sábado, 30 de novembro de 2024

Deixa eu começar de novo


Deixa eu começar de novo.
Querida Mãe,

Estou escrevendo para chegar até você – ainda que cada palavra que eu ponha no papel fique uma palavra mais longe de onde você está. Estou escrevendo para voltar ao tempo, no ponto de parada na Virgínia, quando você olhou horrorizada um alce empalhado em cima da máquina de refrigerante perto dos banheiros, a galhada fazendo sombra no teu rosto. No carro, você ainda sacudia a cabeça. “Não entendo por que alguém ia fazer aquilo. Será que eles não veem que aquilo é um cadáver? Um cadáver devia ir embora, não ficar preso para sempre daquele jeito.”
Penso agora naquele alce, em como você olhou para os olhos negros vítreos dele e viu o teu reflexo, teu corpo inteiro, deformado naquele espelho sem vida. Em como não foi a instalação grotesca de um animal decapitado que te chocou – é que um corpo empalhado mantinha presente uma morte que não vai acabar, uma morte que continua morrendo enquanto a gente passa para ir ao banheiro.
Estou escrevendo porque me disseram para nunca começar uma frase com porque. Mas eu não estava tentando fazer uma frase – estava tentando me libertar. Porque a liberdade, eu ouvi dizer, é apenas a distância entre o caçador e a sua presa.

Outono. Em algum ponto sobre o Michigan, uma colônia de mais de quinze mil borboletas-monarcas começa sua migração anual rumo ao sul. Em dois meses, de setembro a novembro, elas se moverão, uma batida de asas por vez, do sul do Canadá e dos Estados Unidos para partes do México central, onde passarão o inverno.
Elas pousam entre nós, em peitoris de janelas e alambrados, varais ainda borrados pelo peso de roupas recém-penduradas, o capô desbotado de um Chevy azul, as asas se fechando lentamente, como se estivessem sendo guardadas, antes de baterem uma vez, voando.
Uma única noite gelada pode matar uma geração. Viver, então, é uma questão de tempo, de achar o tempo certo.
Aquela vez que eu tinha cinco ou seis anos e, pregando uma peça, pulei em você saindo de trás da porta do corredor, gritando: “Bum!” Você gritou, o rosto arranhado e retorcido, depois chorou de soluçar, agarrou o próprio peito enquanto se apoiava na porta, tentando recuperar o fôlego. Fiquei parado, perplexo, meu capacete militar de brinquedo inclinado na cabeça. Eu era um menino americano imitando o que via na TV. Eu não sabia que a guerra ainda estava dentro de você, nem sabia que existia uma guerra, que quando ela entra em você nunca mais sai – simplesmente ecoa, um som formando o rosto do teu próprio filho. Bum.
Aquela vez, na terceira série, em que, com a ajuda da sra. Callahan, minha professora de inglês como língua estrangeira, eu li o primeiro livro que adorei, um livro infantil chamado Thunder cake, de Patricia Polacco. Na história, quando uma menina e a avó veem uma tempestade se formar no horizonte verde, em vez de fechar as janelas ou pregar tábuas nas portas, elas vão fazer um bolo. Essa atitude me desestabilizou, a recusa precária mas corajosa do senso comum. Enquanto a sra. Callahan ficava atrás de mim, a boca no meu ouvido, eu era levado cada vez para mais longe pela correnteza do idioma. A história se desenrolava, sua tempestade rugia enquanto ela falava, depois rugia novamente quando eu repetia as palavras. Assar um bolo no olho de uma tempestade: comer açúcar à beira do perigo.

A primeira vez que você me bateu, eu devia ter quatro anos. Uma mão, um clarão, um acerto de contas. Minha boca uma fogueira tátil.
A vez que eu tentei te ensinar a ler do jeito que a sra. Callahan me ensinava, meus lábios no teu ouvido, minha mão na tua, as palavras se movendo sob as sombras que fazíamos. Mas aquele ato (um filho ensinando a mãe) revertia nossas hierarquias, e com isso nossas identidades que, neste país, já eram tênues e cativas. Depois das gaguejadas e dos começos em falso, as frases se deformavam ou se trancavam na tua garganta, depois do constrangimento do fracasso, você fechava a boca. “Eu não preciso ler”, você disse, o rosto contorcido, e se afastou da mesa. “Eu sei ver, e isso me trouxe até aqui, não trouxe?”
Depois, a vez do controle remoto. Eu mentia para os professores sobre o roxo no meu braço. “Caí brincando de pega-pega.”
Aquela vez, aos quarenta e seis anos, quando você teve um desejo súbito de colorir. “Vamos ao Walmart”, você disse um dia de manhã. “Preciso de livros de colorir.” Por meses você preencheu o espaço entre os braços com todos os tons que não sabia pronunciar. Magenta, vermelhão, calêndula, estanho, zimbro, canela. Todo dia, por horas, você se debruçava sobre paisagens de fazendas, pastagens, Paris, dois cavalos em uma planície assolada pelo vento, o rosto de uma menina com cabelos negros e uma pele que você deixou sem cor, deixou branca. Você pendurava aquilo pela casa toda, que começou a parecer uma sala de escola primária. Quando perguntei “Por que colorir, por que agora?”, você largou o lápis safira e olhou, sonhadora, para um jardim ainda inacabado. “Eu só desapareço por um tempo nos desenhos”, você disse. “Mas eu sinto tudo. Como se eu ainda estivesse aqui, nesta sala.”
A vez que você jogou a caixa de Lego na minha cabeça. A madeira salpicada de sangue.
Você já criou uma cena”, você disse, pintando uma casa de Thomas Kinkade, “e depois se colocou lá dentro? Você já se olhou por trás, se afastando e se afundando naquela paisagem, cada vez mais longe de você?”
Como eu podia te contar que o que você estava descrevendo era escrever? Como eu podia contar que nós, afinal, estamos tão perto, as sombras de nossas mãos, em duas páginas diferentes, se fundindo?
Desculpe”, você disse, fazendo um curativo no corte na minha testa. “Pega o casaco. Vou te comprar McDonald’s.” Com a cabeça latejando, molhei os nuggets de frango no ketchup com você me olhando. “Você tem que ficar maior e mais forte, ok?”

Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante

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