sexta-feira, 4 de outubro de 2024

AS RÃS | Drama em nove atos


Ato IV

A ambientação do palco é a mesma do Ato II.

Hao Mão Grande e Qin He moldam bonecos, cada um na respectiva bancada.

Em silêncio, entra um homem de meia-idade, vestindo um blazer cinza amarrotado, com uma gravata vermelha no pescoço, uma caneta no bolso e uma pasta debaixo do braço.

HAO (sem erguer a cabeça) Girino, você por aqui de novo?!
GIRINO (adulando) Como o tio Hao é fenomenal, só de ouvir já sabe que sou eu.
HAO Não foi com o ouvido, foi com o nariz.
QIN O olfato de um cão é dez mil vezes mais sensível que o de um homem.
HAO Como se atreve a me insultar?!
QIN Como assim? Só falei que o olfato de um cão é dez mil vezes mais sensível que o do homem.
HAO Não vai parar?! (com a argila na mão, molda rapidamente o rosto de Qin He. Levanta para mostrar a Girino e Qin He e joga-a no chão com força). Vou amassar essa criatura sem-vergonha!
QIN (sem se intimidar, molda a figura de Hao Mão Grande, mostra a Girino e joga-a no chão) Vou amassar este cão velho!
GIRINO Calma, tio Hao! Calma, tio Qin! Calma, mestres! Vocês acabaram de moldar excelentes obras de arte. É uma pena terem amassado tudo!
HAO Pare de se intrometer. Cuidado senão vou moldar uma figura sua e amassá-la!
GIRINO Por favor, molde minha figura, mas não a amasse. Quando meu roteiro for publicado, vou usar a imagem na capa.
HAO Eu já lhe disse que sua tia prefere ver formigas subindo na árvore a ler esse maldito roteiro.
QIN Por que você não vai trabalhar na roça em vez de escrever teatro? Se você for capaz de escrever alguma coisa, vou comer este pedaço de barro.
GIRINO (humilde) Tio Hao, tio Qin, minha tia está envelhecendo, já não tem a vista boa. Não vou fazê-la ler meu roteiro sozinha, prefiro ler em voz alta para ela e para vocês também. Devem ter ouvido falar de Cao Yu e Lao She, dois dramaturgos que sempre liam seus roteiros em voz alta para os atores e diretores.
HAO Mas você não é um Cao Yu, nem um Lao She.
QIN E nós não somos atores, muito menos diretores.
GIRINO Mas vocês são personagens da minha obra! Gastei muita tinta para embelezar vocês, se não ouvirem, será uma lástima. Se ouvirem e não ficarem satisfeitos com alguma coisa, ainda posso alterar; se não quiserem ouvir, não adianta se arrepender depois que a peça for montada ou publicada (dramático). Para escrever este roteiro, gastei dez anos e todas as minhas posses, até tirei umas vigas do teto para vender (aperta o peito e tosse dolorosamente). Para escrever este roteiro, consumi um fumo de baixa qualidade, amargo e picante. Na falta desse fumo, usava folhas de acácia. Passei um sem-número de noites em claro. Prejudiquei minha saúde e encurtei minha vida. Para que tudo isso? Pela fama? Pela riqueza? (estridente). Nada disso! Foi por amor a minha tia, foi para enaltecer a grande mãe do Nordeste de Gaomi! Agora, se vocês não quiserem me dar ouvidos, vou morrer na sua frente!
HAO Quem você pretende assustar com isso? Como prefere morrer? Enforcando-se ou tomando veneno?
QIN Até parece comovente, fiquei com vontade de ouvir.
HAO Você pode ler em voz alta, mas não na minha casa.
GIRINO Aqui é, antes de tudo, a casa da minha tia, só depois é que pode ser a sua casa.

A tia sai engatinhando da caverna.

TIA (lânguida) Quem está falando de mim?
GIRINO Tia, sou eu.
TIA Sabia que era você. O que está fazendo aqui?
GIRINO (abre a pasta apressado, tira uma resma de manuscritos e lê afobado) Tia, sou eu, sou Girino da vila Liang Xian (Qin He e Hao Mão Grande trocam um olhar intrigado). Meu pai é Yu Peisheng e minha mãe, Sun Fuxia. Sou um dos “bebês batata-doce” e o primeiro que a senhora trouxe ao mundo. Minha esposa é Tan Yu’er, também nasceu pelas suas mãos, seu pai é Tan Jinhai e sua mãe, Huang Yueling…
TIA Pare de ler isso! Depois de virar dramaturgo, você mudou seu sobrenome? Mudou a data de nascimento? Trocou de pai e mãe? Mudou de aldeia? Trocou de esposa? (caminha por entre a dúzia de bonecos pendurados no palco, ora cabisbaixa e pensativa, ora pisando duro, martela o peito com o punho. De repente, dá um tapa na bunda de um bebê e ele começa a chorar. Bate na bunda dos bebês, um após outro, e todos choram. Em meio ao choro das crianças, ela começa a falar sem parar, o choro vai diminuindo). Escutem bem, vocês, bebês batata-doce! Tirei vocês com minhas próprias mãos! Pestinhas, nenhum de vocês me poupou da canseira. Trabalho com isso há mais de cinquenta anos, e nem agora tenho descanso. E nesses cinquenta anos, quantas vezes fiquei sem comer? Quantas noites fiquei sem dormir? As mãos sujas de sangue, a cabeça empapada de suor, a roupa suja de fezes e urina, acham que é fácil ser ginecologista no campo? Nas dezoito aldeias no Nordeste de Gaomi e suas mais de cinco mil famílias, existe casa onde eu não tenha entrado? E os barrigões de suas mães e mulheres, existe algum que não tenha visto? E os canalhas dos seus pais, todos fui eu que operei. Agora alguns de vocês são do governo, outros são ricos. Vocês podem correr soltos diante do prefeito ou mostrar os dentes para o governador, mas, na minha frente, quero que se comportem! Por mim, teria castrado todos vocês, seus cachorros, pelo bem de suas mulheres. Parem com esse risinho impertinente, seriedade! O planejamento familiar diz respeito ao destino de uma nação e à vida do povo, é uma prioridade. Parem de fazer caretas, não adianta. Se é para fazer aborto, fazemos, se é para fazer ligadura, fazemos também. Nenhum homem presta, quem disse isso? Não sabem? Se não sabem, também não sei. Só sei que nenhum homem presta. E, apesar de não prestarem, não dá para ficar sem vocês. Foi o arranjo que Deus fez quando criou o mundo, tigres e lebres, gaviões e pardais, moscas e mosquitos… Se faltasse uma só criatura, o mundo não seria mundo. Dizem que existe uma tribo na selva africana onde as pessoas vivem em árvores e fazem ninhos. As mulheres botam ovos no ninho e depois saem e ficam de cócoras pelos galhos para comer frutas silvestres. Enquanto isso, os homens se cobrem de folhas, deitam-se sobre os ovos e ficam chocando por quarenta e nove dias. Depois, as crianças quebram a casca e dão um pulo para sair. Já nascem sabendo subir em árvores. Acreditam nisso? Não? Mas eu acredito! Já fiz o parto de um ovo do tamanho de uma bola de futebol. Foi chocado por quinze dias e dele saiu um bebê gordo chamado Dan Sheng. Infelizmente morreu de encefalite. Se estivesse vivo, teria uns quarenta anos e com certeza seria um grande escritor, porque no aniversário de um ano ele escolheu de presente, sem piscar, uma caneta. Quando morre o tigre, o macaco vira rei. Só porque Dan Sheng morreu, agora chegou sua vez de brincar com as letras…
GIRINO (com infinita admiração) Tia, a senhora tem mesmo o dom da palavra. Não só é uma distinta ginecologista, como também uma excelente dramaturga! O que acabou de dizer de improviso seria uma fala maravilhosa no palco!
TIA Como assim “de improviso”? As palavras que saem da minha boca são todas bem pensadas (aponta para a resma de manuscritos nas mãos de Girino). Isso aí é o roteiro que escreveu?
GIRINO (humilde) Sim.
TIA Qual é o título mesmo?
GIRINO Wa.
TIA Wa como em wawa, bebê, ou como em qingwa, rã?
GIRINO Por enquanto é “rã”, mas é claro que dá para mudar para “bebê”, e claro que ainda podemos mudar para wa como em Nü Wa. A deusa Nü Wa criou o homem, a rã é símbolo de fertilidade e totem do Nordeste de Gaomi, em nossas esculturas de argila, nossas pinturas do Ano-Novo há exemplos concretos do culto à rã.
TIA Mas não sabe que tenho fobia a rãs?
GIRINO Meu teatro é justamente para analisar o motivo dessa sua fobia. Depois de ler o texto, quem sabe consegue lidar com seu complexo e parar de ter medo de rãs?
TIA (estende a mão) Então me dê esse seu roteiro.
Girino entrega o roteiro à tia, respeitoso.
TIA (para Qin He e Hao Mão Grande) Qual de vocês vai tacar fogo nesta baboseira?
GIRINO Mas, tia, isso me custou dez anos de suor!
TIA (joga os papéis para o alto, as folhas se espalham no palco) Não quero nem olhar. Só de cheirar, já sei que peido você soltou! Com o pouco de conhecimento que você tem, ainda se atreve a analisar o motivo da minha fobia de rãs?

Girino, Qin He e Hao Mão Grande brigam para pegar os papéis no chão.

TIA (mergulhada em suas lembranças) Na manhã do dia em que você nasceu, eu estava lavando as mãos no rio e vi uma horda de girinos na água. A seca daquele ano era grave, havia mais girinos que água. A imagem me fez lembrar que, de todos aqueles girinos, só um em cada dez mil vai se transformar em rã. A maioria vai virar lama. É como o esperma do homem. Da horda de espermatozoides, só um em dez milhões fecundará um óvulo e virará um bebê. Daí pensei que os girinos devem ter uma conexão mística com a reprodução humana. Quando sua mãe me pediu para dar um nome a você, disse Girino, sem piscar. Sua mãe disse: “Bom nome, bom mesmo! Girino, é fácil criar um bebê com nome modesto”. Girino, seu nome traz sorte!

Girino, Qin He e Hao Mão Grande ouvem, segurando alguns papéis na mão.

GIRINO Obrigado, tia!
TIA Mais tarde, o Diário do Povo divulgou um método contraceptivo com girinos. Era assim: antes de fazer sexo, as mulheres em período fértil deviam ingerir catorze girinos vivos para evitar filhos. Claro que não funcionou e aquelas mulheres tiveram rãs!
HAO Pare de falar essas coisas, ou vai passar mal de novo.
TIA Quem vai passar mal? Não estou doente, doente é quem come rã. Mandaram um bando de mulheres cortarem a cabeça das rãs com uma tesoura na beira do rio. Depois tiram a pele das rãs como quem tira uma calça. As coxas são iguais às de uma mulher. Foi aí que começou minha fobia. Aquelas coxas… parecem de mulher…
QIN Quem come esses bichos acaba pagando seus pecados. Eles têm um parasita que sobe até o cérebro e deixa a pessoa idiota, com cara de rã.
GIRINO Esse é um detalhe importante. Quem come rã vira rã. Mas minha tia foi a heroína defensora das rãs.
TIA (angustiada) Não, minhas mãos estão manchadas de sangue de rã. Fui enganada, sem saber comi bolinhos de carne de rã. Como seu tio-avô havia me contado, sem saber, um imperador comeu almôndegas feitas com a carne de seu filho. Mais tarde, quando foi forçado a sair da capital, vomitou algumas almôndegas que, ao tocarem o chão, viraram coelhos, e “coelho” em nossa língua tem a mesma pronúncia de “vomitar o filho”. Naquele dia, voltei para casa com o estômago revirando, e ainda parecia ouvir um coac coac. Era um desconforto enorme, uma náusea enorme. Fui até o rio, vomitei umas coisinhas verdes que viraram rãs assim que caíram na água…

Lideradas pelo menino de aventalzinho verde na barriga, as rãs deficientes saem se arrastando da caverna. O menino grita: “Pague o que deve! Pague o que deve!”. As rãs coaxam com raiva.

A tia dá um grito e desmaia.

Hao Mão Grande a abraça e tenta reanimá-la.

Qin He tenta espantar o menino e sua horda de rãs.

Girino pega o manuscrito página por página do chão.

GIRINO (tira do bolso um convite vermelho) Tia, na verdade sei o motivo fundamental da sua fobia de rãs. Sei também que, ao longo desses anos, você vem tentando por todos os meios remediar o “pecado” que acredita ter cometido. Na realidade, a culpa não é sua; aquelas rãs defeituosas são ilusões da sua cabeça. Tia, com sua ajuda nasceu meu filho. Para comemorar, vou oferecer um grande banquete e queria poder contar com sua presença, (a Hao e Qin) e de vocês dois também!

Cortina.

Mo Yan, em As rãs

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