isca submergiu a cabeça. Depois, ergueu-a e tornou a mergulhá-la, derramando água nas costas.
Não acha que é melhor quebrar mais gelo aí em volta? — exclamou o caçador para o barqueiro. — É muito pouca água para atraí-los.
O barqueiro não disse nada, mas começou a bater com o remo sobre o gelo, abrindo mais o perímetro. Não havia necessidade de quebrar mais gelo e o barqueiro sabia disso muito bem. Mas o caçador, não, e pensava consigo: “Não entendo esse sujeito, mas não vou deixar que ele estrague minha caçada. Cada tiro agora pode ser o último, e não vai ser esse filho da puta que vai me arruinar o dia. Só preciso me controlar, manter a calma, só isso.”… Foi o que disse a si mesmo.

Ernest Hemingway, em Do outro lado do rio, entre as árvores

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