Por
vezes amamos a metáfora antes de amar a pessoa. Quando Fernando
Pessoa escreveu “quando te vi amei-te já muito antes”, não era
isso que ele estava dizendo? Antes que a tivesse visto, ele já a
amava. Ele a amava numa estória escrita na sua alma. Aconteceu isso
nesta estória que passo a contar: alguém amou antes, muito antes...
***
Era
uma vez uma menina que tinha um Pássaro como melhor amigo. Era um
Pássaro diferente de todos os demais – era Encantado. Os pássaros
comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão embora para nunca
mais voltar. Mas o Pássaro da Menina voava livre e voltava quando
tinha saudades. Suas penas também eram diferentes – mudavam de
cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e
longínquos por onde voava.
Certa
vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o
algodão...
– Menina,
eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente
branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouve a não ser o
barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das
árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que eu vi,
como presente para você...
E
assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele
mundo que a Menina nunca vira. Até que ela adormecia e sonhava que
voava nas asas do Pássaro.
Outra
vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.
– Venho
de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os
grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se
apaga. Minhas penas ficaram como aquele sol, e trago as canções
tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e
ver a beleza dos campos verdes.
E
de novo começavam as estórias.
A
Menina amava aquele Pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após
dia. E o Pássaro amava a Menina, por isso voltava sempre. Mas
chegava sempre uma hora de tristeza.
– Tenho
de ir — ele dizia.
– Por
favor, não vá. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar...
E
a Menina fazia um beicinho…
– Eu
também terei saudades — dizia o Pássaro. — Eu também vou
chorar. Mas vou lhe contar um segredo: as plantas precisam de água,
nós precisamos de ar, os peixes precisam dos rios... E o meu encanto
precisa de saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz
com que minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá
saudade. Eu deixarei de ser um Pássaro Encantado. E você deixará
de me amar.
Assim,
ele partiu. A Menina, sozinha, chorava de tristeza à noite,
imaginando se o Pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela
teve uma ideia malvada:
Se
eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para
sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz.
Com
esses pensamentos, comprou uma gaiola de prata, própria para um
pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Finalmente ele chegou,
maravilhoso com suas novas cores. Cansado da viagem, adormeceu. Foi
então que a Menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o
prendeu na gaiola. E adormeceu feliz. Foi acordar de madrugada, com o
gemido do Pássaro:
– Ai,
Menina... Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas
ficarão feias e eu me esquecerei das estórias... E, sem saudade, o
amor irá embora...
A
Menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas
não foi isso que aconteceu. O tempo foi passando e o Pássaro foi
ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os
verdes, os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E
veio o silêncio. Ele deixou de cantar.
Também
a Menina se entristeceu. Não era aquele o Pássaro que ela amava. E
de noite chorava, pensando no que havia feito ao seu amigo.
Até
que não mais aguentou. Abriu a porta da gaiola e disse:
– Pode
ir, Pássaro. Volte quando quiser...
– Obrigado,
Menina... É, eu tenho de partir para que a saudade chegue e eu tenha
vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a
crescer dentro da gente. Sempre que você sentir saudades, eu ficarei
mais bonito. E, sempre que eu sentir saudades, você ficará mais
bonita. E você se enfeitará para me esperar...
E
partiu. Voou que voou para lugares distantes. A Menina contava os
dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.
Que
bom, ela pensava. Meu pássaro está ficando encantado de
novo... E ia ao guarda-roupa escolher os vestidos, penteava os
cabelos e colocava uma flor na jarra... Nunca se sabe. Pode ser
que ele volte hoje...
Sem
que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o
Pássaro. Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum
lugar ele haveria de voltar.
E
era assim que ela a cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas
feliz com o pensamento: quem sabe ele voltará amanhã...
Rubem Alves, em Cantos do Pássaro Encantado
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