sábado, 30 de novembro de 2024

Heróis

As biografias dos grandes homens são feitas de absurdos, estão cheias de acontecimentos incômodos, que atravancam tudo. A vida deles lhes acontece de fora para dentro. Muito mais interior, mais natural, mais humana é a tua vidoca, anônimo leitor, que és o herói sem história do quotidiano. Se pudesses, se soubesses contar-me a tua vida, eu tiraria dela muito mais proveito do que da vida de Napoleão.

Mário Quintana, em Caderno H

Millôr: sempre atual

A invenção de um modo

Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: “Ora, isso é pras mulheres de São Paulo”.
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.

Adélia Prado, em Bagagem

[Para Anthony Linick] | 2 de abril de 1959


[...] Enquanto escrevo, devo mencionar que o ensaio do “manifesto” que mandei ontem (acredito) agora está me incomodando. Embora eu não tenha o original por perto, creio ter usado a expressão “leave us be fair”. Isso tem me deixado acordado em meu quente catre solitário (as putas, por agora, andam se deitando com tolos menos comprometidos). Acredito que “let us be fair” é mais correto. Ou não é? Algum gramático na Nomad? Em minha juventude (ó, velozes anos!), recebi um D em Inglês no bom e velho L.A.C.C. por aparecer todas as manhãs às 7:30 de ressaca. Não era tanto a ressaca quanto o fato de que a aula começava às 7:00, quase sempre com uma cornetada capturadora de Gilbert e Sullivan que, tenho certeza, teria me matado. Em Inglês II recebi um A ou B porque a aula era dada por uma professora que me pegava olhando constantemente suas pernas. Tudo isso para dizer que minha compenetração na gramática não foi das mais fervorosas, e, quando escrevo, é pelo amor à palavra, à cor, como jogar tinta numa tela, e, usando bastante ouvido e tendo lido um pouco aqui e ali, geralmente consigo me sair mais ou menos bem, mas em termos técnicos não sei o que está acontecendo, tampouco me importo. Sejamos justos. sejamos justos. sejamos...

Charles Bukowski, em Escrever para não enlouquecer

Geraldo Azevedo | Estou em Paz

Meu avô

[...]
Propunha que desvendasse adivinhas e dilemas. Propunha que desvendasse labirínticas lógicas. Prometia um novo livro ou um caderno com marcadores amarelos e vermelhos, os meus favoritos. Prometia que, se eu descobrisse cada resposta, me daria outro abraço ainda mais apertado e sempre mais amigo. Por melhores que fossem os cadernos, o orgulho que sentia naqueles abraços era a vitória, eles eram a fita-métrica da sua amizade por mim.
De cada vez que a nossa cabeça resolve um problema aumentamos de tamanho. Podemos chegar a ser gigantes, cheios de lonjuras por dentro, dimensões distintas, países inteiros de ideias e coisas imaginárias.

Valter Hugo Mãe, em As mais belas coisas do mundo

Deixa eu começar de novo


Deixa eu começar de novo.
Querida Mãe,

Estou escrevendo para chegar até você – ainda que cada palavra que eu ponha no papel fique uma palavra mais longe de onde você está. Estou escrevendo para voltar ao tempo, no ponto de parada na Virgínia, quando você olhou horrorizada um alce empalhado em cima da máquina de refrigerante perto dos banheiros, a galhada fazendo sombra no teu rosto. No carro, você ainda sacudia a cabeça. “Não entendo por que alguém ia fazer aquilo. Será que eles não veem que aquilo é um cadáver? Um cadáver devia ir embora, não ficar preso para sempre daquele jeito.”
Penso agora naquele alce, em como você olhou para os olhos negros vítreos dele e viu o teu reflexo, teu corpo inteiro, deformado naquele espelho sem vida. Em como não foi a instalação grotesca de um animal decapitado que te chocou – é que um corpo empalhado mantinha presente uma morte que não vai acabar, uma morte que continua morrendo enquanto a gente passa para ir ao banheiro.
Estou escrevendo porque me disseram para nunca começar uma frase com porque. Mas eu não estava tentando fazer uma frase – estava tentando me libertar. Porque a liberdade, eu ouvi dizer, é apenas a distância entre o caçador e a sua presa.

Outono. Em algum ponto sobre o Michigan, uma colônia de mais de quinze mil borboletas-monarcas começa sua migração anual rumo ao sul. Em dois meses, de setembro a novembro, elas se moverão, uma batida de asas por vez, do sul do Canadá e dos Estados Unidos para partes do México central, onde passarão o inverno.
Elas pousam entre nós, em peitoris de janelas e alambrados, varais ainda borrados pelo peso de roupas recém-penduradas, o capô desbotado de um Chevy azul, as asas se fechando lentamente, como se estivessem sendo guardadas, antes de baterem uma vez, voando.
Uma única noite gelada pode matar uma geração. Viver, então, é uma questão de tempo, de achar o tempo certo.
Aquela vez que eu tinha cinco ou seis anos e, pregando uma peça, pulei em você saindo de trás da porta do corredor, gritando: “Bum!” Você gritou, o rosto arranhado e retorcido, depois chorou de soluçar, agarrou o próprio peito enquanto se apoiava na porta, tentando recuperar o fôlego. Fiquei parado, perplexo, meu capacete militar de brinquedo inclinado na cabeça. Eu era um menino americano imitando o que via na TV. Eu não sabia que a guerra ainda estava dentro de você, nem sabia que existia uma guerra, que quando ela entra em você nunca mais sai – simplesmente ecoa, um som formando o rosto do teu próprio filho. Bum.
Aquela vez, na terceira série, em que, com a ajuda da sra. Callahan, minha professora de inglês como língua estrangeira, eu li o primeiro livro que adorei, um livro infantil chamado Thunder cake, de Patricia Polacco. Na história, quando uma menina e a avó veem uma tempestade se formar no horizonte verde, em vez de fechar as janelas ou pregar tábuas nas portas, elas vão fazer um bolo. Essa atitude me desestabilizou, a recusa precária mas corajosa do senso comum. Enquanto a sra. Callahan ficava atrás de mim, a boca no meu ouvido, eu era levado cada vez para mais longe pela correnteza do idioma. A história se desenrolava, sua tempestade rugia enquanto ela falava, depois rugia novamente quando eu repetia as palavras. Assar um bolo no olho de uma tempestade: comer açúcar à beira do perigo.

A primeira vez que você me bateu, eu devia ter quatro anos. Uma mão, um clarão, um acerto de contas. Minha boca uma fogueira tátil.
A vez que eu tentei te ensinar a ler do jeito que a sra. Callahan me ensinava, meus lábios no teu ouvido, minha mão na tua, as palavras se movendo sob as sombras que fazíamos. Mas aquele ato (um filho ensinando a mãe) revertia nossas hierarquias, e com isso nossas identidades que, neste país, já eram tênues e cativas. Depois das gaguejadas e dos começos em falso, as frases se deformavam ou se trancavam na tua garganta, depois do constrangimento do fracasso, você fechava a boca. “Eu não preciso ler”, você disse, o rosto contorcido, e se afastou da mesa. “Eu sei ver, e isso me trouxe até aqui, não trouxe?”
Depois, a vez do controle remoto. Eu mentia para os professores sobre o roxo no meu braço. “Caí brincando de pega-pega.”
Aquela vez, aos quarenta e seis anos, quando você teve um desejo súbito de colorir. “Vamos ao Walmart”, você disse um dia de manhã. “Preciso de livros de colorir.” Por meses você preencheu o espaço entre os braços com todos os tons que não sabia pronunciar. Magenta, vermelhão, calêndula, estanho, zimbro, canela. Todo dia, por horas, você se debruçava sobre paisagens de fazendas, pastagens, Paris, dois cavalos em uma planície assolada pelo vento, o rosto de uma menina com cabelos negros e uma pele que você deixou sem cor, deixou branca. Você pendurava aquilo pela casa toda, que começou a parecer uma sala de escola primária. Quando perguntei “Por que colorir, por que agora?”, você largou o lápis safira e olhou, sonhadora, para um jardim ainda inacabado. “Eu só desapareço por um tempo nos desenhos”, você disse. “Mas eu sinto tudo. Como se eu ainda estivesse aqui, nesta sala.”
A vez que você jogou a caixa de Lego na minha cabeça. A madeira salpicada de sangue.
Você já criou uma cena”, você disse, pintando uma casa de Thomas Kinkade, “e depois se colocou lá dentro? Você já se olhou por trás, se afastando e se afundando naquela paisagem, cada vez mais longe de você?”
Como eu podia te contar que o que você estava descrevendo era escrever? Como eu podia contar que nós, afinal, estamos tão perto, as sombras de nossas mãos, em duas páginas diferentes, se fundindo?
Desculpe”, você disse, fazendo um curativo no corte na minha testa. “Pega o casaco. Vou te comprar McDonald’s.” Com a cabeça latejando, molhei os nuggets de frango no ketchup com você me olhando. “Você tem que ficar maior e mais forte, ok?”

Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Confissões de Teilhard

Henry de Monfreid, escritor e aventureiro que por si só mereceria um longo estudo, esteve durante suas viagens com Teilhard de Chardin, encontrando-se com ele várias vezes na Etiópia.
Mas mantém segredo sobre as confidências que Chardin lhe fez. “Não posso repeti-las porque dei a ele a minha palavra de honra de não passá-las adiante.”
No entanto, insistido pelo seu entrevistador, Monfreid disse que alguma coisa podia contar. Que uma vez Teilhard estava pensando alto, a modo de dizer. E ao que dissera, acrescentara:
Falei com Deus, não falei aos homens, porque as ideias que hoje tenho não devem ser divulgadas, já que a humanidade ainda não está madura para recebê-las. Quanto a mim, cheguei ao alto da montanha e agora vejo um horizonte que os outros, aqueles que atrás de mim continuam a subir, não veem. E se eu lhes revelar o que vi, eles se arriscam a perder a fé simples e ingênua que os sustenta nesse momento e que lhes permite subir a montanha que eu mesmo subi. Eis por que é preciso silenciar sobre minhas ideias, e que elas só venham à luz quando a humanidade tiver evoluído o bastante para recebê-las.”

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Bicudinho, de Caco Galhardo

Pitiu

José Estanislau de Castro Vinhas, esse era o seu nome. Seu magnífico sobrenome já se encontrava nos almanaques que citei, prova de que ele era dorense de muitas gerações. Mas ninguém o conhecia pelo nome. Ele era o Pitiu. Rosto de profeta, longa barba grisalha, chapéu, gravata, paletó de três botões, todos abotoados, botas, esporas e um guarda-chuva. Aparecia montado na sua égua de cheiro bom. Era de casa. Chegava na casa da tia América — ah! Como eu gostaria que a tia América tivesse sido minha avó! Ela era mansa e gostava de crianças! Sua insuperável habilidade culinária eram os pastéis. Quando ela fazia pastéis, bacias cheias, a notícia corria rápida entre os primos: “Tia Merca ta dano pastel!”. O Pitiu chegava, não batia à porta, puxava o barbante e entrava pela casa. De verdade, ele era um da casa.
Você não entendeu o barbante que se puxava? Explico. Não se tinha medo. Todo mundo era bem-vindo. As casas estavam abertas a quem quisesse. Em algumas casas a confiança era tanta que para facilitar as coisas amarrava-se um barbante no trinco da fechadura, no lado de dentro, que era passado por um orifício na porta e ficava pendente do lado de fora. Não era preciso bater. Era só puxar o barbante e entrar gritando “Ô de casa! Ô de casa!”.
Havia um ar de mistério em torno do Pitiu. Morava sozinho na fazenda que herdara dos antepassados. Os detalhes da sua vida cotidiana eram ignorados. Relatava-se que uma vez foi visto de noite, assentado no pasto, encostado num cupim, lendo um jornal que iluminava com uma vela. Pode ser verdade, pode não ser. O povo inventa muito.
Mas algo aconteceu que rompeu a placidez e a monotonia da vida do Pitiu. Os viajantes que chegavam de jardineira traziam notícias assombrosas. A revolução estava em marcha. Tinha até aviões jogando bombas nas cidades. Os paulistas, armados até os dentes, se aproximavam com toda a sua malvadeza e braveza. Não se sabia aquilo de que seriam capazes! O medo tomou conta da cidade. Muita gente se preparou para fugir para os matos. Foi então que dentro daquele homem pacato, o Pitiu, despertou um general adormecido. Dirigiu-se ao posto telefônico e, sem pedir licença e sem pedir que a telefonista fizesse uma ligação, agarrou o telefone e começou a berrar ordens: “Aqui é José Estanislau de Castro Vinhas. Dinamitem as pontes. Repito: dinamitem as pontes. É uma ordem”. E desligou o telefone, ante os olhos espantados da telefonista. Digam o que disserem, o fato é que funcionou: o Pitiu deu ordens a uma pessoa que não existia para que dinamitasse as pontes com uma dinamite que não existia e as tropas paulistas que não existiam foram impedidas de chegar a Boa Esperança. Passado esse episódio heroico, José Estanislau de Castro Vinhas voltou a ser o Pitiu que sempre fora. Não houve outras revoluções que exigissem a sua ação.

Rubem Alves, em O velho que acordou menino

Sinceramente | Giuliano Eriston canta Sérgio Sampaio

O engenheiro

O homem trabalha
entre a rosa e o trânsito.
Ondas contínuas no seu dorso
de pedra e nuvem.
Martelos.
No papel intacto há linhas,
fundamentos de aurora, estrutura
de um mundo pressentido, linhas.

As rosas se dividem
por canteiros iguais
e um pássaro
pousou no arranha-céu.

Quando o engenheiro terminar
o sentimento e a planta,
mãos frescas como folhas
virão sobre o meu corpo.

José Paulo Paes, Poesia completa

Menino de ilha

Às vezes, no calor mais forte, eu pulava de noite a janela com pés de gato e ia deitar-me junto ao mar. Acomodava-me na areia como uma cama fofa e abria as pernas aos alíseos e ao luar: e em breve as frescas mãos da maré cheia vinham coçar meus pés com seus dedos de água.
Era indizivelmente bom. Com um simples olhar podia vigiar a casa, cuja janela deixava apenas encostada; mas por mero escrúpulo. Ninguém nos viria nunca fazer mal. Éramos gente querida na ilha, e a afeição daquela comunidade pobre manifestava-se constantemente em peixe fresco, cestas de caju, sacos de manga-espada. E em breve perdia-me naquela doce confusão de ruídos... o sussurro da maré montante, uma folha seca de amendoeira arrastada pelo vento, o gorgulho de um peixe saltando, a clarineta de meu amigo Augusto, tuberculoso e insone, solando valsas ofegantes na distância. A aragem entrava-me pelos calções, inflava-me a camisa sobre o peito, fazia-me festas nas axilas, eu deixava a areia correr de entre meus dedos sem saber ainda que aquilo era uma forma de cortar o tempo. Mas o tempo ainda não existia para mim; ou só existia nisso que era sempre vivo, nunca morto ou inútil.
Quando não havia luar era mais lindo e misterioso ainda. Porque, com a continuidade da mirada, o céu noturno ia desvendando pouco a pouco todas as suas estrelas, até as mais recônditas, e a negra abóbada acabava por formigar de luzes, como se todos os pirilampos do mundo estivessem luzindo na mais alta esfera. Depois acontecia que o céu se aproximava e eu chegava a distinguir o contorno das galáxias, e estrelas cadentes precipitavam-se como loucas em direção a mim com as cabeleiras soltas e acabavam por se apagar no enorme silêncio do Infinito. E era uma tal multidão de astros a tremeluzir que, juro, às vezes tinha a impressão de ouvir o burburinho infantil de suas vozes. E logo voltava o mar com o seu marulhar ilhéu, e um peixe pulava perto, e um cão latia, e uma folha seca de amendoeira era arrastada pelo vento, e se ouvia a tosse de Augusto longe, longe. Eu olhava a casa, não havia ninguém, meus pais dormiam, minhas irmãs dormiam, meu irmão pequeno dormia mais que todos. Era indizivelmente bom.
Havia ocasiões em que adormecia sem dormir, numa semiconsciência dos carinhos do vento e da água no meu rosto e nos meus pés. É que vinha-me do Infinito uma tão grande paz e um tal sentimento de poesia que eu me entregava não a um sono, que não há sono diante do Infinito, mas a um lacrimoso abandono que acabava por raptar-me de mim mesmo. E eu ia, coisa volátil, ao sabor dos ventos que me levavam para aquele mar de estrelas, sem forma e corpo e ouvindo o breve cochicho das ondas que vinham desaguar nas minhas pernas.
Mas – como dizê-lo? – era sempre nesses momentos de perigosa inércia, de mística entrega, que a aurora vinha em meu auxílio. Pois a verdade é que, de súbito, eu sentia a sua mão fria pousar sobre minha testa e despertava do meu êxtase. Abria os olhos e lá estava ela sobre o mar pacificado, com seus grandes olhos brancos, suas asas sem ruído e seus seios cor-de-rosa, a mirar-me com um sorriso pálido que ia pouco a pouco desmanchando a noite em cinzas. E eu me levantava, sacudia a areia do meu corpo, dava um beijo de bom-dia na face que ela me entregava, pulava a janela de volta, atravessava a casa com pés de gato e ia dormir direito em minha cama, com um gosto de frio em minha boca.

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

O Realismo do norte-americano Leffel

Natureza-morta, de David Leffel

Capítulo XV – Outra voz repentina

Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
Vocês estão jogando o siso?
Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da mulher. Soltamos as mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes escritos.
Capitu!
Papai!
Não me estragues o reboco do muro.
Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pádua saiu ao quintal, a ver o que era, mas a filha já tinha começado outra coisa, um perfil, que disse ser o retrato dele, e tanto podia ser dele como da mãe; fê-lo rir, era o essencial. De resto, ele chegou sem cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas abauladas, donde lhe vinha a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe pôs. Ninguém lhe chamava assim lá em casa: era só o agregado.
Vocês estavam jogando o siso? Perguntou.
Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos.
Estávamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, não aguenta.
Quando eu cheguei à porta, não ria.
Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver?
E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente sério; eu estava ainda sob a ação do que trouxe a entrada de Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há coisas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitu, após duas voltas, foi ter com a mãe, que continuava à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:
Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece dezessete. Mamãe está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.
Está.
Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor, mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição em casa; escrevo todas as noites que é um desespero; negócio de relatório. Você já viu o meu gaturamo? Está ali o fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver.
Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo céu nem pela terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os de vária espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de canários, que faziam, cantando, um barulho de todos os diabos. Trocava pássaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no próprio quintal, armando alçapões. Também, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente.

Machado de Assis, em Dom Casmurro

Linguagem: a história da maior invenção da humanidade | Introdução



No princípio era o verbo.
João 1:1

Não, não era.
Daniel Everett

Era uma manhã abafada de 1991, ao longo do rio Kitiá na floresta tropical amazônica, no Brasil, em um avião monomotor, a cerca de 320 quilômetros da cidade mais próxima. Eu me encontrava ajustando os microfones nos dois homens magros e enrijecidos pelo clima, Sabatão e Bidu. Àquela hora do dia, eles normalmente estariam na selva, armados com zarabatanas de 2,4 metros e aljavas de dardos envenenados, caçando porcos selvagens, veados, macacos ou outros animais nativos do seu Éden. Mas naquela manhã eles estavam conversando entre eles enquanto eu os atrapalhava com os comandos do gravador e com o volume do som.
Antes de começarmos, eu lhes expliquei novamente, em uma mistura de português com a língua deles, banawá, o que queria: “conversem entre vocês. Sobre qualquer coisa. Contem histórias um para o outro. Falem sobre os americanos e os brasileiros que visitam a aldeia. Qualquer coisa que vocês queiram”. Eu tinha lhes convencido e lhes pagado para estarem ali, porque estava atrás do Santo Graal de um pesquisador de campo em Linguística – a conversação natural (comunicação interativa espontânea envolvendo mais de uma pessoa). Eu sabia, pelos meus fracassos do passado, que era quase impossível gravar conversas naturais. Isso porque a presença do pesquisador de campo com equipamento de gravação afeta a percepção da tarefa e contamina tão significativamente o resultado que em geral só são obtidas trocas não naturais e não dinâmicas que nenhum falante nativo aceitaria como uma conversa real (imagine se alguém colocasse você sentado com um amigo, ajustasse um microfone em vocês e ordenasse: “conversem!”).
Mas ali, depois de ter testado a qualidade do som da gravação que eu estava fazendo, eu mal podia conter minha empolgação. Eles começaram assim:

Sabatão: Bidu, Bidu. Vamos conversar hoje!
Bidu: Hummmm.
Sabatão: Vamos conversar na nossa língua.
Bidu: Hummmm.
Sabatão: O Daniel gosta muito da nossa língua.
Bidu: Sim, eu sei.
Sabatão: Eu vou falar. Então, você pode contar a história da onça pintada.
Bidu: Sim.
Sabatão: Vamos relembrar como as coisas eram muito tempo atrás.
Bidu: Sim, eu lembro.Sabatão: Muito tempo atrás, os homens brancos chegaram. Muito tempo atrás os homens brancos chegaram à nossa aldeia.
Bidu: Eles, eu conheço.
Sabatão: Eles nos encontraram. Nós vamos nos encontrar com eles.
Bidu: Sim, eles eu conheço.

A conversa deles mudou de um assunto para o outro, de forma natural, por mais de uma hora.
Embora eu estivesse há milhares de quilômetros de casa, suando muito, espantando vespas e moscas sanguessugas, eu quase chorei depois que Sabatão e Bidu terminaram, 45 minutos depois. Eu lhes agradeci entusiasticamente pelo tesouro verbal que eles tinham me fornecido. Eles sorriram e saíram para caçar com suas zarabatanas e dardos envenenados. Eu continuei sozinho, transcrevendo (anotando cada nuance fonológica), traduzindo e analisando a gravação. Depois de alguns dias de trabalho duro para deixar os dados “apresentáveis”, entreguei as gravações, as minhas anotações e a maior parte do trabalho remanescente de análise para um estudante (já graduado) da Universidade de Manchester na Inglaterra, que tinha me acompanhado até a Amazônia.
No fim do dia, nossa equipe de pesquisa – eu e três estudantes – desfrutou de um jantar composto por feijão, arroz e carne de porco selvagem – que eu tinha comprado dos banawás. Depois da refeição, passamos algum tempo ociosos, conversando sobre o calor da selva e sobre os insetos, sobre os gostos de cada um, que nunca tínhamos notado antes, mas especialmente falamos sobre a conversa gravada entre Bidu e Sabatão e sobre quão gratos nós estávamos a eles. Conversas dentro de conversas. Conversas sobre conversas.
Logo após o rápido pôr do sol amazônico, os banawás vieram nos fazer uma visita, como era de costume. Nós quatro preparamos suco (em pó) e café e abrimos um pacote de biscoitos para eles. Primeiramente cumprimentamos as mulheres banawás. As estudantes foram as responsáveis pela maioria da interação com as mulheres (cumprimentar e servir), como é culturalmente apropriado entre os banawás, que praticam uma segregação rigorosa dos sexos. Logo depois, os homens tiveram permissão para sentar e nós servimos mais café, suco e biscoitos. Na medida em que comíamos e bebíamos, conversávamos com os homens, principalmente respondendo suas questões a respeito de nossas famílias e nossos lares. Assim como fazem as pessoas corriqueiramente em qualquer lugar, nós e os banawás estávamos construindo relações e amizades por meio das conversas.
Conversas naturais desse tipo são importantes para linguistas, psicólogos, sociólogos, antropólogos e filósofos, porque elas corporificam o todo da linguagem, complexo e integrado, de uma maneira que nenhuma outra manifestação de linguagem faz. As conversas são o ápice dos estudos linguísticos e particularmente as fontes de descobertas, porque elas são potencialmente ilimitadas em forma e significado. Elas também são cruciais para a compreensão da natureza da linguagem por causa de sua subdeterminação – dizendo menos do que se pretende comunicar e deixando implícitos os pressupostos para serem inferidos pelo ouvinte, de alguma forma. A subdeterminação sempre fez parte da linguagem.
Para dar um exemplo de subdeterminação, olhe para a segunda linha da conversa entre Bidu e Sabatão. Sabatão diz para Bidu: “vamos conversar na nossa língua”. Essa fala é estranha se for considerada literalmente, pois eles já estão falando na língua deles. Na verdade, esses dois homens teriam dificuldades para continuar uma conversa natural em português, porque o conhecimento deles de português era rudimentar e limitado principalmente a negociações. As palavras de Sabatão supõem algo que não foi dito. Sabatão está usando essas palavras indiretamente para me avisar que eles não vão usar português para conversar, porque eles sabem que eu estou tentando entender como eles conversam na língua deles e porque eles querem me ajudar. Nada disso é falado. Embora subdeterminado pelas palavras, está implícito no contexto.
Da mesma forma, na fala “vamos lembrar como as coisas eram muito tempo atrás”, há um conhecimento compartilhado sobre a gama de coisas que eles estavam tentando lembrar. O que está em jogo nesse caso? Rituais? Caça? Relacionamentos com outras pessoas? Há quanto tempo? Antes de os americanos chegarem? Antes de os brasileiros chegarem? Há uma centena de gerações? Tanto Bidu quanto Sabatão (ou, de fato, qualquer banawá) sabem sobre o que está sendo falado. Mas isso não está claro inicialmente para alguém de outra cultura.
Sabatão e Bidu são dois dos oitenta e poucos falantes de banawá, uma língua que já ajudou a comunidade científica a aprender muito sobre linguagem humana, cognição, Amazônia e cultura. Mais especificamente, eles nos ensinaram sobre estruturas de som incomuns e sobre gramática, sobre os ingredientes e sobre o processo para fabricar veneno para dardos e flechas, sobre sua classificação para a flora e a fauna amazônicas e suas conexões linguísticas com outros amazonenses. Essas lições se seguiram naturalmente do trabalho com as estruturas de conhecimento, valores, organização linguística e social dos diferentes grupos que, como os banawás, há milênios dominam a vida em um nicho particular.
Qualquer comunidade – sejam os banawás, os franceses, os chineses, os botswanas – usa a língua para construir laços sociais entre os membros de sua comunidade e os outros. Na verdade, nossas espécies têm conversado por muito tempo. Todas as línguas do planeta apontam para as expressões de pensamento – subdeterminadas, restritas pela gramática, motivadas pelo significado ou ligadas socialmente – dos primeiros Hominini, dos Homo erectus e talvez ainda antes. Com base nas evidências da cultura dos Homo erectus – tais como ferramentas, casas, organização espacial das aldeais e viagens oceânicas para terras imaginadas além do horizonte –, o gênero Homo tem falado por 60 mil gerações, muito possivelmente há mais de um milhão e meio de anos. Já era de se esperar que nossa espécie, depois de milhares de milhares de anos de prática, fosse muito boa com a linguagem. E nós também esperaríamos que as línguas que desenvolvemos ao longo do tempo se acomodassem melhor às nossas limitações cognitivas e perceptuais, ao nosso campo auditivo, ao nosso trato vocal e às nossas estruturas cerebrais. Subdeterminação significa que cada enunciado de cada conversa, cada linha de cada romance e cada sentença de qualquer língua contêm “espaços em branco” – conhecimento, valores, papéis e emoções assumidos e implícitos –, um conteúdo subdeterminado que eu chamo de “matéria escura”. A linguagem nunca pode ser inteiramente compreendida sem um conjunto, compartilhado e internalizado, de valores, estruturas sociais e relações de conhecimento. Nesses componentes culturais e psicológicos compartilhados, a linguagem filtra aquilo que é comunicado, guiando as interpretações do ouvinte sobre aquilo que o outro disse. As pessoas usam o contexto e as culturas das línguas que elas ouvem para interpretá-las. Elas também usam gestos e entonação a fim de interpretar o significado pleno do que está sendo comunicado.
Assim como todos os humanos, as primeiras espécies Homo – a iniciarem o longo e árduo processo de construir uma língua do zero – quase certamente nunca disseram de maneira completa tudo aquilo que estava em suas mentes. Isso violaria características básicas da linguagem. Ao mesmo tempo, esses Hominini originários não teriam feito simplesmente sons ou gestos aleatórios. Em vez disso, teriam usado meios para comunicarem formas que acreditavam que outros entenderiam. E eles também pensaram que seus ouvintes poderiam “preencher as lacunas” e conectar o conhecimento de sua cultura e do mundo para interpretar o que foi proferido.
Essas são algumas das razões pelas quais as origens da linguagem humana não podem ser discutidas de maneira eficiente sem que a conversação seja colocada no topo da lista das coisas para serem entendidas. Cada aspecto da linguagem humana evoluiu, da mesma maneira que os componentes do corpo e do cérebro humanos, para envolver-se na conversação e na vida social. A linguagem não começou integralmente quando o primeiro hominídeo proferiu a primeira palavra ou sentença. Ela só começou de verdade com a primeira conversa, que é tanto a fonte quanto a meta da linguagem. Na verdade, a linguagem muda as vidas. Ela cria a sociedade, expressa nossas maiores aspirações, nossos pensamentos mais básicos, emoções ou filosofias de vida. Mas toda linguagem está, em última análise, a serviço da interação humana. Outros componentes da linguagem – coisas como a gramática e as histórias – são secundários em relação à conversação.
Esse ponto levanta uma questão interessante sobre a evolução da linguagem, a saber: quem falou primeiro? Nos dois últimos séculos, foi proposta uma infinidade de ancestrais para os humanos, da África do Sul, Java e Beijing ao Vale de Neander e à Garganta de Olduvai. Ao mesmo tempo, os pesquisadores propuseram muitas novas espécies de Hominini, levando a um mosaico evolutivo confuso. Para evitar ficar preso em uma mistura de propostas incertas, somente três espécies detentoras de linguagem precisam ser discutidas: Homo erectus, Homo neanderthalensis e Homo sapiens.
Poucos linguistas afirmam que os Homo erectus tinham linguagem. Muitos, na verdade, negam essa ideia. Atualmente não há consenso a respeito de quando os primeiros humanos falaram. Mas parece haver algum consenso moderno sobre a evolução humana, os métodos usados e um panorama da evolução das capacidades físicas e cognitivas da nossa espécie. Em The Descent of Man (A descendência do homem), Charles Darwin sugeriu que a África pode ter sido o berço dos humanos, porque também é a localização da maioria dos grandes primatas. Ele postulou (corretamente) que os humanos e os grandes primatas provavelmente estariam intimamente relacionados, compartilhando um ancestral comum. Darwin redigiu esses comentários visionários antes das grandes descobertas dos primeiros Hominini (“Hominini” refere-se ao gênero Homo e aos seus ancestrais de postura ereta, tais como os Australopithecines afarensis). Outro grupo aparentado, os hominídeos, são os grandes símios. Esse grupo abrange humanos, orangotangos, chimpanzés, bonobos e seus ancestrais comuns. O elenco da história da evolução humana inclui os ramos dos Homo erectus até os homens modernos. Para entender as relações entre algumas dessas diferentes espécies e se elas falavam ou não, deve-se conhecer o que se sabe sobre elas.
Parte da controvérsia sobre as origens humanas está no número de espécies Homo que existiu, mas ainda é necessário compreender as capacidades cognitivas potenciais de todos os Hominini (com base no tamanho do cérebro, nos kits de ferramenta e nas viagens) antes de prosseguir para a relevância da migração dos Hominini para a evolução da linguagem humana. Pode-se focar na psicologia, na cultura ou em ambas; ainda assim, algumas das evidências mais interessantes vêm da cultura.
Os símbolos (a associação de formas largamente arbitrárias com significados específicos, tais como o uso dos sons na palavra “cão” para significar “canino”) foram a invenção que colocou os humanos na rota da linguagem. Por essa razão, nós devemos compreender não somente como eles vieram à tona, mas também como eles foram adaptados por comunidades inteiras e como foram organizados. Uma proposta que eu descarto é seguramente a explicação mais influente sobre a origem da linguagem humana de todos os tempos. É a ideia de que a linguagem resultou de uma única mutação genética, cerca de 50-100 mil anos atrás. Essa mutação supostamente permitiu aos Homo sapiens construírem sentenças complexas. Esse conjunto de ideias é conhecido como “gramática universal”. Mas uma hipótese muito diferente surge do exame cuidadoso das evidências para a evolução biológica e cultural da nossa espécie, qual seja, a teoria da progressão do signo para a origem da linguagem. Isso significa simplesmente que a linguagem surge de forma gradual a partir dos índices (itens que representam coisas às quais eles estão fisicamente conectados, tais como a pegada de um animal), passando pelos ícones (coisas que se assemelham fisicamente às coisas que representam, tais como o retrato de uma pessoa real) e finalmente chegando à criação de símbolos (maneiras convencionais de representar significados que são amplamente arbitrários).
No fim, esses símbolos são combinados com outros para produzir uma gramática, construindo símbolos complexos a partir de símbolos simples. Essa progressão de sinais finalmente atinge um ponto na evolução da linguagem em que os gestos e a entonação são integrados com a gramática e com o significado para formar uma língua humana completa. Essa integração transmite e destaca a informação que o falante está comunicando ao ouvinte. Ela representa um passo fundamental, embora frequentemente ignorado, para a origem da linguagem.
Uma vez que a evolução da linguagem é uma questão de difícil solução, os primeiros esforços começaram previsivelmente de uma maneira bastante equivocada. Em vez de se basear em dados e em conhecimento, as primeiras abordagens valiam-se de especulação. Uma hipótese popular foi a de que todas as línguas começaram com o hebraico, uma vez que se acreditava que era a língua de Deus. Assim como essa primeira conjectura sobre o hebraico, muitas outras foram abandonadas, mesmo algumas que continham embriões de boas teorias. Ainda que indiretamente, elas levaram ao entendimento atual das origens da linguagem.
Mas uma deficiência séria projetou-se por todos esses primeiros esforços, e a falta de evidências, somada à especulação em abundância, irritou muitos cientistas. Então, em 1866, a Sociedade Linguística de Paris declarou que não aceitaria mais artigos sobre a origem da linguagem.
A boa notícia é que o banimento já foi suspenso. Os trabalhos contemporâneos são, em alguma medida, menos especulativos e, de vez em quando, mais consistentemente fundamentados em evidências sólidas do que os trabalhos dos séculos XIX e XX. No século XXI, apesar das dificuldades, os cientistas finalmente conseguiram juntar as peças extremamente pequenas do quebra-cabeça da evolução da linguagem para dar uma ideia razoável de como as línguas humanas surgiram.
Ainda assim, um dos maiores mistérios não resolvidos com relação à origem da linguagem, como muitos observaram, é a “lacuna linguística”. Há um imenso e profundo abismo linguístico entre os humanos e todas as outras espécies. Os sistemas de comunicação do reino animal são diferentes da linguagem humana. Somente as línguas humanas têm símbolos e somente elas são significativamente composicionais, subdividindo enunciados em partes significativas menores, como as histórias em parágrafos, os parágrafos em sentenças, as sentenças em sintagmas, os sintagmas em palavras. Cada pequena unidade contribui para o significado de uma unidade maior da qual ela faz parte. Para alguns, essa lacuna linguística existe simplesmente porque os humanos são criaturas especiais, diferentes das demais. Outros afirmam que o caráter distintivo da linguagem humana foi projetado por Deus.
Mais possivelmente, a lacuna se formou a passos pequenos, através de mudanças homeopáticas impulsionadas pela cultura. Sim, as línguas humanas são radicalmente diferentes dos sistemas de comunicação dos outros animais, mas os passos cognitivos e culturais para ir além dos “limites da linguagem” são menores do que muitos parecem pensar. As evidências mostram que não houve nenhuma “lacuna repentina” para aspectos da linguagem unicamente humanos, mas que as espécies que nos precederam no gênero Homo e mesmo antes, talvez os australopitecíneos, ainda que de forma lenta, seguramente progrediram até que os humanos adquirissem linguagem. Esse caminho lento, que os primeiros Hominini tomaram, resultou, por fim, no enorme abismo evolutivo entre a linguagem humana e a comunicação animal. Finalmente, as espécies Homo desenvolveram complexidade social, cultura e vantagens psicológicas e neurológicas em relação a todas as outras criaturas.
Assim, a linguagem humana começa de forma modesta, com um sistema de comunicação entre os primeiros hominídeos não muito diferente dos sistemas de comunicação de muitos outros animais, mas mais eficiente do que o de uma cascavel.
E se todos os 80 falantes remanescentes de banawá morressem de repente, e seus ossos fossem descobertos somente daqui a 100 mil anos? Deixando de lado, por enquanto, o fato de que os linguistas publicaram gramáticas, dicionários e outros estudos sobre a língua banawá, sua cultura material deixaria alguma evidência de que eles eram capazes de raciocinar por meio de linguagem e de símbolos? Seguramente, deixaria ainda menos evidências da linguagem do que as que foram encontradas para os erectus ou os neanderthalensis. A arte banawá (tais como os colares, os modelos de cesta e as esculturas) e suas ferramentas (que incluem arcos, flechas, zarabatanas, dardos, cestas e veneno) são biodegradáveis. Então, sua cultura material desaparecia sem deixar vestígio em muito menos tempo do que os 800 mil a 1,5 milhão de anos que se passaram desde o surgimento das primeiras culturas. Claro, pode-se determinar pelo uso do solo que eles tinham aldeias de um determinado tamanho, cabanas etc., mas seria tão difícil fazer extrapolações sobre sua linguagem, a partir das reminiscências dos seus artefatos, quanto seria afirmar que muitos grupos antigos de caçadores-coletores tinham (ou não) linguagem. É sabido que as populações amazonenses contemporâneas desenvolveram plenamente línguas humanas e ricas culturas, então é preciso ter cuidado para não concluir, de forma premeditada, que a ausência de evidências para linguagem ou para cultura nos registros pré-históricos indica que as populações humanas antigas não possuíam esses atributos cognitivos essenciais. Na verdade, quando olhamos mais de perto, há evidências de que as primeiras espécies Homo falavam e tinham cultura, de fato.
A solução do mistério das origens da linguagem humana começa com o exame da natureza da evolução da única espécie linguística sobrevivente, o Homo sapiens, ou, como escreve Tom Wolfe, o Homo loquax: “homem que fala”. Há várias perspectivas particulares que marcam o caminho para a evolução da linguagem.
Primeiramente, a linguagem humana surge a partir de um fenômeno muito maior de comunicação animal. A comunicação nada mais é do que a (normalmente intencional) transferência de informação de uma entidade para outra, sejam a comunicação por feromônios entre formigas, os gritos dos macacos, as posições e os movimentos da cauda dos cachorros, as fábulas de Esopo, sejam a leitura e a escrita de livros. A linguagem é muito mais do que transferência de informação.
A segunda perspectiva da evolução da linguagem deriva do exame tanto das vantagens biológicas quanto das culturais. Como o cérebro, o trato vocal, o movimento das mãos e do resto do corpo humano, somados à cultura, afetam e facilitam a evolução da linguagem? Muitas abordagens para a evolução da linguagem focam em um ou outro desses aspectos, biológico versus cultural, à exclusão de outros.
Uma última (e necessária) perspectiva pode deixar alguns curiosos. Trata-se de olhar para a evolução da linguagem como um pesquisador de campo da Linguística olharia. Essa perspectiva leva a duas questões fundamentais: o quão parecidas são as línguas humanas faladas hoje em dia e o que a diversidade das línguas modernas revela sobre as primeiras línguas humanas? Essas perspectivas oferecem uma visão útil dos marcos evolutivos que caracterizam o caminho da primeira língua das espécies Homo.
Há ainda questões adicionais a serem respondidas. Gestos são fundamentais para as línguas humanas? Sim, são. É necessário um trato vocal idêntico ao dos humanos modernos para as línguas humanas? Não. Estruturas gramaticais complexas são exigências das línguas humanas? Não, mas elas são encontradas em muitas línguas modernas, por uma variedade de motivos. Algumas sociedades se comunicam menos ou usam menos comunicação linguística do que outras? Parece que sim. Os erectus podem ter sido detentores da linguagem; não obstante, eram bastante reservados.

Daniel L. Everett, em Linguagem: a história da maior invenção da humanidade

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Arthur Maia e Nelson Faria | Um Café Lá em Casa

A esperança

Não, o provérbio não está bem certo. O raio é que enquanto há esperança, há vida. Jamais foi encontrado no bolso de um suicida um bilhete de loteria que estivesse para correr no dia seguinte.

Mário Quintana, em Caderno H

Os Nascimentos | 1553 – Margens do rio San Pedro


Miguel

Bastante pele tinha deixado nos chicotes. O acusavam de trabalhar sem vontade ou de perder a ferramenta e dizia o mordomo: “Que pague com o corpo”. Quando iam amarrá-lo para outra dose de açoites, Miguel arrebatou uma espada e perdeu-se na montanha.
Outros escravos das minas de Buría fugiram atrás dele. Uns quantos índios se somaram aos chimarrãos. Assim nasceu o pequeno exército que no ano passado atacou as minas e investiu contra a recém-nascida cidade de Barquisimeto.
Depois os rebeldes vieram montanha adentro e longe de tudo fundaram, nas margens do rio, este reino livre. Os índios jirajaras pintaram de negro seus corpos, da cabeça aos pés, e junto com os africanos proclamaram como monarca o negro Miguel.
A rainha Guiomar passeia, rumbosa, entre as palmeiras. Range sua ampla saia de brocados. Dois pajens erguem as pontas de seu manto de seda.
De seu trono de pau, Miguel manda cavar trincheiras e levantar paliçadas, designa oficiais e ministros e proclama bispo o mais sabido dos homens. Aos seus pés, brinca com pedrinhas o príncipe herdeiro.
Meu reino é redondo e de águas claras – diz Miguel, enquanto um cortesão ajeita sua gola de rendas e outro estica as mangas do gibão de cetim.
Já se prepara em Tocuyo, ao mando de Diego de Losada, a tropa que matará Miguel e aniquilará seu reino. Virão os espanhóis armados de arcabuzes e cães e balestras. Os negros e os índios que sobreviverem perderão suas orelhas ou seus testículos ou os tendões de seus pés, para exemplo de toda Venezuela.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

A cidade

Dizes: vou partir
Para outras terras, para outros mares
Para uma cidade tão bela
Como esta nunca foi nem pode ser
Esta cidade onde a cada passo se aperta
O nó corredio: coração sepultado na tumba de um corpo,
Coração inútil, gasto, quanto tempo ainda
Será preciso ficar confinado entre as paredes
Das ruelas de um espírito banal?
Para onde quer que olhe
Só vejo as sombras ruínas da minha vida.
Tantos anos vividos, desperdiçados
Tantos anos perdidos.

Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah! então não vês que te desgraçaste neste lugar miserável
E que a tua vida já não vale nada,
Nem que vás procurá-la nos confins da terra?

Konstantinos Kaváfis (tradução de Daniel Gonçalves), em Ulisseia 

Piratas do Tietê, de Laerte

Vosso prospecto

Senhor: Ao encontrar sobre minha mesa de trabalho o maior envelope que meus olhos já viram, não pude controlar a emoção. Imaginei que conteria uma gravura preciosa, dádiva imerecida, chegada sem qualquer aviso, para maior pasmo e delícia do obsequiado. Presente régio, talvez, de Fayga Ostrower ou de Marcelo Grassmann, mestres nacionais do gênero? Ou quem sabe não seria presente, mas a derradeira das gravuras eróticas de Picasso, mandadas exterminar no Brasil, e cujo proprietário houvera por bem confiar à guarda deste amador das artes acima de qualquer suspeita?
Abri, não era nada disto. Era, como direi? Redução do majestoso edifício que empreendestes construir num dos últimos vãos disponíveis da orla marítima do Rio, e do qual me oferecíeis lauta fração. O desenho a cores, abrangendo calçadão, árvores, passeios, passantes; a planta igualmente colorida, com requintes mil; a descrição anexa, abrangendo virtudes tais como cristal solar-bronze, integração visual e decorativa, cortina fria ambiental e outras mumunhas dignas de celebração, deixaram-me naquele estado d’alma que pode ser rotulado de propriedade feliz. Não só vi diante de mim a nobre máquina de morar como ainda me vi dentro dela, os dois formando um todo, metade cristal solar-bronze, metade carne contente, e para o mar olhávamos orgulhosos, e o mar nos saudava com vagalhões de espuma admirativa, e dele saltavam anfitrites douradas que descreviam no ar um gesto de alegre confraternização, e o próprio Netuno, que de há muito sumira de minha memória literária, se ergueu tridentinamente magnífico e pronunciou no idioma lá dele estas palavras: “Salve, cronista atlântico, em teu alcácer que entesta o meu salso domínio; três vezes salve, de poder a poder!”.
Eu ia responder-lhe: “Que é isso, caro Netuno, não mereço tanto”, e realmente não merecia, pois o palacete marinho que me ofertastes era de papel; de primeira qualidade, sim, mas papel; e posto fosse grande sua projeção na folha, esta era ainda menor que o tamanho normal de um apartamento, de sorte que realmente eu não cabia na morada que me destinastes, mesmo que fosse viável morar em casa de chão de papel, paredes de papel, teto de papel. Além do mais, oh que me desaba o sonho antes de fruído, não me doastes coisa nenhuma, senão que me propusestes vender-me uma unidade de vosso superedifício pelo preço insignificante de Cr$ 900 mil, conforme verifiquei no verso do espetacular desenho. Ora, novecentos mil, valorizados em três por cento diante dessa mísera moedinha que é hoje o dólar furado, não os tenho atualmente (ou nunca) na algibeira nem debaixo do colchão nem no banco de que é contador meu amigo Antônio Carlos de Oliveira, nem em parte alguma da Terra. É verdade que me acenais com o pagamento em quarenta meses, mas posso profetizar, para meu vexame e tristeza, que se topasse a oferta, ao fim do prazo estaria, não no interior do palacete oceânico, mas debaixo do viaduto de São Cristóvão, por falta de cumprimento da obrigação assumida.
Então, e portanto, vos pergunto: Por que me mandastes, senhor, vosso cativante prospecto? Acaso me tínheis na conta de gordo possuidor de reservas, disposto a aplicá-las para tapar a última fenda na muralha de concreto de Copacabana? Informou-vos um gaiato que eu fizera os treze pontos? E acreditastes? Seria avaliar demasiado alto minha capacidade palpiteira, que não chega a zero ponto. Admitir que brincastes comigo, em instante de ócio mental, nem por sombra. Devo concluir que tivestes realmente a intenção de doar-me a casa suspensa, e um de vossos assessores, invejoso e ressentido, mandou gravar, nas costas do imenso cartão, aquele preço desalentador?
Se for assim, rogo-vos entreis imediatamente em comunicação direta comigo, para formalizardes a munificência, a que me renderei de coração aberto e alma reconhecida, pois não sou pobre soberbo nem tenho procuração da paisagem, aliás extinta, do Rio de Janeiro, para implicar com a indústria imobiliária, nem seria mais tempo de fazê-lo, se Inês é morta.
A menos que o envelopão me tenha sido endereçado por engano, e neste caso a quem devo encaminhá-lo, senhor?

Carlos Drummond de Andrade, em De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica 

II [Sêneca]


1. Há muito tempo me pergunto silenciosamente, meu amigo Sereno, a que devo comparar tal estado de espírito, e descubro que nada mais se assemelha a isso do que a conduta daqueles que, depois de recuperados de uma doença longa e grave, ocasionalmente experimentam leves indisposições, e, embora tenham passado pelos estágios finais da doença, ainda têm suspeitas de que ela não os deixou, e embora em perfeita saúde ainda erguem o pulso para serem medido pelo médico, e sempre que se sentem calor suspeitam que a febre está voltando. Tais homens, Sereno, não estão doentes, mas não estão acostumados a estarem saudáveis; assim como um mar ou lago tranquilo, exibem uma certa ondulação quando suas águas estão baixando após uma tempestade.
2. O que você precisa, portanto, não é de nenhum desses remédios mais duros aos quais se fez alusão, não que em alguns casos você deva se controlar, em outros se irritar consigo mesmo, em outros se reprovar severamente, mas que você deve adotar o que vem em último lugar na lista, ter confiança em si mesmo, e acreditar que você está seguindo o caminho certo, sem ser levado de lado pelos inúmeros rastros divergentes dos errantes que o atravessam em todas as direções, alguns deles circulando pelo próprio caminho certo.
3. O que você deseja, não sofrer perturbação, é grandioso e sublime e se avizinha do divino. Os gregos chamam de euthymía essa calma firmeza de mente, e há o excelente tratado de Demócrito11: eu a chamo “tranquilidade”: pois não há necessidade de traduzir de forma tão exata quanto copiar as palavras do idioma grego: o ponto essencial é marcar o assunto em discussão por um nome que deveria ter o mesmo significado do seu nome grego, embora talvez não a mesma forma.
4. O que buscamos, então, é como a alma pode sempre seguir um rumo firme, sem percalços, pode estar satisfeita consigo mesma e olhar com prazer para o que a rodeia, e não experimentar nenhuma interrupção dessa alegria, mas permanecer em uma condição pacífica, sem nunca estar eufórica ou deprimida: isso será “tranquilidade”. Indaguemos de maneira geral como se poderia chegar a ela: desse remédio de uso comum você tomará quanto quiser.
5. Enquanto isso, devemos arrastar para a luz toda a doença, e então cada um reconhecerá sua parte: ao mesmo tempo, compreenderá quanto menos sofre pela sua auto depreciação do que aqueles que estão ligados por alguma afirmação pomposa que fizeram, e são oprimidos por algum grande título de honra, de modo que a vergonha, mais do que o seu próprio livre arbítrio, os obriga a manter o fingimento.
6. O mesmo se aplica tanto àqueles que sofrem de volúpia e de constantes mudanças de propósitos, que sempre gostam mais do que já desistiram, como àqueles que apenas bocejam e se alvoroçam: acrescenta-se a esses que, como os que dormem mal, se voltam de um lado para o outro e se acomodam primeiro de uma maneira e depois de outra, até que finalmente descansam por puro cansaço: na formação dos hábitos de suas vidas, muitas vezes terminam adotando alguns aos quais não são mantidos por nenhuma aversão à mudança, mas na prática da qual a velhice, que resiste à inovação, os pegou vivos: acrescente também aqueles que não são de modo algum inconstantes, mas que devem agradecer a sua inércia, não a sua coerência por serem assim, e que continuam a viver não da maneira que desejam, mas da maneira que começaram a viver.
7. Há outras formas especiais desta doença, mas que têm apenas um efeito, o de tornar as pessoas insatisfeitas consigo mesmas. Isso se origina de uma desordem mental e de desejos que se tem medo de expressar ou de não conseguir realizar, quando os homens ou não ousam tentar tanto quanto desejam, ou fracassam em seus esforços e dependem inteiramente da esperança: tais pessoas são sempre inconstantes e volúveis, o que é uma consequência necessária da vida em estado de suspense: tomam qualquer caminho para chegar aos seus fins, e ensinam e forçam a usar meios desonrosos e difíceis para fazê-lo, de modo que, quando a sua labuta foi em vão, são feitos infelizes pela desgraça do fracasso, e não se arrependem de terem ansiado pelo que estava errado, mas de terem ansiado por ele em vão.
8. Começam então a sentir arrependimento pelo que fizeram, e receiam recomeçar, e sua alma cai gradualmente num estado de vacilação sem fim, porque não podem comandar nem obedecer às suas paixões, de titubeio, porque sua vida não pode se desenvolver adequadamente, e de decadência, à medida que a alma fica estupefata pelas decepções.
9. Todos esses sintomas se agravam quando sua aversão a uma penúria laboriosa os leva ao ócio e aos estudos solitários, insuportáveis para uma alma ansiosa por participar dos assuntos públicos, desejosa de ação e naturalmente inquieta, porque, naturalmente, encontra em si poucos recursos: quando perde o prazer que o próprio negócio proporciona aos homens atarefados, não pode suportar a sua casa, a solidão, ou as paredes de uma sala, e se considera com aversão quando deixado a si mesmo.
10. Daí surge aquele cansaço e insatisfação consigo mesmo, aquele atirar-se de um lado para o outro de uma alma que não encontra descanso em lugar algum, aquela resistência infeliz e pouco disposta ao lazer forçado. Em todos os casos em que a pessoa se envergonha de confessar a verdadeira causa do seu sofrimento, e em que a modéstia leva a conduzir o seu sofrimento para dentro de si, os desejos se amontoam em um pequeno espaço sem qualquer ventilação se sufocam mutuamente. Vem daí a melancolia e o abatimento do espírito, e mil vacilações da alma instável, que é mantida em suspense por esperanças não satisfeitas, e entristecida pelas desilusões: vem daí o estado de espírito daqueles que odeiam sua ociosidade, reclamam que nada têm a fazer, e veem o progresso dos outros com o mais amargo ciúme: pois uma indolência infeliz favorece o crescimento da inveja, e os homens que não conseguem vencer a si mesmos desejam que todos os outros sejam arruinados.
11. Essa aversão ao progresso dos outros homens e o desapontamento dos próprios produz uma alma irada contra a fortuna, viciada em reclamar da época em que vive para se recolher em cantos e murmurar sobre sua miséria, até ficar doente e cansada de si mesma: pois a alma humana é naturalmente ágil e apta ao movimento: ela se deleita em cada oportunidade de excitação e esquece de si mesma, e quanto pior a disposição do homem, mais ele se deleita com isso, pois gosta de se desgastar com a agitação, assim como algumas úlceras anseiam pelas mãos que as machucam e se deleitam em ser tocadas, e a coceira gosta de qualquer coisa que a arranhe.
12. Da mesma forma, asseguro-lhes que essas mentes sobre as quais os desejos se espalham como úlceras malignas, têm prazer em labutas e problemas, pois há coisas que agradam ao nosso corpo e ao mesmo tempo lhe dão uma certa dose de dor, como se virar e mudar de lado antes de se cansar, ou se arrefecer em uma posição após a outra. É como o Aquiles de Homero deitado primeiro sobre seu rosto, depois sobre suas costas, colocando-se em várias posições, e, como as pessoas doentes não o fazem, não suportando nenhuma delas por muito tempo, e usando as mudanças como se fossem remédios.
13. Por isso, os homens empreendem andanças sem rumo, viajam por costas distantes e, em um momento, no mar, em outro por terra, procuram acalmar essa volubilidade de disposição que sempre está insatisfeita com o presente. “Agora vamos à Campânia: agora estou farto do bom cultivo: vamos ver regiões selvagens, vamos percorrer os bosques de Brútio e Lucânia”: no entanto, em meio a esse deserto, quer-se que alguma coisa de belo alivie os olhos mimados, depois de tanto tempo de morada em lugares selvagens: “vamos procurar Tarento com seu famoso porto, seu clima de inverno ameno e seu distrito, suficientemente rico para suportar até mesmo as grandes hordas dos tempos antigos”. Voltemos agora à cidade: nossos ouvidos há muito sentem falta dos seus gritos e ruídos: seria agradável também desfrutar da visão do derramamento de sangue humano.
14. Assim uma viagem sucede a outra, e uma visão se transforma em outra. Como diz Lucrécio: - “Assim todo mortal de si mesmo foge;” mas o que se ganha com isso, se não foge de si mesmo? Segue a si mesmo e se sobrecarrega com o seu mais pesado companheirismo.
15. Temos de compreender, portanto, que o que nos aflige não é culpa dos lugares, mas de nós mesmos: somos fracos quando há algo a suportar, e não podemos suportar nem o trabalho, nem o prazer, nem os próprios negócios, nem os de outrem por muito tempo. Isso tem levado alguns homens à morte, porque, alterando frequentemente seu propósito, são sempre levados de volta ao mesmo ponto e não deixam espaço para nada de novo. Estavam fartos da vida e do próprio mundo, e como todas as indulgências lhes apalparam, começaram a se perguntar: “Por quanto tempo vamos continuar fazendo a mesma coisa?”

Sêneca, em Sobre a Tranquilidade da Alma