quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A Menina e o Pássaro Encantado

Por vezes amamos a metáfora antes de amar a pessoa. Quando Fernando Pessoa escreveu “quando te vi amei-te já muito antes”, não era isso que ele estava dizendo? Antes que a tivesse visto, ele já a amava. Ele a amava numa estória escrita na sua alma. Aconteceu isso nesta estória que passo a contar: alguém amou antes, muito antes...

***

Era uma vez uma menina que tinha um Pássaro como melhor amigo. Era um Pássaro diferente de todos os demais – era Encantado. Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão embora para nunca mais voltar. Mas o Pássaro da Menina voava livre e voltava quando tinha saudades. Suas penas também eram diferentes – mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava.
Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão...
Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouve a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que eu vi, como presente para você...
E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a Menina nunca vira. Até que ela adormecia e sonhava que voava nas asas do Pássaro.
Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.
Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. Minhas penas ficaram como aquele sol, e trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.
E de novo começavam as estórias.
A Menina amava aquele Pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o Pássaro amava a Menina, por isso voltava sempre. Mas chegava sempre uma hora de tristeza.
Tenho de ir — ele dizia.
Por favor, não vá. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar...
E a Menina fazia um beicinho…
Eu também terei saudades — dizia o Pássaro. — Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: as plantas precisam de água, nós precisamos de ar, os peixes precisam dos rios... E o meu encanto precisa de saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um Pássaro Encantado. E você deixará de me amar.
Assim, ele partiu. A Menina, sozinha, chorava de tristeza à noite, imaginando se o Pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma ideia malvada:
Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz.
Com esses pensamentos, comprou uma gaiola de prata, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Finalmente ele chegou, maravilhoso com suas novas cores. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a Menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola. E adormeceu feliz. Foi acordar de madrugada, com o gemido do Pássaro:
Ai, Menina... Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias... E, sem saudade, o amor irá embora...
A Menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas não foi isso que aconteceu. O tempo foi passando e o Pássaro foi ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes, os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio. Ele deixou de cantar.
Também a Menina se entristeceu. Não era aquele o Pássaro que ela amava. E de noite chorava, pensando no que havia feito ao seu amigo.
Até que não mais aguentou. Abriu a porta da gaiola e disse:
Pode ir, Pássaro. Volte quando quiser...
Obrigado, Menina... É, eu tenho de partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você sentir saudades, eu ficarei mais bonito. E, sempre que eu sentir saudades, você ficará mais bonita. E você se enfeitará para me esperar...
E partiu. Voou que voou para lugares distantes. A Menina contava os dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.
Que bom, ela pensava. Meu pássaro está ficando encantado de novo... E ia ao guarda-roupa escolher os vestidos, penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra... Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje...
Sem que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o Pássaro. Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar.
E era assim que ela a cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento: quem sabe ele voltará amanhã...

Rubem Alves, em Cantos do Pássaro Encantado

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