Em
seu Tesouro da fraseologia brasileira, o professor Antenor Nascentes,
num período que talvez não seja dos mais brilhantes desse mestre do
idioma, mas que, em todo caso, esclarece o assunto, define
“conto-do-vigário” como: “Modalidade de furto na qual o ladrão
conta à futura vítima (o otário) uma história complicada de
grande quantidade de dinheiro (originariamente entregue pelo vigário
de sua freguesia) aí presente dentro de um embrulho (o paco),
dinheiro esse que ele deseja confiar provisoriamente, por comodidade
ou necessidade, a uma pessoa honesta em troca de algum dinheiro miúdo
de que precisa no momento. Burla, logro, intrujice.”
A
modalidade é conhecida no Brasil, onde houve o inesquecível caso do
mineiro que comprou um bonde, instalou-se nele e sentiu por algum
tempo a glória de ser proprietário de um grande semovente, só
verificando o logro em que caíra quando se pôs a dar ordens ao
motorneiro. O Rio é um grande centro de vigaristas, por isso mesmo
que recebe vastos contingentes provincianos, gente simples e de
boa-fé que vai na charla desse outro vasto contingente de malandros
de que está cheia a cidade.
Foi
meu amigo o poeta João Cabral de Melo Neto quem primeiro me chamou a
atenção para isto que se pode dizer constitui o primeiro grande
conto-do-vigário da história. É provável que tenha havido
antecedentes, mas o conto-do-vigário em questão pode ser
considerado o pai de todos, de vez que seu autor foi Rodrigo Dias de
Vivar, herói popular espanhol, a quem, pela bravura em campo de
batalha, cognominaram El Campeador. Isso, no século XI.
A
burla está na grande epopeia, espanhola, e quem quiser pode
verificar com os próprios olhos. Dá-se que o Cid, intrigado por
elementos da Corte que, de inveja, o indispuseram com don Afonso,
viu-se na contingência de sair de Burgos e acampar com seus homens
num arraial cerca da cidade. Foi quando sobreveio Martín Antolínez
(seu parceiro no conto-do-vigário) não só para confortá-lo
moralmente como para oferecer-lhe seus serviços. O Cid propôs então
o conto:
Con
vuestro consejo – bastir quiero dos arcas
inchamosla
d'arena – ca bien serán pesadas,
cubiertas
de guadalmeci – e bien enclavadas.
Em
resumo: o Cid queria que seu amigo construísse duas arcas bem
bonitas, forradas de couro e pregadas a belos cravos, que as enchesse
de areia e...
Por
Raquel e Vidas – vayádesme privado
quando
en Burgos me vedaron compra – y el rey me a ayrado,
non
puedo traer e laver – ca mucha es pesado,
empenar
gelo he – por lo quefore guisado;
de
noche lo lieven – que non lo vean cristianos.
Veálo
el Criador – con todos los santos,
yo
más non puedo – e amidos lo ago.
Para
quem não entende o castelhano arcaico (eu também não entendo tudo
não, não pensem ...) o que o Cid disse foi o seguinte: para
Antolínez ir procurar dois usurários locais, Raquel e Vidas, e
dizer-lhes que, como ele não podia comprar nada em Burgos, por estar
sob a ira do rei, nem levar suas arcas carregadas de despojos, por
serem muito pesadas – se não topariam que ele, o Cid, as
empenhasse por um dinheirinho qualquer. A coisa tinha de ser feita à
noite, para que nenhum cristão visse nada, porque o Criador, esse ia
ver mesmo de qualquer maneira, com todos os seus santos: aliás, ele
o Cid passava o conto-do-vigário porque não tinha mesmo outro
jeito, era forçado.
Raquel
e Vidas, por ganância, sabedores de que o Cid tinha colhido grandes
despojos em suas lutas contra os mouros e o rei de Granada, toparam o
negócio. Vieram à tenda do Cid e levaram as duas arcas em troca de
um pago de seyscientos marcos. Muito obsequioso, Antolínez ainda o
ajudou no transporte e cobrou um par de calças de comissão.
O
conto-do-vigário foi, assim, completo, inteiramente dentro da
definição de Antenor Nascentes: com o ladrão (o Cid – e que a
literatura me perdoe chamá-lo assim, ao grande herói), o otário
(no caso dois) e o paco (as arcas cheias de areia). Não podia ter
sido mais perfeito, nem de espírito mais carioca.
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
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